1 – As primeiras notícias chegaram no verão. A procuradora Ana Carla Mendes de Almeida, magistrada do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) que tem a seu cargo a investigação do caso das golas anti-fumo e que investigou uma megafraude relacionada com a obtenção de fundos europeus na Associação Industrial do Minho (AIMINHO), foi a escolhida por um comité de peritos internacional para a Procuradoria Europeia, com base no seu currículo e em entrevistas, mas o Governo optou por indicar outro magistrado que também tinha estado a concurso: o procurador José Guerra. Só houve três países – Bélgica, Bulgária e Portugal – que não seguiram a escolha do júri internacional para aquele organismo que irá investigar fraudes com dinheiros europeus.
2 – A confusão parece ter começado em fevereiro de 2019 quando, num plenário do Conselho Superior do Ministério Público, o órgão de gestão e de disciplina dos procuradores decidiu ajustar as regras do concurso, determinando que o critério da experiência seria interpretado como a antiguidade na carreira e não com o tipo de trabalho desempenhado nos últimos anos. E assim, seguindo o critério da antiguidade, o procurador José Guerra estava à frente de Ana Carla Almeida, devido ao tempo de serviço. Ficava em 21º lugar, contra o 221º lugar da magistrada.
3 – O caso só volta à ordem do dia quando, a 30 de dezembro, o Expresso e a SIC noticiam que o Governo português prestou informações falsas sobre o currículo do procurador José Guerra, numa carta enviada ao Conselho da União Europeia, em novembro de 2019. Nessa missiva, repete-se seis vezes que José Guerra é procurador-geral adjunto, a categoria mais alta no Ministério Público, quando aquele é apenas procurador. Diz-se também que José Guerra liderou a investigação do processo UGT, quando na verdade a investigação esteve a cargo de outros três procuradores e José Guerra apenas representou o Ministério Público em julgamento.
4 – No dia seguinte, o Ministério da Justiça admitiu que existiam “dois lapsos” no CV de José Guerra, prometeu corrigir e desvalorizou a polémica, insistindo que esses dados curriculares não foram determinantes para a escolha daquele procurador para a Procuradoria Europeia. O Ministério de Francisca Van Dunem reforçou ainda que, dos três candidatos a concurso, José Guerra era quem tinha mais anos de serviço e que a indicação de que era “detentor da categoria de procurador-geral adjunto não é referida no documento como fator de preferência ou de diferenciação, mas como simples elemento de identificação ou tratamento e, por isso, não constituiu critério de preferência, nem interferiu, como parâmetro diferenciador, na decisão do Conselho da UE”.
5 – No dia 2, a ministra dá uma entrevista à RTP e fala de um “empolamento injusto” que envenenava a vida política. Frisou que José Guerra foi o escolhido porque era “o melhor” candidato, exlicou que a carta era “uma nota de trabalho do Ministério da Justiça para o senhor embaixador” e justificou-se com meros lapsos dos serviços. “É um erro, os serviços mandam dezenas de notas”. Acrescentou ainda que indicaram José Guerra porque esse procurador tinha sido escolhido “pelo Conselho Superior do Ministério Público entre três”. “Mais, é a pessoa que fica em primeiro lugar e a outra candidata de que tanto se fala fica em terceiro lugar com nove pontos de diferença. Essa pessoa está 221 lugares acima”, adiantou.
6 – No dia 4, segunda-feira, o caso faz a primeira baixa e o “sacrificado” é o diretor da Direção Geral da Política de Justiça (DGPJ), Miguel Romão. O ministério da Justiça confirma em comunicado que aceitou a sua demissão.
7 – Umas horas depois, começa a circular um comunicado não assinado, mas com o carimbo da DGPJ, em que o diretor-geral demissionário comunica que a informação que continha os tais lapsos tinha sido “preparada na sequência de instruções recebidas” pelo ministério “e que o seu conteúdo integral era do conhecimento do gabinete da senhora Ministra da Justiça” há “mais de um ano” (quando a ministra, em entrevista à RTP, tinha dito que só tinha tido conhecimento do conteúdo daquela carta através da comunicação social). Diz ainda que se tratara de um erro nos serviços, ao qual era alheio, mas como diretor-geral daquele departamento teria de assumir a responsabilidade.
8- Este comunicado é publicado na página da DGPJ mas ao fim de umas horas desaparece, sem que ninguém preste esclarecimentos sobre esse desaparecimento. O gabinete de Francisca Van Dunem não terá gostado de ver a informação partilhada daquela forma, horas depois de a ministra ter estado reunida com Miguel Romão e de o ministério ter comunicado a sua demissão.
9 – Alguns órgãos de informação dão uma interpretação errada ao conteúdo do comunicado. Miguel Romão quebra o silêncio para esclarecer à RTP que apenas recebeu instruções para que fosse feito o currículo de José Guerra e não para alterar currículos ou enviar indicações erradas.
10 – Também a magistrada Ana Carla Almeida quebra pela primeira vez o silêncio sobre o caso, admitindo vir a impugnar o concurso tendo por base a informação enviada pelo governo com dados falsos sobre o currículo do procurador.