No início deste mês, a Organização das Nações Unidas revelou ter informação de que “graves violações do direito internacional, possivelmente constituindo crimes de guerra e crimes contra a humanidade“, foram cometidas no estado etíope do Tigray, com mais de 136 casos de violação notificados em hospitais de Mekelle, Ayder, Adigrat e Wukro, na região leste desse estado, entre dezembro e janeiro. O governo afirmou, na altura, que estavam em curso investigações sobre os casos de violência sexual.
A CNN teve agora acesso a registos de dez médicos – nove deles a exercerem na Etiópia e um deles num campo de refugiados em Hamdayet, Sudão, na fronteira – e testemunhos de vítimas, que confirmam a violência sexual a que meninas (um dos médicos relatou o caso de uma criança de oito anos) e mulheres têm estado sujeitas ao longo dos últimos meses: muitas delas têm sido raptadas, violadas e mantidas como reféns por soldados etíopes e eritreus e gangues. A cadeia americana relata, a partir de um vídeo ao qual teve acesso, um caso de uma mulher que deu entrada num dos hospitais da região com vários pregos, pedras e plásticos dentro da vagina.
De acordo com os relatos das mulheres e dos médicos, os militares da Etiópia e Eritreia estão a realizar uma campanha coordenada de violência sexual contra as mulheres em Tigray e têm-na usado como arma de guerra, operando com quase total impunidade na região. No campo de refugiados sudanês, para onde milhares de refugiados se dirigiram nos últimos meses na tentativa de fugirem ao conflito, também muitas mulheres terão sido violadas durante o processo, tendo, pelo menos uma delas, ficado grávida. Além disso, referem os médicos, várias das vítimas contraíram doenças sexualmente transmissíveis.
Este aumento alarmante de casos de violência sexual, que os médicos acreditam serem muitos mais do que os registados, começou desde que Abiy Ahmed, primeiro-ministro da Etiópia, lançou uma operação militar contra os líderes de Tigray, enviando tropas nacionais e combatentes da região Amhara do país, à qual se juntou a vizinha Eritreia. De acordo com um dos médicos entrevistados pela CNN, Tedros Tefera, os militares de Amhara disseram às mulheres que as violavam porque queriam “limpar etnicamente” o estado de Tigray e que esta situação constituía “praticamente um genocídio”.
Nas últimas semanas, jornalistas de todo o mundo pressionaram o governo da Etiópia para que lhes fosse permitido o acesso a Tigray. Com a sua entrada na região, recentemente, o Channel 4 News publicou, na última quinta-feira, um relatório com entrevistas realizadas a 40 mulheres vítimas de abusos sexuais, com relatos traumáticos.
Uma das vítimas contou que ela e seis mulheres foram violadas por 30 militares eritreus (que as fotografaram durante os ataques) e que, quando tentou fugir, foi novamente raptada e, durante dez dias, violada, esfaqueada e drogada. Um médico de um hospital de Mekelle disse, depois, a este canal, que só naquela instituição mais de 200 mulheres foram internadas por crimes de violência sexual nos últimos meses, mas que tinham sido relatados vários casos em locais mais rurais e sem acesso a cuidados médicos. De acordo com um relatório publicado pela Médicos Sem Fronteiras, na última semana, o conflito em Tigray, que levou a vários ataques a instalações de saúde, restringiu também o acesso a cuidados de saúde.
O conflito no segundo país mais populoso de África começou a 4 de novembro entre as forças federais etíopes e aliadas e as forças estaduais, leais aos agora fugitivos líderes de Tigray, quadros eleitos da Frente de Libertação do Povo Tigray (TPLF, na sigla em inglês), partido que dominou durante décadas o governo da Etiópia, antes da tomada de posse de Abiy, em 2018. Estima-se que tenham morrido milhares de civis desde o início deste conflito.
Estas novas acusações acontecem na altura em que Joe Biden, presidente dos EUA, enviou o senador Chris Coons para se encontrar com Abiy e transmitir ao país “as preocupações sobre a crise humanitária” em Tigray, tendo já, anteriormente, sido pedida uma investigação independente sobre os alegados crimes cometidos durante o conflito.
Os governos da Etiópia e da Eritreia não responderam às mais recentes acusações.