Inesperadamente, Maria Filomena Mónica deu consigo a escrever sobre a pobreza. Quando publicara Os Dabney, história de uma família americana nos Açores, já reunira muitos dados sobre a situação nos EUA. E, para as suas obras sobre Eça de Queiroz, fizera muitas leituras sobre França e Inglaterra, onde ele viveu. No caso inglês, foi também o país onde ela se doutorou em Sociologia. Assim, não lhe faltavam termos de comparação com a nossa realidade. No dia 13 de dezembro lançará Os Pobres (Esfera do Livros), uma análise da pobreza em Portugal nos últimos 200 anos.
Porque escreveu este livro agora? Por o aumento das desigualdades ser um dos grandes temas atuais?
Foi um acaso. O pano de fundo é o das desigualdades, mas sempre foram elevadíssimas em Portugal. A ideia surgiu depois de vir cá a casa uma sobrinha-neta que estava com turbulências da adolescência. Procurei um diário que escrevi dos 14 aos 16 anos, para lhe mostrar. Lá estavam três páginas sobre os pobres. Eu tinha ido pela primeira vez a um bairro de lata, levada pelas freiras, como uma espécie de iniciação à caridade. Mas o resultado foi o contrário, a minha revolta. Então comecei por pensar num ensaio. Só que, depois, fui alargando, à literatura, por exemplo. É o reverso da medalha de estar doente. Não me apetece nem posso sair de casa. Isso aumenta muito a produtividade. Fiz o livro num ano.
A perceção de pobreza muda consoante os países?
Sim. Nos EUA olham para os pobres como alguém que merece isso, porque falhou na vida. É a forma mais dura de olhar a pobreza. Ao contrário, a tendência em Portugal e nos países do sul, que têm mais a visão católica tradicional, foi sendo a de que sempre existirão pobres, nem vale a pena grandes medidas sociais. Acho que a melhor abordagem ainda é a inglesa, especialmente a partir da II Guerra Mundial. No primeiro governo trabalhista, entre 1946 e 1947, começou a funcionar um estado social com pés e cabeça.
Dedica um capítulo à forma como os pobres são vistos na literatura. O que achou mais interessante?
Para minha surpresa, um dos autores que descreve bem a pobreza é Camilo Castelo Branco. Tenho alguma dificuldade em lê-lo, mas faz uma descrição da pobreza mais realista do que Eça ou os seus amigos da “Geração de 70”. O Eça descreve bem a pobreza, mas em cartas para a mulher, sobre a situação que encontrou no Douro.
Mas não nos romances…
Só num ou noutro caso, sobretudo numa personagem secundária fabulosa, a Juliana (de O Primo Basílio). É uma criada pobre, dependente, que ele descreve com realismo, como um ser horrível, não por ser pobre, mas por medo de acabar na miséria. Para o Eça e os seus amigos, a pobreza não constitui grande problema. Interessa-lhes mudar o país através das elites. E, se falavam da pobreza, era mais da rural, que olhavam de cima. Impressionou-os mais a pobreza em Inglaterra. No tempo deles, Lisboa tinha 300 e tal mil habitantes e Londres alguns milhões. Neste caso já eram pobres urbanos, com muita prostituição e alcoolismo. Um autor que falou da pobreza como eu a vejo foi Cesário Verde. Descreveu-a com dureza, mas sem pieguice. Já Guerra Junqueiro tem um poema, Os Pobrezinhos, um bocado lamecha. E fui ainda recuperar um livro que tinha lido em tempos, Ernestina, de Rentes de Carvalho, que é uma boa descrição, feita a partir de dentro, da pobreza que havia nas décadas de 1920 ou 30 em Trás-os-Montes.
Em toda a pesquisa para o livro, há algum dado que a surpreendesse?
Surpreender propriamente não, mas achei perigosa a definição de pobre que vem, creio, da UE, por ser lata de mais. A situação de pobreza é definida a partir de certos itens.
Há um certo limiar, que vai sendo atualizado.
Não é só uma questão de rendimento em euros, mas também de bens de consumo. Por exemplo, é pobre quem não tem frigorífico, ou férias pagas uma vez por ano, ou automóvel. Não sei se isso é necessariamente pobreza. Alargar muito o conceito pode levar a que, quando se divide o bolo do dinheiro, os mais miseráveis acabem por receber menos do que poderiam. O conceito de pobreza tem de ser repensado, até para abranger os jovens, por exemplo.
No livro usa uma citação de Alexis de Tocqueville (1805-1859) com um comentário sobre Portugal que é surpreendente.
Que ele tenha falado de Portugal já é surpreendente!
