“É melhor acender uma vela do que amaldiçoar a escuridão”, dizia Confúcio. O provérbio inspirou o advogado britânico Peter Benenson a criar a Amnistia Internacional, em 1961, e a adotar a vela como símbolo de um movimento de cidadãos determinados a lutar pela defesa dos direitos humanos, em todo o mundo.
Desde então, fez-se muito caminho. Mas em 2017 deram-se vários passos atrás, lamenta a organização não-governamental no seu relatório anual, em que analisa os progressos (e retrocessos) em 159 países. Portugal tem direito a duas páginas e meia, mas as situações mais graves registam-se noutros capítulos, noutras latitudes.
No ano em que se comemoram os 70 anos da aprovação da Declaração Universal dos Direitos do Homem nas Nações Unidas, há uma nova retórica de medo e de ódio a dominar a política mundial, o que só originará mais divisão, mais guerra e mais crises, lamenta o secretário-geral da Amnistia, Salil Shetty.
Logo em janeiro de 2017, a proibição de entrada nos Estados Unidos da América de cidadãos de vários países de maioria islâmica deu o tom para um ano que seria dominado pela implementação de muitas medidas políticas motivadas pelo ódio ao outro, considera a organização.
“O espectro do ódio e do medo dominam hoje a política mundial e há cada vez menos governos a erguerem a sua voz na defesa dos direitos humanos. Em vez disso, temos líderes como al-Sisi, Duterte, Maduro, Putin, Trump e Xi a porem em causa os direitos de milhões de pessoas”, acusa Salil Shetty.
“A resposta pífia a crimes contra a Humanidade como os que assistimos em Myanmar, no Iraque, no Sudão do Sul, na Síria e no Iémen provaram bem como estamos sem líderes capazes de impôr o respeito pelos direitos humanos. Os governos do mundo estão desavergonhadamente a andar para trás, deixando cair direitos tão duramente conquistados ao longo das últimas décadas.”
A falta de respostas oficiais está a levar a um aumento da participação civil na luta pela justiça e paz no mundo, nota a organização, antevendo o aumento de protestos e manifestações em 2018.
AS GRANDES CRISES DE 2017
A perseguição e tentativa de limpeza étnica dos Rohingya, que levou à fuga de 650 mil pessoas desta minoria islâmica de Myanmar para o Bangladesh (onde permanecem em campos de refugiados em condições sub-humanas), foi um dos acontecimentos mais dramáticos de 2017, merecendo destaque neste relatório. Mas Myanmar é apenas um dos 20 países que a Amnistia Internacional destaca como “os maiores violadores de direitos” do ano.
(Por ordem alfabética)
AFEGANISTÃO
A guerra prossegue, tendo provocado um recorde de mortes entre a população civil. Só num atentado à bomba em Cabul, a 31 de maio, morreram mais de 150 pessoas. Contudo, o repatriamento forçado de afegãos por parte dos países europeus continua a aumentar.
ARÁBIA SAUDITA
Apesar dos mediáticos anúncios de abertura, as liberdades de expressão, reunião e associação são fortemente reprimidas e as mulheres continuam a viver sob discriminação sistemática.
AUSTRÁLIA
Continua a política de confinamento de refugiados em centros de detenção nas ilhas da Papua Nova Guiné e de Nauru, em condições punitivas, e o desrespeito pelos direitos das populações indígenas.
CHINA
Sob a capa da “segurança nacional” continuam a ser aprovadas leis que violam gravemente os direitos humanos. O prémio Nobel da Paz Liu Xiaobo morreu sob custódia das autoridades e vários ativistas são presos e condenados por “subversão”. O controlo da Internet e a perseguição a outras práticas religiosas intensificou-se.
COLÔMBIA
Apesar do histórico acordo entre o governo e as FARC, o conflito continua a ser uma realidade para milhares de civis, sobretudo indígenas, descendentes de africanos e comunidades de agricultores.
ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA
As ondas de choque da chegada de Donald Trump ao poder sentiram-se em todo o mundo. Além das severas medidas anti-imigração, com destaque para a proibição de entrada no país de cidadãos de vários países islâmicos, esta Administração procurou retirar o acesso à saúde a milhões de americanos, apoiou publicamente a tortura, aliou-se a racistas e minou a confiança nos media.
FILIPINAS
Uma violenta campanha anti-drogas resultou na morte de milhares de pessoas pela polícia, sobretudo nas comunidades mais pobres.
FRANÇA
O estado de emergência foi levantado e substituído por novas leis de contra-terrorismo que restringem severamente os direitos humanos. As autoridades tratam os emigrantes e refugiados de forma punitiva, deportando a grande maioria de volta aos seus países, via Itália.
IÉMEN
A vida ficou ainda mais difícil naquele que já era o país mais pobre do Médio Oriente, antes do início da guerra entre as forças governamentais e os rebeldes houthi, em 2014. A população está praticamente sem acesso a comida, água potável e cuidados médicos.
ISRAEL E TERRITÓRIOS OCUPADOS DA PALESTINA
Em junho cumpriram-se 50 anos da ocupação de Israel sobre os territórios palestinianos e a campanha de expansão dos colonatos intensificou-se, tal como as medidas restringindo os movimentos e a liberdade dos palestinianos na Cisjordânia.
LÍBIA
A caos continua a reinar no país, sem que o governo interino consiga assumir o controlo, levando milhares de pessoas a continuarem a tentar fugir para a Europa, sujeitando-se à escravidão e extorsão de redes de traficantes.
MÉXICO
Ativistas e jornalistas continuam a ser ameaçados e mortos.
MYANMAR
A fuga dos Rohingya à tentativa de limpeza étnica assumida pelos militares foi o último capítulo de uma longa história de perseguição desta minoria muçulmana, que tem vivido no país num sistema de apartheid, desprovidos de quase todos os direitos.
POLÓNIA
As garras do governo estenderam-se ao poder judicial, organizações não-governamentais e meios de comunicação social.
QUÉNIA
Antes das eleições de agosto, centenas de opositores foram perseguidos pela polícia e 46 perderam a vida – incluindo o comissário eleitoral Chris Msando, torturado até à morte.
RÚSSIA
A liberdade de expressão é uma miragem e todos os protestos são fortemente reprimidos, com centenas de detenções. Os ativistas são vítimas de intimidação e espancamento e a comunidade LGBTI continua a ser perseguida.
SÍRIA
O anúncio da vitória sobre o ISIS pode chegar em 2018, mas a que custo? As baixas civis atingem números catastróficos.
TURQUIA
Mantém-se o estado de emergência, com múltiplas violações de direitos humanos. Jornalistas e ativistas são alvo de perseguição permanente.
VENEZUELA
O país atravessa uma das piores crises humanitárias da sua história, com grandes restrições no acesso a bens alimentares e a medicamentos. Vive-se uma situação política caótica e os opositores são fortemente reprimidos.
ZIMBABUÉ
Saiu Robert Mugabe mas os problemas do país estão longe de terminar. O atual governo continua a perseguir a oposição, a crise económica agudizou-se e a população desespera, sem trabalho e sem comida.