Os países ocidentais lançaram as primeiras rondas de sanções contra a Rússia, guardando ainda algumas possibilidades mais agressivas para os próximos dias ou semanas. Sem estar a ser contemplada uma intervenção militar, a pressão económica parece ser a via escolhida para travar as ambições de Moscovo. No entanto, apesar de o Ocidente celebrar a agressividade das medidas, elas devem demorar algum tempo até fazerem mossa na economia russa. Os últimos anos deram tempo a Putin para se preparar e este braço-de-ferro poderá durar anos.
Em primeiro lugar, importa notar que a ideia da Rússia como uma grande potência económica pode estar desajustada. O seu produto interno bruto (PIB) é o 11º maior do mundo, abaixo de Itália e Coreia do Sul e pouco acima de Espanha e Austrália. É 14 vezes mais pequeno do que o norte-americano.
Depois de um arranque de século em que o país cresceu a um ritmo muito forte, desde a crise financeira de 2008 que perdeu definitivamente gás e isso acentuou-se a partir de 2013/14. Desde essa altura, que coincidiu com a anexação da Crimeia, tem avançado a pouco mais de 1% ao ano.
A Rússia continua a ser uma potência militar (com ogivas nucleares) e um gigante na produção de energia, mas está menos integrada e desenvolvida do que outros países muito mais pequenos.
Ainda assim, até um gigante em decadência é difícil de mandar abaixo. Desde 2014 que Moscovo tem procurado diminuir a sua dependência face aos países ocidentais, abrindo novos corredores com a Ásia, em específico ao assinar alguns acordos com a China, dando origem, por exemplo, à construção do gasoduto Power of Siberia, que começou a funcionar em 2019.
“O nível de apoio chinês às ações russas poderá ser um fator influente na evolução desta crise”, afirmou Tom Rafferty, um analista da Economist Intelligence Unit, em Pequim, ao Financial Times.
A Rússia e a China têm procurado reduzir a utilização de dólares nas suas trocas bilaterais, que crescem acima de 10% todos os anos e que, em 2021, atingiram o máximo histórico de 145 mil milhões de dólares.
Segundo o mesmo FT, a Rússia é também, de longe, o país que mais recebe empréstimos do setor oficial chinês, grande parte na forma de dívida com futuras receitas de vendas de petróleo como colateral.
Além do apoio da segunda maior economia do mundo, a Rússia usou os últimos oito anos para criar uma espécie de fortaleza financeira, que lhe permita suportar durante algum tempo a pressão económica do ocidente. Acumularam 500 mil milhões de dólares em reservas internacionais (mais de 600 se lhe juntarmos o ouro). São as quartas maiores reservas do mundo, o que permitirá à Rússia aguentar o valor da sua moeda. A BBC nota que, hoje, apenas 16% dessas reservas são em dólares, longe dos 40% de 2017.

“A Rússia tem reservas internacionais de 600 mil milhões de dólares ou 40% do PIB. Por referência, na zona euro, os bancos centrais detêm o equivalente a 1200 mil milhões ou 9% do PIB”, escreve o think tank Bruegel. “O orçamento nacional apertado da Rússia significa que o Kremlin pode cobrir despesas desde que o petróleo seja vendido a 44 dólares o barril, segundo estimativas internacionais.” Hoje, ele está acima dos 90 dólares.
Em 2019, a Rússia tinha um excedente externo de 2,4% do PIB e uma dívida pública nuns confortáveis 20% do PIB, muita dela comprada por residentes. Mesmo que seja limitada na sua capacidade para emitir obrigações nos maiores mercados internacionais, a Rússia tem margem para aguentar.
O Bruegel explica que a percentagem de dívida pública detida noutra moeda caiu de 25% para 14%, embora quase metade da totalidade da dívida externa (pública e privada) ainda esteja em dólares. “Porém, a Rússia conseguiu reduzir o peso da sua dívida externa para 32% do PIB.” Por comparação, a portuguesa supera os 100%.
