A resposta do Serviço Nacional de Saúde (SNS) na área da cirurgia oncológica está cada vez mais distante do estabelecido pelas Metas de Saúde 2020 – programa do Governo com prioridades para o setor, que previa que o Tempo Máximo de Resposta Garantido (TMRG) para quem descobriu que tem cancro e espera ser operado fosse reduzido para menos de 10%.
A razão não se prende tanto com a pandemia, até porque os serviços oncológicos foram, desde março de 2020, logo classificados como áreas de não atendimento Covid-19. Além disso, os dados que o Governo e a Direção-Geral da Saúde (DGS) detêm não são suficientes para falar do verdadeiro impacto do coronavírus.
De acordo com uma auditoria do Tribunal de Contas (TdC), que passou a pente fino as soluções do Estado neste tipo de cuidados de saúde e à qual a VISÃO acedeu, “se, em 2017, 18,5% das cirurgias foram efetuadas para além do TMRG, e o tempo médio de espera global atingia os 31 dias”, já “no ano de 2020 essa proporção atingiu os 24,6% e o tempo médio de espera chegou aos 38 dias”. Sendo que na área da Administração Regional de Saúde (ARS) do Algarve o tempo médio de espera chegou aos 47 dias.
Permanecem por apurar e monitorizar vários indicadores relativos ao acesso a cuidados oncológicos, nomeadamente os tempos e listas de espera nas primeiras consultas hospitalares na doença oncológica, bem como noutros cuidados de saúde essenciais neste contexto, como exames de diagnóstico e terapêutica específicos
Tribunal de contas
Os auditores admitem que “a produção cirúrgica aumentou no triénio 2017-2019 (4,8%), mas as cerca de 141 mil cirurgias realizadas neste período não deram resposta à respetiva procura de cerca de 158 mil novas inscrições de utentes para cirurgia, que aumentou 6% no período”.
Mais: o diferencial entre os que se inscreveram e os que conseguiram chegar a uma sala de operações acabou por aumentar a Lista de Inscritos para Cirurgia (LIC) de oncologia. No final de 2019, “estavam inscritos 5.900 utentes, o que equivale a um acréscimo, face ao final de 2017, de 1.299 utentes (mais 28,2%) que estavam a aguardar”, lê-se no relatório de 149 páginas, que verá a luz do dia esta quinta-feira e cujas conclusões foram enviadas pelos três juízes que o assinam ao Ministério Público, que funciona junto do TdC.
Tais atrasos até se poderiam atenuar com a transferência de doentes para outras unidades do SNS com resposta mais rápida ou para o setor privado – que apenas realizou 1168 das 187.988 cirurgias no período em análise. Mas a taxa de cancelamento de 2017 a 2020 foi de 96%. Ou seja, só 4% doentes aceitaram rumar a um hospital que não o da sua origem. Várias razões foram identificadas: desde a simples recusa do doente até ao óbito do mesmo entretanto, e inclusive erros administrativos.
Mais e melhor informação é necessária, alertam juízes
Aponta o juiz relator Luís Cracel Viana que, apesar de a auditoria ter usado “indicadores para medição do acesso a cuidados oncológicos no SNS”, parte da informação nesta área carece de melhorias. A começar pelo facto de não existir tempos de resposta “definidos para patologias ou grupos de patologias oncológicas específicas”.
“O Ministério da Saúde continua a não dispor de sistemas de informação que disponibilizem, com rigor e oportunidade, informação transversal e global sobre o percurso dos utentes no SNS, incluindo os tempos de espera”. Também o Sistema Integrado de Gestão do Acesso (SIGA SNS), surgido em 2017, “ainda não se encontra plenamente desenvolvido e implementado”.
A juntar a um leque de falta de informação, “encontra-se por aprovar a respetiva regulamentação, a concretizar por despacho do membro do Governo responsável pela área da saúde, incumprindo os prazos determinados, que variavam entre 90 e 180 dias, para cada uma das componentes” daquele sistema – como a referenciação para primeira consulta hospitalar, para cirurgias.

Perante este cenário, a auditoria sinaliza que “em resultado das limitações dos sistemas de informação utilizados, permanecem por apurar e monitorizar vários indicadores relativos ao acesso a cuidados oncológicos”.
Não há que ficar com a noção de que o relatório aponta crítica apenas ao Ministério da Saúde por estas falhas. As críticas também se estendem à falta dos “relatórios semestrais, da responsabilidade das ARS, no âmbito da monitorização regional”, que “não têm vindo a ser elaborados”. Ou aos “reportes da DGS, relativos à avaliação e monitorização dos programas de rastreio, iniciados em 2015, e que deveriam ter periodicidade anual”. Estes “têm sido publicados com cada vez maior desfasamento face ao ano a que se referem”, concluiu-se.
