Junto à entrada principal do Centro Cultural de Belém, a maquilhadora retoca uma pálpebra de Miguel Góis (MG), mascarado de Imperador Ming. Belíssima altura para o humorista demonstrar, orgulhosamente, o seu grande talento: fechar… MG: …um olho de cada vez. Estava a guardá-lo para mais tarde, para, quando morrer, as pessoas dizerem ‘Ah, afinal ele tinha um talento.’ Os seus companheiros – Ricardo Araújo Pereira (RAP), Zé Diogo Quintela (ZDQ) e Tiago Dores (TD), caracterizados de José Sócrates, Joker e Dr. No – não assistem a este momento histórico. Estão a 20 passos de distância, a preparar o sketch que satiriza a Cimeira União Europeia-África. Mas um deles deve ter dado uma mirada ao outro lado da rua, onde um grupo de adolescentes assiste, em êxtase, às gravações – uma voz feminina, quase histérica, grita: “Ele olhou para mim!” MG: Meu Deus! ‘Ele olhou para mim’! Que privilégio! É melhor não olhar para ela… Pelo sim pelo não, Miguel suspende o seu talento e aguenta o resto da caracterização com os dois olhos fechados. Ao fim de alguns anos de sucesso (a sua primeira série televisiva é de 2004), os Gato Fedorento ainda não compreendem o porquê de tanto ruído à sua volta. E mantêm-se surpreendentemente… normais. Como se fossem quatro super-heróis imunes àquele vírus da fama que muda quem toca. Não negam um autógrafo, mesmo que continuem sem perceber por que raio alguém há-de querer a assinatura deles. Fogem dos eventos da “socialite” como se tivessem medo de apanhar sarna. Falam com os fãs como quem fala com um amigo, talvez porque não se acostumaram ao facto de terem fãs. Aliás, fama é coisa que nunca pediram, nem esperaram. A própria carreira televisiva não passa de… ZDQ: … um acidente de percurso. A montante de não sermos talhados para a televisão… MG: Ele disse ‘a montante’? ZDQ: … também não somos talhados para humoristas. Devíamos era ter sido estrelas de rock. TD: Eu dava um grande… RAP: Tropa! TD: Isso: dava um grande tropa. RAP: No outro dia, estava ele numa cadeira de rodas, a fazer um sketch, e dizia ‘Eh pá, eu dava um grande deficiente’. Agora, sem que ninguém desconfiasse, quando são líderes de audiência, ao domingo à noite, e motivo de conversa, à segunda-feira de manhã, saem de cena. Ficam aliviados alguns treinadores de futebol (e deputados, vá), comentadores políticos (e presidentes de câmara, pois), nacionalistas (e, claro, primeiros-ministros e Santanas Lopes). Mas o País acinzenta-se. Afinal, o que leva o Gato a arrumar as botas? ‘Armados em parvos’ Sábado, 8 de Dezembro, dia de gravação do penúltimo episódio de Diz que é uma espécie de magazine. A contagem decrescente para a derradeira oportunidade de ver um espectáculo dos Gato Fedorento marca 23 dias (a passagem de ano da RTP é com eles, num mega-show, no Pavilhão Atlântico). Mas, no rodopio da produção, o sentimento não é de pena. É de alívio. MG: Está quase a acabar. Está quase a acabar. A frase é repetida de uns para os outros. Aparentam ir buscar forças ao facto de o fim estar próximo, como se o programa se tivesse tornado um fardo, um sacrifício que não estava nos seus planos, quando se decidiram por este formato de 40 longos minutos. Na realidade, se eles soubessem que ia ser assim… RAP: … tínhamos tido mais cuidado a assinar aquele contrato. TD: Pelo menos, já sabíamos o que custa fazer um programa semanal de 40 minutos. Sobretudo, quando o nosso contrato só obrigava a vinte e cinco. RAP: Armados em parvos, fomos fazer mais do que era preciso. TD: Achámos que 40 minutos serviam melhor um programa de actualidade. O cansaço é uma das justificações para entrarem no que dizem ser uma espécie de ano sabático. O generoso share televisivo não compensa a pressão. Como bónus, protegem a sua valiosa imagem de um desgaste assassino. E