Ainda não tinha dado um único passo no Butão, mas a viagem ao pequeno e misterioso reino dos Himalaias começava já a ser inesquecível. Primeiro, com a emoção de sobrevoar, durante largos minutos, os cumes brancos da maior cordilheira do planeta – com o pico do Evereste mesmo ali ao lado, quase à altitude a que voávamos. Depois, quando o aparelho começou a ziguezaguear por entre as montanhas, e a euforia se transformou num nervosismo indisfarçável… O stresse aumentou quando, já a poucos metros do solo, olhei pela janela e vi a pista do aeroporto… do lado direito, como se o avião seguisse num sentido perpendicular a ela. Foi então que, numa manobra de perícia, sem ligar aos risos nervosos da maioria dos passageiros, o piloto fez o avião dar uma última guinada, contornar mais uma elevação, alinhar o nariz com a pista e, dois segundos depois, pousar, delicadamente, concluindo com nota elevada aquela que é reconhecida como uma das aterragens mais difíceis e arriscadas do mundo – tão exigente que apenas menos de duas dezenas de pilotos estão habilitados a realizá-la, e sempre à luz do dia.
Aterrar no Butão é assim, se quisermos, como aportar numa ilha misteriosa e longínqua, rodeada por mar revolto e ondas gigantes, onde existe apenas um pequeno cais de abrigo, só acessível aos navegadores locais mais experientes. A comparação não é totalmente descabida, acreditem. Em certa medida, conforme fui descobrindo ao longo de uma dúzia de dias, o Butão é mesmo uma espécie de ilha no meio dos Himalaias, com a particularidade de os seus vales, onde vivem os cerca de 750 mil habitantes, estarem encravados entre os dois países mais populosos do mundo. Para se distinguir dos dois gigantescos vizinhos, a China e a Índia, o Butão teve de se isolar e de construir, ao longo de séculos, uma cultura própria, enraizada no interior das suas fronteiras, alicerçada no budismo, e proibindo qualquer contacto com o exterior. Os primeiros turistas estrangeiros só foram autorizados a entrar no país há pouco mais de 40 anos, e apenas em 1999 os butaneses passaram a ter acesso à televisão e à internet.
Hoje, o turismo – em especial o de luxo – é visto e acarinhado como uma das principais fontes de rendimento do Butão, logo a seguir à venda de energia elétrica à Índia, através da recente rede de barragens (sem albufeiras, para não danificar a Natureza!) construída nos muitos cursos de água que descem, de forma contínua, dos picos gelados. O número de visitantes tem crescido em percentagens de dois dígitos nos últimos anos, mas sempre dentro de valores muito controlados – apenas 65 mil turistas estrangeiros em 2018 – já que para se entrar no Butão é necessário, primeiro, contratar um pacote de viagem com um operador local, que inclui sempre guia, motorista, alojamento, refeições e bilhetes para todos os palácios e monumentos, tudo pelo preço diário mínimo, que paguei, de 200 dólares por pessoa.
“A nossa estratégia turística resume-se a uma frase: proveito máximo com impacto mínimo”, explica-me Phuntsho Wangdi, o meu guia, quando jantámos, na primeira noite, num restaurante para turistas em Paro, entre vários grupos de estrangeiros, quase todos com mais de 50 anos, como eu, e acompanhados também pelos seus guias. Num inglês fluente e pausado, refinado durante os anos em que estudou na universidade do vizinho estado indiano de Sikkim, também nos Himalaias, Phuntsho diz-me que, através deste sistema, cada turista contribui, diariamente, com uma taxa de 65 dólares para o desenvolvimento sustentável do país. “É graças a essa taxa que a educação e a saúde são grátis para todos os habitantes do Butão”, sublinha, com orgulho.
Proibir para proteger
No dia seguinte, quando nos fazemos à estrada – sem nunca ultrapassar a velocidade máxima de 50 km/hora obrigatória em todo o território –, começo a confirmar que aterrei, de facto, num lugar único no mundo e que, apesar da sua localização geográfica, nada tem que ver com o resto da Ásia que conhecia. Percebe-se isso no respeito pelas regras de trânsito, na limpeza das ruas e na tranquilidade que emana de todos os locais públicos. A surpresa é ainda maior quando entro no grande mercado dos agricultores, na capital Thimphu. Em vez da confusão e do barulho vibrante dos mercados asiáticos, encontro um silêncio só comparável, porventura, ao de uma loja gourmet da Noruega, apenas com a diferença de aqui todas as pessoas envergarem os coloridos e elegantes trajes tradicionais do Butão (gho para os homens e kira para as mulheres). Tudo está impecavelmente arrumado e organizado, os vendedores falam, em voz baixa, uns com os outros, os legumes são apresentados já em porções previamente pesadas. E, claro, só há produtos biológicos, uma consequência normal num país onde os pesticidas são proibidos – tal como a venda de tabaco, a caça, a pesca, o abate de animais, os sacos de plástico (estes, desde 1999!) e até a escalada das suas montanhas mais altas.
Visto à superfície e com olhar analítico, o Butão pode parecer opressivo, tantas são as regras e proibições que existem neste território com uma área equivalente a metade de Portugal continental – até a sua jovem democracia parlamentar foi instaurada, em 2008, por imposição do rei e não por vontade do povo. No entanto, aos poucos, vamos percebendo que em todas as leis e regras há o mesmo propósito: proteger a identidade do país, a sua Natureza, cultura, tradições, sempre num profundo respeito pelos valores da religião budista. Manter a sua identidade nacional, forjada “apenas” há quatro séculos, tem sido a tarefa principal dos seus líderes, que assistiram, nas últimas décadas, a dois reinos dos Himalaias serem “engolidos” pelos vizinhos poderosos: o Tibete pela China, e Sikkim pela Índia. Para manterem o orgulho nacional elevado, os dirigentes butaneses apostam ao máximo na preservação da cultura – todas as casas têm de ser construídas de acordo com as regras tradicionais – mas também na criação de conceitos inovadores. O mais famoso de todos é o da Felicidade Interna Bruta, em oposição ao económico PIB, com que medem o desenvolvimento do país.
