Num sketch dos Gato Fedorento, ?Ricardo Araújo Pereira interpreta um homem que quer tornar-se empresário do lusco-fusco. Aqueles “cinco/sete minutos, em que já não é dia, mas também ainda não é noite”. Cinco/sete minutos que ocorrem ao entardecer ou, e também, ao amanhecer. No domingo, na jornada de campanha de António Costa para as primárias socialistas que se realizam no próximo domingo, 28, ouvimos cinco “discursos lusco-fusco”. Foi essa a duração, mais coisa menos coisa, dos argumentos dos convidados locais que antecederam a entrada em palco de Costa, tanto em Fafe como, depois, já noite cerrada e chuvosa, em Braga.
O discurso do protagonista, esse, são uns claros 20 a 25 minutos, com estrutura bem definida e utilizando as mesmas frases de introito para os temas: os olhos dos socialistas que agora brilham (porque sabem que ele está em cena), a estratégia de empobrecimento do Governo ou o tecido empresarial que tem de ser estimulado.
A estratégia de oratória adotada começa por um ataque ao Governo (às vezes dá a ideia que a campanha é para as legislativas e não para uma eleição interna), prossegue com as soluções a que se propõe através da sua Agenda para a Década e acaba numa pergunta retórica dirigida aos presentes: “Quem está em melhores condições para Governar o País e trazer a mudança que tanto precisamos?” É, por esta altura, quando a voz de Costa se eleva em busca das palmas – um truque de todos os políticos – que a sala explode em apoteose e se erguem os punhos.
Para António José Seguro nem uma palavra. Antes de Costa, já os seus convidados se encarregaram de enviar todos os recados.
Mas a maratona deste dia de estrada começou no Porto, antes dos discursos de palanque. Uma passagem-relâmpago pelo Passeio dos Clérigos serve para o momento kodak do dia: Pedro Abrunhosa “aparece” para dizer que o País atravessa “um momento de alguma escuridão” e que se sente “privilegiado” por votar nas primárias. Em Costa, naturalmente. Os fotógrafos e os ?camera men registam o momento com a Torre dos Clérigos em fundo.
“Então, isso vai?”, perguntam dois transeuntes na direção da comitiva. “Ai, vai, vai!”, reponde, de pronto, Manuel Pizarro, ex-secretário de Estado da Saúde.
É preciso apressar toda a gente. O assessor de imprensa, atento, vai dando instruções e todos se dirigem para os carros. Costa é o único totalista da “volta a Portugal em campanha para as primárias”, o restante grupo vai variando. Neste dia, além da mulher de Costa, Duarte Cordeiro, vereador na Câmara de Lisboa, Carlos César, ex-presidente dos Açores e Pedro Cegonho, presidente da Associação Nacional de Freguesias, são alguns dos compagnons de route.
As janelas de Lisboa
Enquanto Costa dedica o último fim de semana de campanha ao Norte, Seguro corre as ilhas e termina, neste mesmo domingo, com um jantar em Seia. Um dos últimos cartuchos ficara guardado para o dia seguinte, em Lisboa.
Assim, às 19 e 30 da última segunda-feira, nos corredores do Complexo Desportivo do Casal Vistoso, junto ao Areeiro, cruzam-se crianças saídas das aulas de natação (o cabelo molhado denunciava-as) e militantes e simpatizantes socialistas. A campanha de Seguro escolheu um dos pavilhões para ali fazer um enorme jantar/comício na cidade que elegeu o seu adversário como presidente da Câmara Municipal. E Seguro não se fez rogado. Durante o discurso de meia hora haveria de dizer: “O povo de Lisboa está connosco.” Atacou quem “antecipou a vitória” e “já se via à janela de São Bento, a olhar para Belém, com um pé na Câmara de Lisboa e outro no Largo do Rato”. Criticou aquilo que chamou de “corte de Lisboa” que “forma o partido invisível”, porque “numa república os cidadãos valem todos o mesmo”, e “não é o apelido, a região de origem ou o valor da conta no banco” que fazem diferença. Estes e outros soundbytes acabariam por servir de aperitivo para o jantar, embora já fossem 22 e 30, e a água e o refrigerante de laranja em cima das mesas não dessem para aliviar a fome dos convidados/comensais que se inscreveram nas estruturas da campanha segurista e pagaram €10 pelo repasto. Quando o pão chegou às mesas, ainda Seguro cumprimentava os apoiantes à saída do palanque, houve mãos vorazes. O tinto alentejano chegou ao mesmo tempo e só depois o creme de legumes e o arroz de aves.