abandonar quando se está no topo… TD: … é mais agradável. Somos tipo uns Michael Jordans. ZDQ: Há muito que falávamos disto. Este programa não nos permite pensar em mais nada e nós queremos evoluir, fazer coisas diferentes. MG: Foi muito desgastante. Nós nunca tínhamos feito duas séries por ano. É natural – eles fazem tudo sozinhos. Têm as ideias, escrevem os textos, gastam dezenas de horas, nas catacumbas da RTP, a pesquisar o arquivo, em busca de peças para os Tesourinhos Deprimentes, interpretam os sketches, planeiam o momento musical, apresentam o programa e ainda supervisionam a pós-produção. Um conjunto de sete trabalhos hercúleos que fizeram Tiago perder cinco quilos e se provou ser duro… RAP: … demais para ser feito por quatro gajos. O programa mais parecido com isto, nos EUA, é o Saturday Night Live, mas a lista de autores é imensa, a de actores também, há tipos que fazem a pesquisa, apresentadores que variam… Além disso, este não é o nosso meio. Quando penso em mim, não penso ‘Sou um gajo que faz programas de televisão’. Penso que sou um gajo espectacular na cama e… TD: Eu nem isso: não tenho essa ideia de ti. MG: Também não. Não vejo como podes pensar tal coisa. RAP: Bem, durmo como poucos… ZDQ: Eu vejo-me como uma excelente dona-de-casa. Escritores de humor. Era assim que se descreviam, no início, e é assim que continuam a ver-se. A autodepreciação, vinda deles, soa a mais do que a um truque humorístico comum. Quando dizem que o programa é… ZDQ: … muito fraquinho… … parecem acreditar mesmo nisso. ‘Estupidez e trabalho são a mesma coisa’ A frustração com os resultados é óbvia. Já perderam muito do entusiasmo por terem chegado a um ponto em que as pessoas lhes acham piada por qualquer coisa que digam. Pior: demasiadas vezes olham para trás e desiludem-se com o que produziram. A pressa é inimiga da perfeição, uma máxima que lhes bateu dolorosamente. O Diz que é uma espécie de magazine… MG: … nunca sai como nós queríamos. ZDQ: Damos atenção à actualidade, em prejuízo da preparação. TD: Isto não é mais do que o melhor que nós conseguimos. MG: Demorámos algum tempo a ficar de bem com o facto de ser o programa possível. ZDQ: De bem?! RAP: Uma estrutura meio brasileira, essa… TD: ‘Estou de bem!’ RAP: ‘Estou de mal consigo.’ Também não estão de mal com o dinheiro que ganharam, o que lhes permite encarar o “desemprego” sem preocupações. Entre a RTP, o contrato publicitário com a PT e as royalties dos DVD, os quatro amigos encheram ali… RAP: … uma almofadinha que nos permite aguentar bem um período sem trabalhar muito. Pelo menos até Outubro de 2008, ninguém vai ver nada de novo dos Gato Fedorento, no pequeno ecrã. E, depois de Fevereiro, quando termina o contrato dos Incorrigíveis (pequenos vídeos que Ricardo e Zé Diogo transmitem no site Produções Fictícias TV), nem na Internet aparecerão. Restam as crónicas de Ricardo, na VISÃO e n’A Bola, de Zé Diogo no Público e, também, n’A Bola e de Miguel no Record. Como grupo, o plano, passa por… RAP: … não fazer nada, pelo menos durante três quartos de 2008. Depois, logo se vê se a gente assina mais um contrato televisivo. TD: Que implicará, certamente, um menor número de séries por ano. ZDQ: Só dois episódios: o primeiro e o último. TD: A fazermos alguma coisa, será só no último trimestre. E, em 2009, também não tencionamos estar todas as semanas no ar. Não há sequer um projecto de projectar seja o que for, juram. Vão continuar a juntar-se, para jogar Pro Evolution Soccer, na Playstation e conversar… ZDQ: … sobre estupidez e trabalho, que normalmente são a mesma coisa. Entretanto, nos intervalos das partidas de futebol, das viagens, das leituras e das horas passadas a ver as sitcoms The Office… TD: …lá está: seis episodiozinhos por série. Coisa de sonho. …Seinfeld, Curb