Nesta terça-feira, dia 3, o jornal americano POLITICO teve acesso a um documento que poderá transformar por completo o panorama político um pouco por todos os EUA. Trata-se de um projeto de decisão judicial, assinado pelo juiz do Supremo Tribunal dos Estados Unidos, Samuel Alito, que terá como consequência a anulação do direito constitucional ao aborto naquele país.
O projeto obtido pelo POLITICO é apenas uma primeira versão do que eventualmente será a decisão final (prevista para junho), e debruça-se sobre o tópico polémico do direito ao aborto, mais especificamente sobre o processo Dobbs v. Jackson Women’s Health Organization. O processo em questão opõe Thomas E. Dobbs, um representante do estado do Missisipi, que pretende proibir criminalmente qualquer aborto após 15 semanas de gravidez, e uma clínica desse estado especializada em interrupções voluntárias de gravidez.
Na prática, a ser aplicado num contexto jurídico, o texto de Alito teria a consequência de anular a decisão histórica de 1973, tomada no caso Roe v. Wade – o processo que instituiu pela primeira vez o direito ao aborto em território norte-americano. Segundo fontes anónimas citadas pelo POLITICO, Alito conta com o apoio de mais quatro juízes conservadores, entendam-se Brett Kavanaugh, Clarence Thomas, Neil Gorsuch e Amy Coney Barrett. Juntos, os cinco magistrados juntos representam uma maioria com capacidade para confirmar legalmente a decisão, caso esta não se altere até junho.
Se isso, de facto, se materializar, as consequências políticas e sociais serão certamente dramáticas. E, a julgar pelas reações imediatas dos protagonistas relevantes, esta decisão resultará numa reconfiguração severa e imediata das prioridades comunicativas e programáticas de grande parte dos representantes públicos dos EUA. Antecipando uma reação popular virulenta e protestos de grande dimensão, a polícia da cidade de Washington D.C. está em alerta e já colocou barreiras em torno do edifício que alberga o Supremo Tribunal dos Estados Unidos.
O Partido Democrata em peso apressou-se a repudiar a intenção de anular o direito ao aborto com uma avalanche de publicações nas redes sociais, comunicados encaminhados para a imprensa e discursos públicos. A Senadora Elizabeth Warren admitiu estar “furiosa por um Tribunal Supremo extremista pensar que pode impor a sua visão extremista a todas as mulheres deste país”. Já Chuck Shumer, Senador de Nova Iorque e líder Democrata no Senado, garantiu que essa realidade “não é um exercício abstrato”, mas “um problema urgente”, e prometeu que a câmara alta dos EUA irá votar com a ambição de “codificar o direito ao aborto na lei”.
Joe Biden, o presidente americano, disse no Twitter que acreditava “que o direito de escolha de uma mulher é fundamental e que “o Roe [v. Wade] tem sido a lei por quase cinquenta anos, e a justiça básica e a estabilidade da nossa lei exigem que não seja revogada,” acrescentando ainda que não está preparado para baixar os braços: “Estaremos pontos quando qualquer decisão for emitida”.
Em resposta, John Roberts, o juiz-presidente do Supremo, confirmou que “embora o documento descrito nos relatórios seja autêntico, não representa uma decisão do Tribunal ou a posição final de qualquer membro sobre as questões no caso”, e classificou ainda a fuga de informação como uma “grave quebra de confiança”, pedindo, por isso, a abertura de uma investigação sobre o sucedido.
A generalidade do Partido Republicano, por sua vez, dividiu-se entre celebrar a culminação de uma longa campanha do movimento pró-vida nos tribunais norte-americanos e criticar veementemente a fuga de informação como, nas palavras de Mitch McConnell, o líder Republicano no Senado, um “ataque à independência do Supremo Tribunal”. Outro Senador, Ted Cruz do estado do Texas, aproveitou para acusar os Democratas de “politizar o Supremo” e está convencido que a divulgação do projeto da decisão foi motivada apenas pela tentativa de “pressionar politicamente os juízes na maioria”. O mesmo McConnell secundou a teoria de Cruz ao dizer no Twitter que “isto representa mais uma escalada na campanha da esquerda radical para intimidar os juízes federais”.
