A fotografia mais conhecida daquele dia 19 de abril de 1973, na cidade alemã de Bad Munstereifel, mostram-na como a única mulher entre o grupo de congressistas que está a festejar o nascimento do PS, deixando para trás a Acção Socialista Portuguesa (ASP). Aparentemente, todos os membros do grupo estão felizes.
E, no entanto, não só a extinção da ASP não fora consensual, como dera lugar a um dos raros desencontros públicos entre o casal Soares. António Arnaut, que presidiu à reunião em que se decidiria se a ASP devia ou não ser transformada em partido, recorda-se que a primeira pessoa a quem deu a palavra foi precisamente a Maria Barroso, por estar sentada à sua esquerda. Ela pronunciava-se contra a transformação da ASP em partido.
“Mário Soares, que estava três ou quatro lugares depois dela, ficou incomodadíssimo”, recorda Arnaut, que a vira pela primeira vez no Teatro Nacional D. Maria II, quando ela representava A Casa de Bernarda Alba. E aquele que seria logo ali em Bad Munstereifel escolhido como secretário-geral do PS, estava empenhadíssimo na criação do novo partido. “Mas o mandato que Maria Barroso trazia de Portugal, dos camaradas que representava, ia nesse sentido. Foi o mesmo que me sucedeu a mim”, explica ainda. Pelas suas contas, a ASP teria então cerca de uma centena de membros muito ativos, embora a lista total de fundadores, hoje existente na sede, no Largo do Rato, seja superior.
“O argumento dos que votavam contra era a possibilidade de os camaradas que estavam no interior poderem ficar em maior risco, já que os partidos eram proibidos. Ao contrário, Soares, que vivia em Paris, argumentava que a passagem a partido lhes abriria um mundo de possibilidades, a Internacional Socialista. E mais tarde, após 25 de Abril de 1974, permitiu-lhe chegar já com um estatuto diferente junto do novo poder. Em balanço a posteriori, todos acharam que ele tivera, afinal, razão.
Mas este advogado de Coimbra recorda-a como “uma mulher muitíssimo ativa, culta, afetuosa”. Dela receberia, já em democracia, palavras de encorajamento, “Força, Arnaut!”, quando ele se esforçava por criar, então contra alguns ventos e marés, o Serviço Nacional de Saúde.
Ao lado de um eucalipto
Nas entrevistas que foi dando ao longo da vida, deixava claro que o seu interesse pela política não o devia a Mário Soares, que conhecera nos tempos da faculdade, e com quem casou em 1949, por procuração, estava ele preso no Aljube. A política tinha sido para ela um universo de família.
Nascida a 2 de maio de 1925, em Olhão, Maria de Jesus Simões Barroso Soares era a quinta de sete filhos de uma professora primária e de um militar, o tente Alfredo José Barroso, ele próprio deportado para o Forte de Angra do Heroísmo, nos Açores.
E antes de conhecer Soares já era também atriz do Teatro Nacional Maria II, onde ainda jovem se destacaria em a Casa de Bernarda Alba ou Benilde, entre mais de uma dezena de peças. A sua participação em sessões da oposição, onde invariavelmente lia poemas, se não chegaram a valer-lhe a prisão, custaram-lhe vários dias de interrogatórios na PIDE. Até chegar a altura em que Amélia Rey Colaço, a grande dama que dirigia com o marido, Robles Monteiro, o D. Maria II, lhe comunicou, consternada, que ela não podia ali continuar. O regime iria também afastá-la do ensino. Embora fosse ela a responsável pelo Colégio Moderno, fundado pelo sogro, João Soares, formalmente não era ela a diretora. Aliás, não podia sequer dar aulas. Apesar de ter acompanhado o marido quando foi deportado para São Tomé, já enquanto Soares esteve exilado em França ela vivia grande parte do tempo em Lisboa para se encarregar do colégio, o sustento da família.
Poucos dias antes de Maria Barroso festejar os seus 90 anos, a TSF reuniu os dois filhos, João e Isabel Soares, no programa Uma questão de ADN. Ambos concordavam que, no caso deles, “a escola foi a casa”, por ter sido a mãe, a figura sempre presente, quem lhes transmitiu os valores. E a quem rendem como homenagem maior o seu humanismo.
Já os dois irmãos sorriem, com ternura cúmplice, quando se referem ao pai como uma figura que se via “um pouco como o centro do mundo”. Pelo menos lá em casa. É Isabel quem conta que até o irmão em miúdo fazia pequenas “cenas de ciúmes” à mãe: “Tudo em casa girava à volta do nosso pai. Ela abdicou de tudo, da sua carreira, em função dele. Tudo era naturalmente feito por ser assim que ele queria”.
