Estávamos a 12 de novembro de 1975 e o ajuste de contas entre os partidários da legitimidade revolucionária e os seguidores da legitimidade eleitoral ia dar-se a qualquer momento. A guerra civil esteve por um fio, naquela semana, que desembocou no 25 de novembro, com a vitória dos militares moderados e apenas três baixas, no cenário mais crítico, junto ao quartel da Polícia Militar, na Ajuda, cercado pelos Comandos de Jaime Neves. Mas antes, nesse dia 12, uma multidão (depois estimada em 100 mil pessoas) aproximava-se da escadaria do antigo convento de São Bento, que albergava os deputados eleitos, a 25 de abril desse ano, para a Assembleia Constituinte, e onde funciona, hoje, a Assembleia da República. Mobilizados pelos sindicatos da construção civil, pela extrema-esquerda civil e militar e pelo PCP, os manifestantes impunham um cerco (que duraria 36 horas) aos deputados, que se mantiveram sequestrados, sem acesso a comunicações ou a mantimentos até ao dia seguinte, 13 de novembro. Senhor de uma intuição lendária, o deputado e líder do PS, Mário Soares, mal pressentiu o perigo, chamou os seus lugares-tenente Jaime Gama e Manuel Alegre, para escaparem por um corredor que ele conhecia, e que ia dar à residência oficial do primeiro-ministro, conseguindo sair quando os operários estavam a chegar às escadarias exteriores da Assembleia. Gama voltou para trás, para ir “buscar uns papéis” mas Soares insisitiu com Alegre: “Venha, venha, não espere, não espere…”. Essa rápida reação permitiu ao líder socialista mandar um alerta nacional e internacional e desencaderar uma ação de apoio à Constituinte, em ligação com Presidente da República, Francisco da Costa Gomes, para que se levantasse o cerco. Numa atitude de absoluta falta de solidariedade com os seus colegas parlamentares, os deputados do PCP e o deputado único da UDP aceitaram abandonar o edifício, autorizados (e aplaudidos) pelos sitiantes.
Farejando o perigo, Mário Soares saiu a tempo da Assembleia para dar o alarme nacional e internacional e coordenar, com Costa Gomes, as operações que levaram a levantamento do cerco
A operação replicava a situação vivida na Rússia, em 1918, quando, depois de os bolcheviques de Lenine e Trotsky serem inapelavelmente derrotados, em eleições livres, e no dia em que a Assembleia Constituinte russa iniciava os trabalhos, uma força da “vanguarda revolucionária” de Lenine impediu a continuação dos trabalhos, encerrou a Assembleia e iniciou a guerra civil. Os acontecimentos estavam a ser minuciosamente “copiados”, pelo que, quando, a 13, os deputados conseguiram sair, sob escolta e debaixo das invetivas dos manifestantes, PS, PPD e CDS transferiram os seus grupos parlamentares para o Norte, dispostos a retomar os trabalhos da Constituinte no Porto. Na ocasião, o Governo, agora chefiado pelo almirante Pinheiro de Azevedo, depois da queda de Vasco Gonçalves, também era cercado e sequestrado: o almirante era, no quadro das circunstâncias da época, um “moderado”, que tinha travado o avanço da vanguarda revolucionária.
As imagens desses dias de brasa, com operários de fato-macaco a espreguiçarem-se pelos vetustos sofás dos Passos Perdidos, remetem para a tomada do Palácio de Inverno, em Petrogrado (São Petersburgo), depois Leninegrado, na que viria a ser a União Soviética. Naquelas horas de tensão, conjeturou-se que os deputados dos partidos apelidados de “burgueses” poderiam ser chacinados e, nos dias seguintes, perante a falta de condições para reabrir a Constituinte, na Invicta, muitos foram para as suas terras, preparar as armas para combater na iminente guerra civil. Vários partidos dispunham, com efeito, de armamento de guerra, nomeadamente, espingardas automáticas G3. E o próprio PS distribuiu 500 dessas armas pelos seus militantes, para combaterem os comunistas e a extrema-esquerda. O comandante do Copcon (Comando Operacional do Continente), Otelo Saraiva de Carvalho, que tinha sido, também, o comandante operacional do golpe militar de 25 de abril de 1974, alinhado com a extrema-esquerda militar e um dos homens mais poderosos do País, afirmara que as milhares de armas, entretanto desaparecidas dos quartéis, “estavam em boas mãos”. De facto, algumas estavam.
Os deputados do PS, PPD e CDS transferiram-se para o Norte, com a ideia de retomarem, no Porto, os trabalhos da Constituinte
Quando a 18 de novembro, os trabalhos foram retomados normalmente, o deputado do PCP, Octávio Pato – candidato presidencial em 1976 – viria a legitimar a ação dos manifestantes, avisando para os efeitos de uma segunda manifestação, a 16 de novembro: “Não se pode governar sem o apoio do proletariado e das massas trabalhadoras e sem a adesão da vanguarda organizada [leia-se a “vanguarda revolucionária”, segundo o modelo bolchevique, que havia encerrado a Assembleia Constituinte russa, depois de ter perdido as eleições para o Partido Socialista dos Revolucionários, tal como, em Portugal, o PCP as perdera para o PS]. “No Portugal de hoje”, prosseguia Pato, “Não é possível governar sem o Partido Comunista Português e muito menos contra o Partido Comunista Português!”
Por essa altura, o próprio Governo de Pinheiro de Azevedo chegou a suspender a sua atividade – o Governo entrou em greve, como se dizia… – confrontando o PR (sempre muito ambíguo…) com a falta de condições. Pinheiro de Azevedo, um exímio utilizador do vernáculo na política, depois de mandar os que o chamavam “fascista” para a “bardamerda”, arengava, aos microfones da RTP (a televisão do Estado era a única operadora): “É a segunda vez que sou sequestrado, não gosto de ser sequestrado, é uma coisa que me chateia, pá…”
Muitos deputados constituintes foram para as suas terras, para organizarem uma possível resistência armada
Notas à margem: 1. O conceito de legitimidade revolucionária é um oximoro, porque só a vontade do povo, livremente expressa em votos, é legítima. 2. Jaime Neves, o comandante militar que deu o golpe de misericórdia sobre os revolucionários, no 25 de Novembro, foi o mesmo capitão de abril que escoltou o líder do PCP, Álvaro Cunhal, desde o aeroporto de Lisboa, onde chegou, regressando do exílio, a 30 de abril de 1974. 3. O cerco anunciado pelo Chega, à sede do PS, este sábado, é apresentado, pelo partido de André ventura, como uma “concentração popular simbólica”. 4. O grande cordão humano de que há registo, em Portugal, ocorreu em 1999, em solidariedade com Timor; as imagens impressionantes do acontecimento, que envolveu centenas de milhares de pessoas, vestidas de branco, pelas ruas do País, terão sido decisivas para convencer o presidente dos EUA, Bill Clinton, a pressionar as autoridades de Jacarta, no sentido de aceitarem, no território timorense, uma força da ONU que estancasse as atrocidades das milícias pró-indonésias.