Hesitação com o SWIFT
Uma das medidas mais debatidas tem sido a possibilidade de excluir os bancos russos do sistema de comunicação interbancária SWIFT. É o que permite transações seguras e rápidas entre instituições financeiras de todos os países do mundo. Cortar a Rússia do sistema atrasaria negócios, traria maior incerteza aos mesmos e mais custos. Quando essa possibilidade foi discutida pela primeira vez, em 2014, o governo russo calculava que isso poderia representar para si uma perda de 5% do PIB.
Forçaria Moscovo a recorrer a sistemas alternativos. Putin está há oito anos a preparar-se para esse cenário. A Rússia desenvolveu um sistema de comunicação alternativo, o SPFS. O sistema ainda só liga duas dezenas de países e representa apenas um quinto do tráfego interno na Rússia. Mas a ideia é chegar a 1/3 até 2023.
Contudo, o maior obstáculo pode ser o impacto que estas medidas têm nos próprios países que as estão a lançar. Ainda hoje, o governo alemão admitia que uma iniciativa desse género teria um enorme impacto na economia alemã e, portanto, exigia muita preparação. “É muito importante que concordemos com medidas que foram preparadas – e manter tudo o resto preparado para uma situação em que seja necessário ir além disso”, afirmou o primeiro-ministro, Olaf Scholz.
Na prática, isso significaria que os credores ocidentais poderiam não receber os seus pagamentos, afetando grandes instituições financeiras. Dados do Banco de Pagamentos Internacionais (BIS, na sigla original) mostram que os credores europeus detêm a maior fatia dos cerca de 30 mil milhões de dólares que bancos estrangeiros têm face à Rússia. Já durante a tarde, a posição do Executivo alemão parece ter evoluído para maior abertura e urgência neste campo.
“O que a Rússia está a fazer, na prática, é construir um sistema financeiro alternativo que lhe permita suportar alguns choques das sanções que o Ocidente possa impor”, diz Rebecca Harding, do Coriolis Technologies, à BBC. “Mas haverá alguma dor de curto prazo em tudo isto e as vulnerabilidades no sistema russo são o facto de terem uma teia muito fina por todo o mundo.”
Mais relevante – e talvez a principal conclusão deste debate – é que não existem sanções fortes à Rússia que não se traduzam em dor económica para o Ocidente, principalmente na vizinha Europa. A discussão sobre o SWIFT é um exemplo disso mesmo, mas na energia isso pode ser ainda mais claro.
Em 2019, 27% das importações de petróleo feitas pela UE vinham da Rússia, assim como 41% do gás natural e 47% do carvão. Sanções económicas agressivas contra Moscovo podem levar Putin a interromper essa ligação comercial ou forçar subidas de preços. O Guardian citava uma análise do think tank Kiel Institute que estimava que uma interrupção das compras de gás tiraria 3% ao PIB russo, mas teria como consequência energia mais cara para a Europa. Numa altura em que a inflação começa a preocupar, este seria mais um fator de pressão sobre ela e sobre a economia.
Sete em cada dez euros vendidos à Alemanha pela Rússia são bens energéticos. Para Holanda e Itália, as percentagens são ainda maiores. Em sentido contrário, estes países vendem à Rússia produtos farmacêuticos. Alemanha, Polónia e Holanda exportam veículos e suas partes, enquanto a Itália concentra-se em mobiliário.
A Alemanha suspendeu há dias o gasoduto Nord Stream 2. A capacidade de encontrar alternativas e aguentar energia mais cara será um vértice fundamental para perceber até onde estará disposta a ir a Europa. “Bem-vindos ao admirável mundo novo onde os europeus muito em breve irão pagar 2.000 euros por mil metros cúbicos de gás natural”, avisou o ex-presidente russo, Dmitry Medvedev.

Mesmo sem uma reação de Moscovo, a guerra já deverá tirar 0,3% a 0,4% do PIB da zona euro, calculava hoje o BCE. Por muito tempo, julgou-se que um mundo economicamente mais integrado reduzia a probabilidade de um conflito militar. Mas isso também significa que um país raramente sofre sozinho e que, enquanto a UE manteve o rumo de aprofundamento de ligações económicas com o resto do mundo e a Rússia, Moscovo preparou-se para este dia.