“A nossa maior riqueza é o tempo”, respondeu-me Phuntsho, quando o questionei sobre o tão famoso “segredo da felicidade” do Butão, enquanto caminhávamos pelo imenso vale de Phobjikha, rodeados por florestas intocadas e por animais em absoluta liberdade, a mais de 3 mil metros de altitude. “Aqui temos tempo para tudo, para apreciar a Natureza e para estarmos com os amigos. Sempre com a certeza de que aquilo que não fizemos hoje podemos fazer amanhã, sem que isso modifique alguma coisa na Natureza ou na nossa família e nos amigos.” Naquele ambiente, porventura numa das paisagens mais belas do país, a par do vale de Punakha, era impossível não concordar com o meu guia. Mas ele insistiu: “A felicidade é uma harmonia entre o espiritual e o material, mas com uma certeza: no fim, quando morreres, não levas absolutamente nada contigo, quer sejas pobre ou rico.”
Carbono negativo
Apesar de ter todo o tempo do mundo ao seu dispor, a verdade é que, todas as manhãs, Phuntsho apresentava-se pontual, envergando um elegante gho, com um sistema de bolsos internos onde, fui descobrindo, ele guardava os documentos, o telemóvel, a carteira, uma garrafa de água e tudo o mais que fosse preciso, sem que isso mudasse alguma coisa na sua postura. É o mesmo traje que usam, obrigatoriamente, os alunos de todos os graus de ensino (exceto nos dias de Educação Física…) e funcionários públicos, mas também os trabalhadores do campo e a generalidade das pessoas.
Já tinha lido que a Constituição do Butão obriga a que 60% do território tenha de estar coberto por floresta. Phuntsho elucida-me que, na realidade, é superior a 70% a área coberta por árvores. Mas quando, no caminho para Punakha, a capital espiritual do país, nos cruzamos com grupos de guardas-florestais, o guia acrescenta mais uma informação: no Butão, o corte de uma árvore é punido com pena de prisão. “Só quando se quer construir uma casa é que temos autorização para cortar no máximo 18 árvores, sem pagar absolutamente nada por elas”, diz. “Mas, depois, temos de esperar mais 20 anos, até podermos repetir novo corte de árvores.”
Mais uma vez, o sistema parece funcionar. E é por causa das suas florestas que o Butão é o único país do mundo com uma taxa negativa de carbono – absorve mais emissões de CO2 do que aquelas que emite para a atmosfera. Conforme vamos avançando pelo Interior, subindo e descendo montanhas, com transições próximas dos quatro mil metros de altitude, a quantidade e a dimensão da floresta revelam-se sempre impressionantes. E, em todas as aldeias, as casas exibem uma estrutura de madeira, com janelas e portas trabalhadas de forma artística, complementadas por pinturas tradicionais nas paredes brancas. Em todo o lado, quando veem um estrangeiro, as pessoas demonstram a sua hospitalidade. Os mais velhos, incapazes de se exprimirem noutra língua que não o tradicional dzonga, sorriem, ensaiam uma pose para a fotografia e tentam sempre perguntar se estamos a gostar da experiência de visitar o país. Os mais novos, habituados a ter aulas de inglês na escola, desde há cerca de duas décadas, mostram-se prestáveis, usando um inglês com todas as regras de educação e procurando saber se precisamos de alguma ajuda.
Espiritualidade enraizada
À primeira vista, pode parecer que o Butão é uma sociedade parada no tempo. Pura ilusão. À medida que o vamos conhecendo, percebemos que há ali uma dinâmica diferente, sempre muito enraizada nos princípios do budismo, mas cada vez mais informada e atenta aos avanços da Humanidade e às mudanças do planeta. Nos mosteiros, é habitual encontrar monges a verem vídeos nos seus telemóveis. Nas últimas eleições para o parlamento, em outubro de 2018, o impacto das fake news nas redes sociais foi um dos temas mais comentados na campanha eleitoral. E uma das principais promessas do novo primeiro-ministro foi o lançamento de uma aplicação para telemóvel, tipo WhatsApp, que permitisse a todos os habitantes, até os dos vales mais recônditos, poderem comunicar de forma grátis entre si.
O que se sente mesmo de diferente no Butão é a espiritualidade enraizada – visível nos muitos templos, quase todos impecavelmente restaurados ou em vias disso, mas também nas habitações familiares, onde existe sempre um altar para, de manhã, pais e filhos se reunirem e fazerem as suas orações. “Só nos momentos festivos ou quando se quer pedir uma dádiva especial é que vamos a um templo. De resto, as orações diárias são feitas sempre em casa”, esclarece-me Phuntsho.
Manter essa harmonia entre a tradição e o desenvolvimento sem sacrificar a paisagem natural é o maior desafio para o futuro do pequeno país. Quem o visita e percorre os seus vales, franqueando as portas dos mosteiros-fortalezas (dzong), onde a vida corre serena e tranquila, dificilmente deixa de sentir que entrou num local com uma atmosfera única no mundo. A busca da harmonia é, nestas paragens, uma tarefa diária – com um efeito transformador para o país e para quem nele viaja.