Deus no Céu e Sá Carneiro na Terra… bem, na verdade, talvez no Céu, também. O fundador histórico do PPD parece ser a referência política deste novo Chega, que nasceu hoje, purificado de fetichismos nazi-fascistas, mais abrangente e armado em guarda-sol da direita portuguesa. Pelo menos, a julgar pelo discurso de André Ventura. Embora Sá Carneiro possa estar a revolver-se no túmulo, tendo em conta algumas das ideias defendidas pelo Chega, Ventura por duas vezes o invocou, a primeira das quais num elogio, a segunda num exemplo: “Desde que Sá Carneiro morreu, nunca mais houve um político que defendesse os portugueses” (já agora, o amigo Passos Coelho agradece…). E, mais tarde, “como disse Sá Carneiro, a política sem risco é uma chatice”.
Nada inocente, a apropriacão de Sá Carneiro funciona como uma apropriacão de toda a direita. Porque “não foi o Chega que se manifestou hoje, mas a direita, pela primeira vez, em 40 anos, fora de campanhas eleitorais “. Verdade ou mentira (houve sempre várias manifestações, de várias direitas, incluindo as dos amigos do PNR, alguns dos quais integravam, discretamente, a manif deste sábado…), a frase de efeito permite a Ventura marcar terreno, como um líder de amplo espectro.
A sua inteligentíssima estratégia ganhou pontos, mau grado o discurso básico e sofrível, do ponto de vista da oratória, onde o decibel se sobrepõe ao argumento. E mau grado a opinião “sincera” de uma jovem militante: “Não foi mau. Mas devia ter estado o triplo das pessoas”. Ainda assim, os mil a 1500 participantes permitiram o cumprimento de mínimos. E as palavras triunfantes de André Ventura revelam mais alívio do que euforia: ainda lhe falta comer muitos alqueires de sal até chegar a uma Fonte Luminosa…A manifestação, que decorreu sem incidentes e totalmente depurada de qualquer símbolo de extrema direita, até foi enfeitada por alguns lusoafricanos, como o entusiasta portador de uma bandeira nacional que, à minha pergunta sobre de onde veio, respondeu com uma ironia bem humorada desarmante: “Do Congo…”. Agora a sério? “A sério, sou daqui, de Lisboa”. Mas não deu o nome porque não dá entrevistas…
“Olha as distâncias! Isto não tem nada que saber, é fazer como PC”, diz um elemento da organização, de bandeira de Portugal numa mãe e outra do Chega na outra.
“Olha para isto, somos muitos. Isto se fosse há cinco anos não se podia sair à rua”, alegra-se um manifestante de Tshirt preta com letras a dizer Portugal e a fazer sobressair os músculos. Entre as muitas tatuagens, lá estava a Cruz de Cristo no braço, a encarnado. Diz que é fuzileiro, que o pai era muito conhecido nas polícias. “Até fazia algemas”, orgulha-se.
Mais abaixo, um outro diz que veio do Seixal, vive lá desde que entrou para a Marinha. À frente, segue um homem de boina vermelha escura debruada a preto dos Comandos.
Mas era a Senhora de camisola de flores cor de rosa quem mais gritava. “Políticos elitistas! A mama é boa!!!” Toda ela é expansiva. Veio sozinha, o marido não a quis acompanhar “ele dizia, não vás, vou lá eu agora para essa coisa! Mas eu vim, tinha de vir. E não tenho medo da Covid” dizia a quem quisesse ouvir. Pouco depois, pegou-se à conversa com um senhor de cabelos brancos. “O meu cunhado era motoqueiro, era da esquerda agora esta tudo no Chega! Estava para vir mas não conseguiu”. Detesta os media: “ a comunicação social está toda comprada, a tvi e a sic, são todos feitos, é a mesma merda“.
Arrelia-se às vezes enquanto fala. “Grandes porcos, nojentos fanáticos, o que eles tem feito ao André Ventura!? Acham que as pessoas andam todos a dormir? Ele é pelas pessoas que trabalham e que lutam! Os outros é roubar à força toda, esses ladrões. É tachos para os sobrinhso, afilhados o raio que os parta!” A voz até se some com a comocão. “O meu pai era emigrante na França, o Ventura tem muitos imigrantes a apoia-lo. Nao vêm, mas depois votam nele. Mas isto está tudo corrupto. Nas mesas de voto há muitos refugiados e, sabe-se lá, podem fazer vigarices!” Deixou de acreditar, perdeu a fé. “O Marcelo desiludiu-me muito. Eu votei nele, mas desiludiu-me muito. Agora vem o André, vai ser ele!”
À medida que se avançava na Avenida, a manifestação encorpava um pouco. “Isto está cheio! Está a chegar lá à frente! Devem ser uns 5000”. “Eh pá, não exageres!”, responde o outro. Dois homens começam em conversa de circunstância, não se conhecem. “Uma palmada num bebé, basta uma. Aprende logo! Nós assim sabemos que se fizermos algo de errado, temos uma punição. Mas agora ninguém sabe!”
Quase a chegar aos Restauradores, passam apressados em sentido contrário três jovens de coletes do Chega, fazem parte da organização. “Sim, o tipo tinha uma suástica tatuada no pulso!”, diz um deles. “A sério!?”, pergunta aparentemente incrédula a rapariga. A conversa continua mas já não é perceptível.
Pelo caminho , o desfile, que não foi antagonizado por ninguém, torna ridícula a tirada do vitimizado líder, quando diz, como se alguém lhe quisesse fazer mal, “mesmo que acabem comigo, nós vamos continuar”.
Honra lhes seja, no Marquês de Pombal não se viram autocarros, ao contrário do que acontece noutros partidos mais implantados. Mas têm organização. A segurança de Ventura, se existe, é discreta. Militantes de colete identificador conduzem, atentos, o rebanho. E uma voz saida da manif, ironiza, quando comerciantes curiosos assomam às portas das lojas: “Fechem as portas! Olhem só, tantas montras partidas!”.O povo do Chega, homens e mulheres de todas as idades e de todas as classes sociais, parece inodensivo e ordeiro. Alguns tios de Cascais, que vieram em romaria, acabam a tarde a lanchar na esplanada da Pastelaria Néné, na Rua Augusta. Parecem, igualmente, boas pessoas, mesmo quando um voz histérica se insurge contra uma foto do Querido Líder publicada, há minutos, no site da VISÃO (a bem dizer, ninguém a ouve…). Gente aparentemente normal, numa manifestação aparentemente banal. Será que é precisamente com isto que devemos assustar-nos?… Ou o Chega, prometendo, a cada manifestação da esquerda, uma da direita, na semana seguinte, acaba de entrar no sistema?…