“A Rússia está pouco integrada na economia global. Apenas entrou na Organização Mundial do Comércio em 2012 e fez 10 acordos comerciais para cobrir 11% das exportações russas, a maioria deles com ex-repúblicas soviéticas”, escreve o Bruegel. “A valorização do rublo durante o boom do preço do petróleo nos anos 2000 criou uma maldição de recursos para a indústria russa. Dado os limites do seu mercado interno e os seus custos comerciais elevados, os incentivos para investimento estrangeiro na indústria ou serviços para mercados externos têm sido limitados. Isto foi agravado por corrupção e falta de segurança de direitos de propriedade, que a Rússia classifica como 136º e 81º em comparações internacionais.”
A noção de que sanções terão custos nos seus países está bem presente entre os governantes europeus. Durante o dia, foi noticiado que a UE não iria seguir os passos do Reino Unido e banir a Aeroflot do seu espaço aéreo com receio de a Rússia fazer o mesmo, dificultando os voos para a Ásia. Ao mesmo tempo, Mario Draghi terá feito pressão para os bens de luxo italianos ficarem de fora do pacote de controlo de exportações. A Bélgica terá feito o mesmo com os diamantes.
E importa também dizer que, no passado, as retaliações de Moscovo contra sanções tiveram um impacto limitado na UE, afetando mais os consumidores russos do que os exportadores europeus.
Tempos extraordinários, medidas extraordinárias
Conhecendo estas defesas de Putin, podem ser consideradas outras vias de atuação que afetem diretamente o bolso e a vida de quem toma as decisões ou de quem tem o ouvido delas. Penalizar oligarcas e membros destacados do governo russo são outra forma de pressão. Algumas já foram colocadas no terreno. Na manhã de quinta-feira, foi noticiado por vários órgãos de comunicação social que a UE iria congelar ativos detidos pelo próprio Putin e o seu ministro dos Negócios Estrangeiros, Sergei Lavrov.
Todos os membros do Parlamento russo e do seu conselho de segurança estão sujeitos a proibições de deslocações e congelamento de ativos, assim como militares bielorussos que facilitaram a invasão da Ucrânia. As sanções abrangem também bancos russos e oligarcas vistos como próximos de Putin. Tal como noutros pontos, não faltam vozes que sublinham a necessidade de ir mais longe e cortar laços com empresários e grupos russos e congelar ativos. Pode demorar algum tempo e exigir sacrifício a sociedades ocidentais que se habituaram a viver confortáveis, mas a Rússia está longe de ser invulnerável.
“As perspetivas de longo prazo da Rússia já eram complicadas, com uma sociedade envelhecida e uma economia dependente da extração de combustíveis fósseis, sem integração em cadeias de valor globais. As sanções abrangentes que estão a ser discutidas pelo Ocidente e as contra-sanções potenciais da Rússia, se aplicadas, iriam penalizar ainda mais este outlook”, conclui o Bruegel. “A economia russa é muito mais dependente das importações europeias do que a Europa de exportações russas. Contudo, a dependência europeia de gás natural russo dá vantagem ao Kremlin – por isso, a UE precisa de desenhar uma resposta que apoie os países mais expostos, principalmente no Báltico e no centro e leste europeu.”
Sabendo que talvez não haja sanções dissuasoras sem aceitar alguma dor para as suas famílias e empresas, os países ocidentais poderão ter de considerar formas de apoio público durante estes tempos de emergência. Por exemplo, uma emissão de dívida comum para que os países europeus tenham uma rede para cobrir os custos de um bloqueio puro e duro à Rússia. Foi o que aconteceu durante a pandemia, com a criação de um programa de recuperação comum. É sobre isso que reflete a jornalista do NYT, Matina Stevis.
Claro que a capacidade de liderança dos governantes europeus será testada. A vontade política de avançar com soluções difíceis e explicar aos seus cidadãos o que aí vem.
Nos últimos anos, Putin deu prioridade à estabilização da sua economia e à auto-suficiência, sacrificando provavelmente até algum crescimento, mas isso permitiu-lhe ter um bunker financeiro para aguentar, pelo menos durante algum tempo, sanções e restrições. Falta conhecer agora a capacidade de resistência do Ocidente.