O Movimento Zero não foi uma ideia original. Corria abril de 2018 quando, em Palência, Espanha (localidade a 260 quilómetros a norte da capital Madrid), um grupo de elementos da Polícia Nacional decidiu criar a Jusapol, uma associação que pretendia unir sob a mesma bandeira os agentes da Polícia Nacional e da Guarda Civil daquele país. Anunciada como uma frente unida das forças de segurança espanholas, para reivindicar salários equiparados aos dos polícias das regiões autónomas – da Catalunha (Mossos d’Esquadra), País Basco (Ertzaintza) e outros –, a associação constituiu-se a partir do guião nacionalista, na sequência do calor fraturante da crise de outubro de 2017, que colocou frente a frente os governos espanhol de Mariano Rajoy e catalão de Carles Puigdemont, e culminou com a proclamação unilateral da independência da Catalunha.
Nos meses seguintes, a Jusapol conseguiria virar do avesso o panorama sindical das polícias espanholas. Alegando que 13 mil agentes da Polícia Nacional e da Guarda Civil tinham ficado de fora dos acordos para aumentos salariais, assinados entre sindicatos e Governo espanhol, a recém-criada associação – com grande capacidade de mobilização nas redes sociais – conseguiu levar ao Congresso espanhol uma iniciativa legislativa popular (assinada por cerca de 550 mil pessoas), que permitiria aprovar, em novembro de 2018, uma nova regulação para a equiparação salarial entre polícias.
Motivada pelo sucesso, os membros da Jusapol deram o passo seguinte para tomar o controlo no interior da classe profissional, criando dois novos sindicatos: o Jupol (Justiça Policial), que representa os elementos da Polícia Nacional, e o Jucil (Justiça para a Guarda Civil), em nome da Guarda Civil. O Jupol – descrito pela comunicação social espanhola como “o sindicato mais à direita que já existiu em Espanha” – tornar-se-ia, num relâmpago, o segundo maior sindicato da Policia Nacional, arrasando a concorrência, em junho de 2019, nas eleições para o Conselho Nacional da Polícia – órgão sem poder executivo, mas com muita influência dentro da instituição, sobretudo em matéria de condições de trabalho –, obtendo perto de 30 mil votos dos pouco mais de 48 mil eleitores. Desta forma, o novo sindicato inaugurava uma nova era, virada à direita, colocando um ponto final a quatro décadas de hegemonia do Sindicato Unificado da Polícia (SUP), conotado com o centro-esquerda, que liderava aquele órgão desde que Espanha vive em democracia.

Modelo importado para Portugal
O exemplo do país vizinho foi importado para Portugal, surgindo assim o Movimento Zero, criado em maio de 2019 – como reação à condenação de oito agentes da PSP da esquadra de Alfragide, na Amadora, por sequestro e agressões a jovens negros da Cova da Moura. Os líderes do grupo português, anónimo e inorgânico, composto por elementos da PSP e GNR (mas que também chegou a contar com guardas prisionais e seguranças privados, agora mais distantes) –, “sonhavam”, por esta altura, conseguir, deste lado da fronteira, o mesmo impacto do congénere espanhol.
Nas primeiras manifestações em que esteve presente, o Movimento Zero pareceu, de facto, poder vir a ter essa capacidade – repetindo, em Portugal, o exemplo da Jusapol. Foi precisamente o que se sentiu na ação de protesto que, a 21 de novembro de 2019, colocou milhares de polícias nas ruas da capital, e em frente à Assembleia da República. Na ocasião, o grupo foi mesmo capaz de tomar o controlo da manifestação, perante a visível surpresa (e desorientação) dos líderes da Associação Sindical dos Profissionais da Polícia (ASPP/PSP) e da Associação dos Profissionais da Guarda (APG/GNR), organizadoras da jornada de luta, que, naquele momento, se viram forçadas a deixar todas as decisões nas mãos de desconhecidos.
O episódio serviu para fazer disparar os alarmes: no Governo, nas polícias e nos sindicatos. Detetado pelo radar dos Serviços de Informação e Segurança (SIS), o Movimento Zero acabaria por se ver cercado por processos disciplinares abertos pela direção nacional da PSP, liderada por Magina da Silva, e pela GNR, comandada por Rui Clero.
Campanha pela extrema-direita
O Movimento Zero está, hoje, mais discreto, embora sem ter ainda capitulado. O grupo continua a manter relações de afinidade e proximidade com os sindicatos da Jusapol, uma relação visível na troca frequente de cumprimentos e solidariedade nas redes sociais. Os canais de ambos os grupos (no Facebook e Telegram) utilizam, aliás, praticamente a mesma linguagem e simbologia – é recorrente a publicação de notícias, fotos e vídeos que têm como principal objetivo plantar, nos seguidores, uma noção, muitas vezes artificial, de aumento da violência e insegurança. A corrupção e a impunidade – com habituais críticas aos setores da política e da justiça dos respetivos países – são igualmente temas que, invariavelmente, “aquecem” o ambiente e a discussão dentro destas comunidades digitais.
Outro ponto em comum, é a conhecida proximidade dos grupos com a extrema-direita portuguesa e espanhola – e, consequentemente, de partidos como o Chega e o Vox. Aquando da sua constituição, a Jusapol girava perto do Ciudadanos – o partido de Albert Rivera que teve o mesmo ponto de partida (a crise independentista catalã) –, mas a presença de elementos da extrema-direita nas fileiras das forças de segurança espanholas (fenómeno a que Portugal não escapa), permitiu, gradualmente, uma aproximação ao Vox, de Santiago Abascal.
De tal maneira, que os resultados das eleições para a Junta da Andaluzia, no final de 2018, acabariam por ser explicados, à lupa da comunicação social local, pela capacidade de mobilização da Jusapol nas redes sociais (dos seus membros, familiares e simpatizantes), que terá permitido ao Vox obter quase 400 mil votos e a eleição de 12 deputados para a assembleia daquela comunidade autónoma (composta por 109 deputados), quando, três anos antes, o partido tinha apenas somado pouco mais de 18 mil votos. O resultado eleitoral permitiu formar uma coligação à direita entre PP, Ciudadanos e Vox, que permitiu a Juan Manuel Moreno (PP) tornar-se o primeiro presidente não socialista da região em 37 anos.
Deste lado da fronteira, André Ventura mantém o seu capital de apoio no universo das polícias – o que ficou provado na já referida manifestação de 21 de novembro de 2019, quando o líder do Chega foi recebido em apoteose por milhares de seguidores do Movimento Zero, e convidado para subir ao palanque para discursar. E ainda nas últimas autárquicas, o partido de extrema-direita recrutou para o seu partido dois elementos do setor: Pedro Magrinho, chefe da PSP em Sintra, foi candidato à União das freguesias de Santa Iria de Azoia, São João da Talha e Bobadela, Loures (colocando ali o partido como a quarta força mais votada e obtendo dois mandatos na Assembleia de Freguesia); e Hugo Ernano, militar da GNR – condenado a quatro anos de prisão, com pena suspensa, pela morte de um menor numa perseguição policial –, concorreu à Assembleia Municipal de Odivelas (também, neste caso, o Chega ficou em quarto lugar e conquistou três assentos naquele órgão).