Ele dizia que havia aqui muita miséria, mas não mendigavam. Não?
Tocqueville não esteve cá. Baseou-se noutros autores. E os viajantes que cá vinham nos séculos XVIII e XIX eram muito influenciados pela ideologia que traziam. Por exemplo, em países protestantes a miséria portuguesa é sempre atribuída aos padres e à superstição. Mas, se pensarmos na primeira metade do séc. XIX, havia muito menos mendigos em Lisboa do que em 1950, quando veio cá uma autora americana conhecida, Mary McCarthy. Nessa altura, já cá havia muita gente vinda do campo, que pedia. Houve até uma campanha contra a mendicidade e o pé descalço. A diferença é que nas cidades os pobres eram visíveis, enquanto no campo eram invisíveis. E as elites que viajavam só vinham a Lisboa e, quando muito, ao Porto.
No livro conta mais casos um pouco diferentes.
Houve um inglês, John Gibbons (1882-1949), que viveu cá um tempo, até em Carrazeda de Anciães, com outra atitude, a dos ingleses católicos, uma minoria perseguida. Tinha o sonho arcádico de que Portugal era o paraíso e as pessoas não precisavam de nada. E houve um poeta sul-africano Roy Campbel (1901-1957), que era alcoólico e prometeu ir a pé a Fátima, se deixasse de beber. Dizia que as pessoas da aldeia achavam que nada lhes faltava. Na aldeia não havia contacto com o exterior. Logo, não existiam expectativas. Mas claro que havia muita pobreza. Até no Estado Novo o relatório dos Regentes Agrícolas dizia “Há fome!”. E os jornais disseram o mesmo até haver censura.
Há um capítulo do livro onde pergunta de quem são os pobres. E, afinal, de quem são?
A grande polémica é entre a Igreja e o Estado. Tradicionalmente era a Igreja que dava a esmola, a sopa do convento. Há até um quadro do Domingos Sequeira sobre a Sopa de Arroios. A partir da Revolução Francesa – e Portugal importou muito dela – surgiu a ideia de que a Igreja se encarregava dos pobres, para lhes meter coisas na cabeça que os deixassem submissos. O Estado francês disse que, a partir dali, seria ele que trataria dos pobres, embora não tenha tido meios. Em Portugal passou-se o mesmo no séc. XIX. Os bens da igreja foram nacionalizados e o Estado não organizou um esquema de proteção social digno desse nome. Não tinha meios, nem organização nem vontade. Hoje há organizações sociais que recebem dinheiro do Estado. Não sei como são fiscalizadas na prática, nem se o dinheiro é bem distribuído ou não.
A certa altura fala nas Cantinas Populares que existiram no Porto. Eram da Igreja?
Não. Em 1903 houve uma grande greve dos operários têxteis, que eram miseráveis. Contaram com apoios das elites políticas, dos católicos e até receberam dinheiro de operários de Lisboa, de França e da Bélgica. Foi uma conjugação de todos contra o governo. Estava-se no final da monarquia.
Não faz lembrar as Cantinas Sociais criadas durante a troika, tanto pela Igreja como pelo Estado?
Paralelismo com o princípio do século não há, porque nessa altura 80% a 90% da população vivia no campo. No caso das cantinas, vejo mais facilmente governos do PSD e do CDS a darem dinheiro à Igreja, e os do PS, que é mais jacobino, às IPSS.
Durante a recente crise financeira foram os pobres quem mais rendimento perdeu, não foram?
É uma das conclusões mais interessantes do estudo feito pelo economista Carlos Farinha Rodrigues. Disseram-nos sempre o contrário, que tinha sido a classe média. Mas também me espantou que o ex-ministro das Finanças Vítor Gaspar, visto como um diabo, tenha proposto, quando fez o Orçamento, impostos que salvaguardavam os mais pobres e penalizavam os mais ricos.
O argumento do estudo não é o de que os pobres perderam mais, não pela via fiscal, mas pela redução das prestações sociais, como o subsídio de desemprego?
Sim. Foi o que aconteceu durante os anos da troika.
Imagina que haja boa parte de pobres entre os americanos que votaram agora Trump?
Sem dúvida. Quando lá vou é à costa leste, que é muito atípica. Um amigo meu fez um documentário sobre Detroit, o centro da grande indústria automóvel, que é hoje uma cidade morta. Há uma percentagem considerável de pobres sem futuro e que se sentem esquecidos pela elite de Boston, que é a que conheço. Hillary representa muito esta costa Leste, de pessoas que são boas nas universidades, mas que não tiveram bem em conta o pânico desta gente. Isto gera apetência por alguém que prometa coisas, mesmo não muito realizáveis, mas que acham que lhes pode resolver os problemas. Se não vêm mais imigrantes, vamos ter mais empregos. Se não podem entrar muçulmanos, deixa de haver terrorismo. As elites, incluindo os media, primeiro não ouviram e, depois, não compreenderam. O resultado foram políticas segmentadas, isto é para os latinos, isto é para os negros. Não. Isto é para pessoas que precisam, incluindo brancos pobres.