Dinheiro para rastreios chegou atrasado
Se no acesso às cirurgias e no percurso do doente oncológico dentro do SNS foram detectadas várias falhas, à priori também foram encontrados problemas: “nos rastreios oncológicos de base populacional não foram atingidos os objetivos de cobertura geográfica e populacional previstos para 2020, observando-se neste ano uma quebra na execução dos programas de rastreio”.
A região de Lisboa e Vale do Tejo foi a que teve piores indicadores nos rastreios do cancro da mama e útero. “A baixa cobertura geográfica na ARS de Lisboa e Vale do Tejo (LVT), comparativamente às restantes ARS, no rastreio do cancro da mama e do colo do útero, foi responsável pelo incumprimento da meta de cobertura geográfica global definida para 2020”.
Em 2021, algumas ARS ainda não tinham recebido qualquer valor [pelos rastreios ao cancro desde 2017]
Relatório do Tribunal de contas
Segundo com o TdC, o ano de 2020 “ficou marcado pela suspensão da atividade dos rastreios, com particular incidência nos meses de março, abril e maio, decorrente da situação epidemiológica provocada pela COVID-19, tendo ocorrido fortes reduções da atividade, face a anos anteriores”. Aliás, é dado o exemplo do rastreio do cancro da mama, em que o número de mulheres convidadas “foi 46% inferior”, “o número de mulheres efetivamente rastreadas diminuiu em 49%” e o “número de casos positivos referenciados foi 38% inferior” aos anos anteriores.
Foi isto culpa da pandemia? O Tribunal de Contas relata uma outra realidade – a falta de financiamento destes programas. “A sustentabilidade financeira dos programas de rastreio oncológico tem vindo a ser apontada, nos relatórios de monitorização publicados pela DGS, desde 2016, como uma condicionante à sua efetiva implementação e expansão, sendo indicada como possível solução a criação de uma linha de financiamento específica”, aponta-se, indo à raiz do problema. “Quatro das cinco ARS salientaram existirem constrangimentos na capacidade hospitalar de resposta às necessidades identificadas pelos programas de rastreio”; ou seja, falta de dinheiro.
O programa de rastreios” foi criado para vigorar durante dois anos, no máximo até 31 de dezembro de 2018, com a atribuição de uma dotação orçamental global de 35 milhões de euros e uma taxa máxima de financiamento de cada projeto de 85%, na forma de subvenção não reembolsável”. “Os pagamentos seriam efetuados pela ACSS [administrações centrais do sistema de saúde] em três tranches, estando a transferência das segundas e terceiras tranches dependentes da apresentação dos documentos justificativos de despesa e quitação da despesa da tranche anterior”.
Só que “este cronograma não foi cumprido, uma vez que as transferências dos montantes atribuídos às entidades apenas se iniciaram durante o ano de 2018, através de uma linha de financiamento específica introduzida nos contratos-programa com as unidades hospitalares do SNS e, em 2021, algumas ARS ainda não tinham recebido qualquer valor”.
2020 – um ano difícil de analisar pelo tribunal
Uma das últimas conclusões do TdC é que as tais “limitações dos dados disponíveis no sistema” acabaram por não permitir “concluir objetivamente sobre o impacto da pandemia no acesso à primeira consulta hospitalar na área oncológica”.
“Ainda assim, a análise de dados parcelares relativos à atividade dos IPO, embora não extrapolável para o universo, permite constatar uma redução nos novos pedidos de consulta, a diminuição da atividade e o aumento dos tempos médios de espera, entre 2019 e 2020”, refere o documento.
Além disso, a pandemia “teve como principal impacto, na área da cirurgia oncológica, a diminuição da identificação de necessidades cirúrgicas, com as novas inscrições a diminuírem 4,3% em 2020, face ao ano anterior”.
A tudo isto, durante o período de contestação das conclusões, o Governo veio alegar que, em 2021, já se começou a inverter parte dos problemas sinalizados pela auditoria, atribuindo parte deles à pandemia – dando com exemplo o aumento dos rastreios face a 2019.
Houve um aumento do número de pessoas operadas no ano passado em relação aos dois anos anteriores, assim como dos inscritos em lista de espera para uma primeira consulta. Daí que o tempo de espera se mantenha elevado (cerca de 51,3 dias) para uma consulta, face a 2019 (48,8 dias). Ainda assim, o Ministério da Saúde aponta que houve uma descida da espera face a 2020, ano da pandemia.
Quanto aos sistemas de informação, a Tutela assegura que enquanto alguns mecanismos de tratamento de dados já estão em fase de conclusão, outros irão surgir com base nas orientações que já terão sido dadas quer à DGS, quer à Administração Central do Sistema de Saúde.