Novo ímpeto para o Partido Democrata
Uma coisa é certa: com as eleições intercalares à porta, já em novembro, o Partido Democrata vai utilizar esta polémica para mobilizar a sua base eleitoral e oferecer um contraste vívido entre a sua atual liderança e a de uma potencial maioria do Partido Republicano. A urgência foi notória, especialmente tendo em conta o estado algo letárgico em que se encontrava a operação de comunicação dos Democratas, já resignada à possibilidade de o partido vir a perder a sua maioria no congresso dos EUA.
De facto, tendo em conta o baixo índice de aprovação de Joe Biden e a avaliação negativa que grande parte dos americanos faz do estado da sua economia – fundada sobretudo no nível preocupante da inflação, que, em março, cresceu 8,5% em termos homólogos –, todas as previsões apontam para uma vitória contundente dos Republicanos nas intercalares. Daí vários políticos do Partido Democrata em corridas competitivas terem feito questão de evidenciar o tema controverso nas suas mais recentes publicações, onde reiteraram o seu apoio pela legalização do aborto, na esperança de que o sentimento pró-escolha os conduza ao triunfo eleitoral.
Muitos analistas encontram algumas vantagens nesta estratégia, especialmente no que diz respeito à eventual mobilização das mulheres norte-americanas contra os candidatos Republicanos. Contudo, alertam também que os Democratas não podem depender exclusivamente desta dinâmica e que outros tópicos, entre eles a subida do custo de vida, o aumento do crime ou a nova vaga de imigração na fronteira com o México, irão permanecer salientes na consciência de muitos eleitores. Um deles, do Partido Democrata, defende que o tema “pode ajudar marginalmente”, mas que “para reter a Câmara ou o Senado, precisamos que a inflação desapareça”.
No entanto, o rumo está traçado, e o próprio Biden já apelou aos cidadãos para elegerem mais “senadores pró-escolha” de modo a construir uma “maioria pró-escolha na Câmara de Representantes” – uma que permita ao Presidente assinar uma lei que codifique o direito ao aborto a nível federal.
Reação Europeia
Na Europa, teme-se que alguns países se inspirem na lei norte-americana para impor mais restrições semelhantes dentro das suas fronteiras. Lembre-se que, em 2021, a Polónia fez exatamente isso, banindo quase totalmente o direito ao aborto e instigando um debate feroz sobre a questão tanto no país, como por todo o continente europeu.
Mesmo assim, durante uma entrevista na rádio francesa RTL, Roberta Metsola, a Presidente do Parlamento Europeu, referiu que embora “se possa discutir a posição americana”, “aqui na Europa, a questão está encerrada”. “Os direitos das mulheres foram recuados por um século”, escreveu no Twitter Sophie in ‘t Veld, uma eurodeputada dos Países Baixos. “Juízes conservadores que executam a agenda trumpiana para restaurar o patriarcado. E não tenham ilusões: o movimento anti-escolha também está em ascensão na Europa. Os nossos direitos devem ser defendidos vigorosamente”, continuou.
Muitos representantes receiam também que as prioridades dos EUA se recentrem para lá do conflito militar na Ucrânia, o que deixaria a Europa mais desamparada no seu combate económico e diplomático contra Vladimir Putin, o Presidente da Rússia. Esta decisão serviu também para relembrar a todos o perigo que a reeleição de Donald Trump representaria para a unidade ocidental, ou simplesmente o que podem esperar de um congresso liderado por uma maioria do Partido Republicano.
“Uma amostra do que está para vir daqui a dois anos”, concluiu um diplomata da Europa Ocidental, numa referência à eleição presidencial norte-americana de 2024.