O jantar, que estava marcado para as 20 horas, acabaria, assim, por começar já pela hora da ceia. Primeiro, decorreu o habitual convívio e cumprimentos entre os seguristas de base, como João Soares, Jamila Madeira ou Álvaro Beleza, mas também entre quem “há muito não se via” e algumas surpresas. João Ribeiro, que há um ano pediu suspensão de funções políticas, para ir trabalhar junto da ONU na Coreia do Sul, apareceu para dar apoio a Seguro, e o politólogo e comentador Adelino Maltez também. “Não vejo mal nenhum em estar aqui”, diz, não se inscreveu como simpatizante, mas “gosto do Seguro”.
Os discursos iniciais ficaram a cargo de João Soares, muito crítico em relação a Costa e a uma “pseudoaristocracia existente no PS”, apodando de “miserável” a “campanha feita contra a nossa camarada Margarida Maldonado Freitas [mulher de Seguro, presente na sala]”. Seguiu-se a eurodeputada Ana Gomes, muito “orgulhosa do resultado alcançado nas europeias” e Manuel Machado, mandatário nacional de Seguro, que defendeu não existirem “soluções sebastiânicas” para Portugal.
Tirar as uvas podres
Voltemos a Costa e à estrada. Depois do Porto, a paragem seguinte é Ponte de Lima, bastião do CDS. Na Adega Cooperativa local, ainda à espera das uvas – as vindimas começarão uns dias depois -, estão cerca de quatro dezenas de militantes da zona. Após os cumprimentos da praxe, faz-se a devida visita às zonas de laboração.
É verdade que as uvas ainda não estão lá, mas já se sabe como serão. O aviso, afixado nalguns locais, fica dado: “Nesta campanha existe podridão acética, isto é, azeda/vinagre, nas uvas, podendo uma só dorna estragar uma cuba inteira de vinho. Por isso, é indispensável retirar, o mais possível, as uvas podres.” Resistimos aos comentários ou à tentativa de metáforas.
Provam-se dois brancos verdes – ou não estivéssemos na terra do vinho verde -, casta Loureiro, enquanto a enóloga da casa tenta explicar as idiossincrasias de cada um dos nove néctares que tem à sua frente, mas, por esta altura, o grupo já está distraído com os brindes. António Costa ouve atentamente a rapariga, pega no copo pela base do pé, como deve ser, prova e acena a cabeça em sinal de aprovação.
Na estrada outra vez, a meta posta na cidade de Fafe, um dos concelhos do Vale do Ave. No recreio da escola secundária local, cerca de 150 pessoas – que haveriam de lotar o espaço – aguardam por António Costa. Por esta altura, as nuvens começam a escurecer e a aproximarem-se umas das outras. Indiferente à iminente tempestade, Fernando Guedes, 70 anos, não larga o seu posto. Quer ver o candidato entrar. Está “do lado de Costa”, porque “tem mais gana”, embora tenha dúvidas sobre se “estas primárias serão benéficas”. Acha que “dividem” o partido, mas anui que “a vitória nas europeias também não foi folgada…”. Maria Freitas, 59 anos, está mais entusiasmada. Entre um “o Costa é espetacular” e outro “adoro o sorriso dele”, arranja tempo para condescender que não tem “nada contra o António Seguro”, e afia nos finalmentes: “Agora precisamos de gente que trabalhe. Com provas dadas.”
Sob a tempestade
Costa chega e um gesto discreto do assessor de imprensa põe o speaker de serviço em funções. Começa a música triunfal e Costa entra na sala entre vivas e gritos de “PS, PS”.
Três “discursos lusco-fusco” depois ?- houve mais um, mas a militante da JS, claudicou perante o nervosismo natural de estar num palanque -, o candidato avança para gáudio da plateia. Entretanto, já o lusco-fusco, mas desta vez o verdadeiro, tinha sucedido, fazendo-se acompanhar duma valente tempestade de chuva e trovoada. Discurso feito, aplausos de pé e abraços e beijinhos até entrar de novo no carro.
Depois, é sob um São Pedro sem misericórdia que os socialistas de Braga, a última paragem do dia, se juntaram na Associação Industrial do Minho. Ainda houve quem temesse o fracasso da iniciativa, mas o anfiteatro não haveria de chegar para as cerca de 200 pessoas que foram apoiar o candidato. Aqui o tempo passa a ter duplo sentido: o meteorológico e o da campanha que já leva mais de três meses. “Acho que ele tem vindo a enfraquecer e o discurso não vai de encontro às necessidades do País. Fala de forma muito ambígua, não diz mesmo o que vai fazer”, diz uma militante de Braga. A música – em crescendo triunfal – trouxe algum brilho aos olhos desta rapariga. Cirandou, de sorriso posto na direção do candidato a futuro líder, pela sala até encontrar lugar para se sentar. E a cada frase mais efusiva, saltava da cadeira para aplaudir. Às 22 e 30, Costa termina o último discurso do dia com a tal pergunta retórica: “Quem está em melhores condições para Governar o País e trazer a mudança que tanto precisamos?” Os militantes e simpatizantes vão responder no domingo.