O militante do PCP envolvido, enquanto observador, nas eleições ilegais russas no Donbass ucraniano, respondeu à VISÃO com um texto a explicar a sua relação com a URSS e a Rússia, de quem partiu o convite e as razões da sua ida a território ucraniano ocupado. Considera que os militantes do PCP estão a ser perseguidos, mas garante que a sua participação no processo de votação em Donetsk foi a título pessoal e não como representante do partido. “A reabilitação do fascismo histórico (em que as investidas contra o PCP se inserem) é, hoje, uma mancha capaz da repetição da barbárie nazi”, acusa.
Mas Manuel Pires da Rocha, que garantiu a órgãos de comunicação russos ter visto “democracia” e “esperança” nos locais de voto, não responde às várias perguntas que a VISÃO lhe endereçou. Por exemplo, não esclarece quem pagou as despesas de deslocação, se se revê nas suas declarações citadas pelos jornais russos e por que razão afirmou que considera estas eleições democráticas e livres, tendo tido lugar num território que se encontra em guerra e que não pertence à Rússia.
Esta é a declaração de Manuel Pires da Rocha:
“Entre 1975 e 1990 estudaram na URSS cerca de quatro centenas de jovens portugueses, juntando-se aos mais de um milhão que ali realizaram os seus estudos gratuitamente (na URSS a educação era gratuita em todos os níveis e modalidades de ensino). Portugal conta hoje com médicos, cientistas, músicos, jornalistas, professores das mais diversas especialidades que trouxeram da URSS ferramentas profissionais de elevado valor, e um utensílio mais que lhes possibilitou um contacto (para a vida) com os povos que os acolheram: a língua russa.
Há cerca de três semanas a Câmara Cívica da Rússia convidou-me, a título individual, para a observação das eleições regionais e locais que ali tiveram lugar no passado fim de semana e eu, por razões da profunda relação afetiva que conservo com os povos da ex-URSS, aceitei. Os locais em que estive presente foram os do Donbass, onde pude falar com numerosas pessoas nos territórios da autoproclamada República Popular de Donetsk, em situação de guerra desde 2014 (após a vitória do golpe de estado da Maidan).
Nestes dias, no regresso a Portugal, fui confrontado com uma campanha mediática (mais uma), de surpreendente dimensão, procurando envolver meu Partido (o PCP) num ato que resulta da minha vontade em conhecer uma realidade que, em Portugal, quase toda a gente desconhece. É a primeira vez na minha vida que passo por um processo de condicionamento mediático do uso das minhas liberdades individuais. Testemunha indignada dos processos de manipulação da verdade, é a primeira vez que sou usado numa campanha contra o PCP, cuja posição relativamente à guerra é clara e pública (ainda que desvirtuada por sucessivas campanhas de difamação). A posição do PCP é aquela que, de forma sustentada, defende a paz baseada na negociação e na utilização dos instrumentos mundiais de regulação dos conflitos.
Considero que a perseguição dos movimentos – e das escolhas individuais – dos militantes do PCP é absolutamente inaceitável. A minha opção em corresponder ao convite da Câmara Cívica da Rússia é minha e só minha. Em ambiente democrático, esta ou qualquer outra opção nunca poderia ser objeto da notícia e do comentário em que o meu alvejamento é apenas um instrumento de alvejamento do PCP.
Estar no Donbass e falar com os seus habitantes é indispensável para perceber os anseios de paz daquelas pessoas que vivem em guerra há quase uma década; é indispensável para romper a parede de desinformação dedicada a formatar as visões daquele conflito; é indispensável para a compreensão multilateral de uma realidade histórica, social e politicamente complexa. Compreende-se que alguns meios de informação procurem repetidamente impedir qualquer olhar sobre uma realidade que lhes é incómoda, associando a luta dos comunistas portugueses a acontecimentos com os quais o PCP não tem qualquer tipo de relação. Tenhamos, porém, a consciência de que a reabilitação do fascismo histórico (em que as investidas contra o PCP se inserem) é, hoje, uma mancha capaz da repetição da barbárie nazi.
O noticiário que, entretanto, se desatou em meios de comunicação e nas redes sociais, visa, claramente, constituir-se exemplo de punição para um gesto (qualquer gesto) de liberdade individual. Assim se pretende eliminar, à partida, qualquer dúvida que abale a realidade a preto e branco que se instalou a partir da massificação da mensagem primária e da censura em diferentes escalas.
Os meus atos individuais são produto da minha vontade que é, por sua vez, produto das minhas vivências, das minhas afeições, das minhas curiosidades. Nem tudo o que faço na vida tem ligação com as organizações a que pertenço: a família, o Partido Comunista Português, o Conservatório, o SPRC, o Ateneu de Coimbra, a Assembleia Municipal de Coimbra, a Brigada Victor Jara, entre outras. A todos devo lealdade, mas isso não implica um processo de autolimitação a que, agora, alguma imprensa me pretende sujeitar (com muito raras mas muito honrosas excepções, numa revelação de coragem que merece a maior admiração).
A democracia portuguesa não pode (nem deve) correr o risco da banalização da censura, do silenciamento, da mistificação, da manipulação, do achincalhamento. A utilização de um militante do PCP (e fosse ele de qualquer outro partido!) no processo de divulgação em massa de uma mistificação vergonhosa, constitui uma agressão de refinada violência, que importa denunciar. Trata-se de instalar o medo e o preconceito no lugar do conhecimento. Trata-se, afinal, de dar corpo ao procedimento que Martin Niemöller denunciou, quando já era tarde demais, na sua conhecida declaração/poema:
‘Primeiro levaram os comunistas e eu permaneci em silêncio – não era comunista.
Quando levaram os social-democratas eu permaneci em silêncio – não era social-democrata.
Quando levaram os sindicalistas fiquei em silêncio – não era sindicalista.
Quando me levaram, já não havia ninguém que pudesse protestar.'”