Se foram feitas obras ilegais em terrenos da Herdade da Comporta – como as dezenas que a VISÃO noticiou a 26 de julho -, foi porque o poder local e o poder central ignoraram os avisos. É pelo menos esta a convicção de uma antiga responsável pela direção de serviços de gestão territorial da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR) do Alentejo.
Maria Cancela d’Abreu, que ocupou estas funções entre 2002 e 2007, diz à VISÃO que “durante um longo período a CCDR do Alentejo esteve atenta e promoveu com rigor as diligências que lhe competiam, não tendo alcançado a adequada colaboração das Administrações Central e Local”.
Em 2002, por exemplo, a CCDR do Alentejo terá detectado “uma construção nas dunas”, em zona REN (Reserva Ecológica Nacional), tendo enviado então um pedido de informação à Câmara Municipal de Alcácer do Sal. “Não tendo obtido resposta, remeteu aos serviços de inspecção do Ambiente e Ordenamento do Território um levantamento topográfico e fotográfico de todas as construções identificadas como ilegais.”
E este não terá sido caso único, segundo o relato da antiga funcionária daquele organismo: “Entre 2002 e 2009 foram efectuadas pela CCDR do Alentejo mais de duas dezenas de diligências junto da Câmara Municipal [de Alcácer do Sal] e dos referidos serviços de inspeção.” Em resposta, os serviços de inspeção do Ambiente e do Ordenamento do Território responderiam “recorrentemente” que aguardavam “resposta da autarquia”. Entre as diligências levadas a cabo pela CCDR do Alentejo “constarão os levantamentos topográficos e fotográficos das referidas construções atualizados anualmente”.
Nos últimos anos, segundo uma auditoria da Inspeção-Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território (IGAMAOT) foram feitas mais de cem obras ilegais nos terrenos da Herdade da Comporta, sobretudo no condomínio privado dos Brejos da Carregueira, onde a maioria dos proprietários tem Espírito Santo no nome, apelido francês ou raízes aristocráticas. Em 22 casos, estas obras terão mesmo avançado com licenças de construção dadas pela própria Câmara de Alcácer do Sal.
A auditoria homologada pelo ex-ministro Jorge Moreira da Silva, e que a VISÃO revelou a 26 de julho, não poupa críticas à autarquia, que favoreceu “a reincidência dos infratores” e “não considerou os interesses ecológicos”, permitindo ou ignorando construções em zona protegida. A mesma auditoria usa a palavra “inércia” para descrever a forma como a CCDR do Alentejo terá atuado: apesar de ter detetado algumas das infrações e de ter manifestado a intenção de embargar algumas construções, diz a auditoria, aquela entidade não teria acionado os mecanismos para “sancionar a atuação dos infratores”, permitindo a “perenidade de situações ilegais”.
Carlos Beirão da Veiga, administrador da Herdade da Comporta, Louis-Albert de Broglie – o aristocrata francês que oferece 159 milhões de euros pelo fundo da Herdade da Comporta, cuja venda foi adiada para setembro -, e a condessa Albina du Boisrouvray, madrinha da filha da princesa Carolina do Mónaco, são proprietários de três lotes nos Brejos da Carregueira que viram construções autorizadas pela Câmara Municipal de Alcácer do Sal quando, à luz da lei, nunca poderiam ter sido licenciadas.
As circunstâncias como estas licenças de construção foram dadas estão agora a ser investigadas pela Polícia Judiciária (PJ) e pelo Departamento de Investigação e Ação Penal de Setúbal em quatro processos-crime. Três deles saíram da PJ de Setúbal com propostas de acusação por fortes indícios de corrupção, tráfico de influência, recebimento indevido de vantagem, falsificação de documentos e violação das regras de construção. Já há dez arguidos constituídos, entre eles o administrador da Herdade da Comporta, o ex-presidente da Câmara de Alcácer do Sal (Pedro Paredes), uma vereadora e quatro arquitectos que desempenharam funções naquela autarquia.
Manuel Vítor de Jesus, atual vereador da Câmara Municipal de Sal com o pelouro do Planeamento e Gestão Urbanística, admite que entretanto já se registaram “casos pontuais de demolições por não cumprimento das regras urbanísticas de construções não licenciadas” e que o município notificou “os visados para que apresentassem processos de legalização concedendo prazos para o efeito”.