Your Enthusiasm e Extras, pode ser que nove meses de férias sirvam de gestação para alguma coisa. Se, ou quando, uma boa ideia surgir, o Gato regressa. ‘Os caguinchas’ Os quatro, como grupo, estão aí para durar. Isso é evidente. Juntos, as conversas e decisões sobre trabalho fluem como uma suave linha ondulante, sem choques, solavancos ou cerimónias artificiais entre colegas, vantagem de uma camaradagem que vem de longe e vai muito além do trabalho. Tiago e Ricardo conhecem-se… TD: …desde pequenos. É possível que tenhamos tomado banho todos nus. ZDQ: É verdade, e eu interrompi-os. Foi na semana passada. … Miguel conheceu Ricardo, na Universidade Católica, foram colegas no curso de Comunicação Social. Os três acabaram a trabalhar nas Produções Fictícias (escreveram para o Programa da Maria e para o Herman SIC, onde passaram pela humilhação de ver o produtor Alexandre Valente baptizar de “lixo” alguns sketches que, mais tarde, reaproveitaram para o Gato, com o sucesso que se sabe). Aí, conheceram Zé Diogo, no final de 2000. Um dia, em 2002, uma amiga de Ricardo convidou-o para participar num espectáculo de stand-up comedy, no Centro Cultural de Belém. O humorista tentou convencer os outros, mas só se safou com um deles. Miguel e Tiago… ZDQ: … tiveram medo, os caguinchas! Foi assim que começaram a interpretar os seus próprios textos. No ano seguinte, chegou o convite de Fernando Alvim para participarem no programa da SIC Radical O Perfeito Anormal. E, em Abril, nasceu o blog Gato Fedorento, numa era em que rebentava a blogosfera. Em 2004, juntaram-se na televisão, pela primeira vez, com uma primeira série de sketches que revolucionaria o humorismo nacional: a Fonseca. Ganhavam 250 contos, a dividir pelos quatro, por cada episódio de 25 minutos (e como pagavam do seu bolso as roupas e os figurantes, chegavam a perder dinheiro). Muitas lágrimas de riso correram em frente dos monitores portugueses – os melhores sketches eram trocados via e-mail – até alcançarem o êxito generalizado de que gozam hoje. Após desertarem da SIC (não gostaram que os sketches passassem em canal aberto, quando o motivo para não serem aumentados era precisamente estarem numa estação por cabo, a SIC Radical), reuniram-se com responsáveis da TVI e da RTP. O resto da história já se conhece. ‘O preto nunca sai de moda’ Hoje, os Gato Fedorento são mais famosos do que a maioria dos ministros, mais temidos do que a maior parte dos comentadores, mais influentes junto do povo do que qualquer político. Custa a acreditar que o projecto tenha atingido este nível, ao olhar-se para os sinais de despreocupação completa, quando trabalham: a pose descontraída de Zé Diogo, reclinado no sofá como um xá persa, a “supervisionar” a pós-produção de um sketch; a pausa de Ricardo, para ver, numa televisão, um pedaço de um jogo de futebol, enquanto a equipa desespera por ele para gravar; os omnipresentes manuscritos rasurados de Tiago, que os estuda como um aluno enrascado, a minutos de entrar para um exame; o andar em círculo de Miguel, já no estúdio, a falar sozinho, em surdina, improvisando o que há-de dizer na apresentação do Tesourinho Deprimente. Tudo o que fizeram surgiu com um único propósito: o humor. Mas, em jeito de balanço, é bom recordar que a influência (mesmo que inadvertidamente) esteve sempre lá. O sketch que ridicularizava Marcelo Rebelo de Sousa, por exemplo, fez mais pelo “Sim” ao aborto do que qualquer campanha, asseguraram, na altura, muitos colunistas. As sátiras a José Sócrates incomodam mais o primeiro-ministro do que as intervenções da oposição. Uma piada sobre Pinto da Costa valeu-lhes um processo judicial (apesar de o Ministério Público ser pelo arquivamento, o presidente do FC Porto tornou-se assistente e o caso prossegue). O