A vitória de Trump está a assustar um pouco a Europa. Com que consequências?
Infelizmente, penso que encorajará o populismo, embora isso também dependa da evolução da economia. Se aumentar o desemprego, a tentação protecionista levará a Europa a fechar-se, o que pode originar coisas perigosas como já vivemos no passado. Há 20 anos a Europa estava a abrir-se ao mundo. Hoje, temos movimentos xenófobos, como na Hungria e, em parte, em França ou até o Brexit. Claro que em Inglaterra dizem ‘não queremos só a Europa, queremos o mundo’. Há sempre aquela nostalgia de ter sido um dos maiores impérios. Os ingleses estão a tentar fazer acordos com a China ou a Índia. Se os resultados não forem significativos, poderá haver um fenómeno estilo Trump.
Mas a vinda de imigrantes para a Europa em tão grande número, ainda que justa, não pode aumentar ainda mais o populismo?
Corre-se esse risco. Se pensarmos nos indianos ou nos paquistaneses em Inglaterra, que estão lá há muito tempo, podem tornar-se eles próprios xenófobos, mesmo em relação a quem venha dos seus países. Se não houver emprego, surgirá a tentação de votar na extrema-direita, mais do que na extrema-esquerda, porque a extrema-direita é mais nacionalista. É como dizer Portugal é dos portugueses. Até me admira como ainda não surgiu um partido de extrema-direita a dizer isso. Creio que é por ainda não termos muitas dessas pessoas a fugir à guerra ou à miséria. Mas um dia vai pôr-se com mais intensidade.
Há também as pessoas que não se sentem representadas politicamente. No seu caso, começou por votar PS, mas passou a votar em branco…
Até mudarem a lei eleitoral, voto em branco.
Sem querer fazer de si uma eleitora de Trump, consegue explicar o que viram nele pessoas que tinham desistido de votar?
A ideia dos que votaram em Trump é “tudo menos isto”, tudo menos Washing- ton. E ele levantou a tampa do politicamente correto. As pessoas veem nele uma espécie de rebelde. Desafia tudo e todos. Fala na América para os americanos. O Eça tem um texto onde explica bem isso do nacionalismo. Aliás, talvez tenha sido o português mais inteligente de sempre, porque muito do que disse continua a aplicar-se. Ele achava que o nacionalismo é mais do povo. As elites viajam e tendem a ser mais cosmopolitas. O nacionalismo é irracional. É discutir que o presunto de Trancoso é melhor do que o de Parma. É também um sentido de inferioridade, como o nosso em relação a Espanha, em parte por sermos um país mais pequeno. Depois dá-se o salto para o “orgulhosamente sós” de Salazar. Que, aliás, dizia que queria ser pobre.
Em Portugal, a “geringonça” terá ajudado a descomprimir alguma tentação para o voto de protesto?
Estou um pouco fora da política do dia a dia e nem conheço bem os políticos. A primeira vez que me falaram no Marco António do PSD, perguntei se era o de Roma! Mas, felizmente, não vejo a acontecer aqui um fenómeno do estilo Marine Le Pen. Não há indícios. Não sei a que se deverá isso, mas é uma sorte. Os portugueses não gostam de arriscar, receiam que qualquer mudança os vá prejudicar. Se nos mantivermos numa temperatura média, talvez escapemos. Quanto à solução geringonça versus direita…
Não é bem isso. Se descomprimiu, por as pessoas verem que têm mais escolhas governativas do que parecia.
Acho que descomprimiu. Mas não creio que este Governo vá resolver os problemas cruciais, como a omnipresença do Estado em todos os setores, nem acho que tenha tido enorme sucesso em nada. Mas as pessoas estão tão desencantadas que, enquanto não houver um grande escândalo, talvez prefiram adiar-se um pouco. E há escândalos em banho-maria, como o caso de Sócrates, um dos políticos que minimizei. É muito mais esperto do que eu pensava. A fissura na sociedade pode vir do lado da corrupção, da ideia de que os políticos estão lá só para se encherem. Pode haver uma abstenção crescente e o regime começar a desagregar-se por dentro. Vejo mais risco por aí do que da parte da extrema-direita, que não creio que vá surgir.
(Entrevista publicada na VISÃO 1237, de 17 de novembro)