João discordava um pouco. Não achava que a mãe abdicasse da carreira por causa do pai, mas sobretudo por culpa do regime. E, ao contrário, elogiava o esforço dela por ter conseguido manter uma existência própria, do ponto de vista intelectual e político. E João sorria: “Não é fácil, quando se vive ao lado de um eucalipto”, uma árvore conhecida por ter tendência a secar tudo à sua volta. Neste caso, quando se é casada com uma força da natureza chamada Mário Soares.
Maria Barroso fez sempre questão de dizer que mantivera a sua independência em relação ao marido, com quem tivera até algumas divergências políticas. Mas, numa entrevista a Luis Osório, do jornal i, publicada a propósito dos 90 anos da atriz, confessa como uma vez lhe cedera. A certa altura pensara tirar Direito, ideia que Soares terá achado disparatada: “Já tens dois cursos” (além do Conservatório Nacional, o de Ciências Histórico-Filosóficas). “Hoje teria teimado com ele. Mas tive sempre a ideia de não fazer nada que o enervasse, que o contrariasse, por isso estamos casados há 66 anos. E acredite nisto, temos uma relação excelente, que é fruto dessa compreensão”.
Depois do 25 de abril, Maria Barroso nunca voltou aos palcos, com exceção de uma breve passagem pelo Teatro Villaret. No cinema, onde se estreara com Paulo Rocha em Mudar de Vida (1966), tornar-se-ia atriz de Manoel de Oliveira em três filmes, Benilde ou a Virgem Mãe (1975), Amor de Perdição (1979) e Le Soulier de Satin (1985).
Mas nos primeiros anos da democracia o seu interesse principal parece ter sido a política: seria eleita quatro vezes deputada, entre 1976 e 1983. Ao mesmo tempo ia dirigindo o Colégio Moderno, uma atividade que, confessava ela, a fazia sentir-se realizada. Até que, em 1986, mais uma vez acompanhou Soares, desta vez, como Primeira Dama. Seria assim nos próximos dez anos.
O momento definidor
“Foi um milagre”, disse Maria Barroso, logo no aeroporto, quando regressava a Lisboa, depois de acompanhar, na África do Sul, a recuperação do filho, que quase morrera num acidente de aviação, ao sair de um congresso da UNITA, na Jamba, em Angola. Daí por diante, ela não só recuperaria o que chamava a sua fé, como se tornaria uma católica empenhada, que conheceu vários papas. Até ao fim seria frequentadora da missa de domingo da igreja do Campo Grande, onde a família sempre viveu. Ali por vezes lia alguns poemas.
Por ironia, foi o único membro da família sobre quem o acidente produziu aquele efeito. O filho manteve-se ateu e Mário Soares continuou agnóstico, embora em público sempre tenha afirmado que respeitava a mudança de vida da mulher. Ultimamente Soares elogiava o Papa Francisco, mas pela mudança que tem representado na Igreja.
Depois de sair de Belém, Maria Barroso, preferiu dedicar-se à sua própria fundação, a Pro Dignitate, destinada a causas humanitárias, em vez de assumir um papel na fundação criada pelo marido. Tornou-se também presidente da Fundação Aristides de Sousa Mendes.
Na sua vida de ex-Primeira Dama teve um confronto sério, em 2003, com o então ministro da Defesa, Paulo Portas, que a fez substituir pelo centrista Nogueira de Brito na presidência da Cruz Vermelha, quando ela pretendia candidatar-se a um terceiro mandato. Ela reagiu à desfeita com indignação. Aparentemente terá sido apanhado pelos estilhaços de um confronto, já que Soares nunca escondeu publicamente a sua pouca simpatia pela ainda hoje líder do CDS.
Mas manteve-se até agora ativa nas duas fundações a que presidia. E continuava, de vez em quando, em algumas ocasiões a ler poemas. Se desistira do teatro como carreira, nunca lhe perdera completamente o gosto. Talvez por isso Celso Filipe do Diário de Notícias, lhe tenha perguntado, numa entrevista em 2010, se o teatro não teria algum paralelismo com a política. Ou se os políticos não seriam um pouco atores. Maria Barroso respondeu com uma pequena história: “Houve um dia uma pessoa que se voltou para Ronald Reagan e lhe disse: ‘Não admira que você tenha essas atitudes, porque foi ator’. E ele respondeu:’E qual é o Presidente da República que não é ator?’ Porque todos os políticos têm de representar um pouco, na medida em que querem convencer as pessoas e não podem só mostrar as suas indignações, aborrecimentos e mágoas. Porque têm de animar as pessoas para quem trabalham.”
Há alguns anos Maria Barroso já conhecera uma doença séria, um cancro da mama que, disse, aceitara com serenidade. O que realmente a assustaria seria a invalidez. Por isso, tinha tanto medo, por exemplo, das quedas. Na referida entrevista a Luis Osório, publicada no i a 9 de maio, falava assim sobre a morte: “Sinto que estou quase a partir, que se aproxima o momento”. Parecia premonição.