cartaz que gozava com os nacionalistas do PNR provocou uma séria discussão política, que levou até Pacheco Pereira a dizer que… RAP: … a questão essencial era que aquilo deu mais visibilidade ao cartaz dos nazis. Mas é óbvio que nenhum de nós é adepto da ideologia daqueles gajos… ZDQ: Embora vistam muito bem. TD: O preto nunca sai de moda. RAP: E, portanto, não temos nenhum interesse em dar-lhes maior visibilidade. Se o Pacheco Pereira diz que o efeito foi aquele, então, pelos vistos a coisa vai contra o que nós queríamos. Eu até não desgosto, porque acho que é preciso saber quem são aquelas pessoas. Assim, um gajo pode evitá-las. Isto, para dizer que os efeitos secundários não são propositados. Mas o humor… MG: … é mesmo para levar a sério. Quando tem piada, é humor. Quando não tem, é política. RAP: A não ser no caso da Nova Democracia. ‘Somos uns merdas’ O efeito watercooler show (expressão americana, criada por Seinfeld, para definir os programas que se tornam motivo de conversa no dia seguinte, no emprego) do Diz que é uma espécie de magazine é único, no panorama televisivo português, e tornou-se um passatempo nacional – que morre com o abandono dos Gato. Mas esse fenómeno… ZDQ: … só existe porque as pessoas não querem trabalhar. RAP: Tss, tss… As pessoas a falarem sobre nós em vez de discutirem a jornada desportiva. ZDQ: Estou a imaginar uns gajos à segunda: ‘Então, ontem viste o Gato? Não, ontem não deu. Ah, então vamos trabalhar. Não, vamos falar sobre outra coisa qualquer. TD: O que é que deu ontem? ZDQ: Um comentário sobre… RAP: Mabecos. A preguiça há-de sempre encontrar uma saída. Talvez seja mais uma piada – é quase impossível perceber-se quando estão a brincar ou a falar a sério -, mas eles são muito convincentes a desvalorizarem-se. E divertem-se a fazê-lo. ZDQ: Quando me perguntam qual o meu defeito, digo sempre que sou um mau carácter. E quanto à qualidade respondo ‘admito que sou um mau carácter’. RAP: Há gajos que, no defeito, põem uma qualidade em excesso, tipo demasiado perfeccionista. Ou então coisas que, no fundo, são defeitos dos outros, do género ‘pouca paciência para incompetências’. TD: O Zé Diogo é dado a sensibilidadezinhas, como as gajas. RAP: Pois. ‘Vocês não me convidaram.’ ‘Mas convidámos.’ ‘Ah, mas foi só uma vez.’ TD: Ou, então, ‘Foi a forma como disseste’. RAP: O Miguel é um picuinhas. TD: Não, é demasiado perfeccionista. MG: O Ricardo é o gajo com menos carácter. Esconde-se atrás da abstenção, em muitas votações entre nós. RAP: Só quando é preciso tomar decisões. Os Gato garantem que são e serão sempre os mesmos. Na hora da despedida, estão mais ricos, sim, mas continuam alérgicos a extravagâncias. MG: A nossa vida não mudou muito. Às vezes, as pessoas querem pagar-nos coisas. É engraçado isso só acontecer quando já não é preciso. RAP: Não ganhámos manias de estrelas. Mas devíamos ter ganho. TD: A paragem também é muito para despedirmos esta equipa toda e recrutarmos gente mais respeitosa, para acabar com este regabofe. ZDQ: Bom, os gajos normalmente andam fardados. TD: E não nos olham nos olhos. Os Gato Fedorento têm um truque infalível para criar uma bolha antivedetismo à sua volta. MG: Estamos sempre a recordar uns aos outros que somos uns merdas. Se um, de repente, se lembra de dizer ‘Eh pá, calma lá que eu sou uma estrela’, os outros rapidamente lhe provam, por A mais B, que não é verdade. Podem não se ver como estrelas, mas milhões de fãs esperam que os quatro amigos voltem a brilhar.
A despedida do Gato Fedorento
O maior fenómeno humorístico da actualidade abandona a televisão por tempo indeterminado. Porquê? Tente perceber na reportagem da VISÃO, oiça a versão integral da entrevista, veja as fotos e não perca a despedida dos Gato, em exclusivo para a VISAO.pt