Na China, uma civilização com quatro mil anos, a escala temporal com que se olha para a História e para os movimentos políticos e sociais é totalmente distinta da que se usa no Ocidente. O antigo primeiro-ministro Chu Enlai explicou isso, de forma eloquente, a Henry Kissinger, quando este, em 1972, lhe perguntou o que ele pensava sobre as consequências da Revolução Francesa, de 1789. “Ainda é muito cedo para dizer”, respondeu-lhe o dirigente chinês. Essa noção distendida do tempo é também a ferramenta que tem ajudado o atual líder de Pequim, Xi Jinping, a distinguir-se dos seus antecessores. Enquanto Jiang Zeming e Hu Jintao centraram os seus planos e políticas no plano interno e quase imediato, primeiro na abertura do mercado e depois na modernização industrial, o atual secretário-geral do PC Chinês tem dedicado grande parte do seu tempo a olhar para um futuro que, para qualquer político ocidental, seria longínquo: o ano de 2049 e o seu sonho do que será a China, à escala mundial, exatamente um século depois da fundação da República Popular. E essa visão de uma China “rica e poderosa” será central na apresentação com que vai abrir, dia 18, os trabalhos do 19º Congresso do Partido Comunista Chinês, um enclave em que Xi Jinping chega como líder incontestado e, todos apostam, deverá sair com o poder ainda mais reforçado.
Jogo de sombras
Os congressos do PC Chinês são momentos decisivos na vida da nação mais populosa do mundo e com a segunda maior economia do planeta. Sempre que os milhares de delegados se reúnem, de cinco em cinco anos, no Grande Palácio do Povo, na imponente Praça Tiananmen, sabe-se que, no final dos trabalhos, sairão as diretrizes para o futuro do país e, mais importante ainda, os dirigentes que o vão governar. A coreografia, nas últimas décadas, tem sido mantida sem grandes sobressaltos, com o poder máximo a mudar de dez em dez anos e, nos intervalos, com o secretário-geral a indicar um herdeiro, que ocupará o seu lugar após um tirocínio de cinco anos no Comité Permanente, órgão mais poderoso e cuja composição tem sido negociada entre as várias fações do partido, por vezes com intrigas e “desaparecimentos” que lembram certos episódios da Guerra dos Tronos, mas aqui na versão de teatro de sombras.
Foi através desses jogos de influências que Xi Jinping chegou à cadeira de secretário-geral, em 2012, com o seu nome a ser “soprado” por um grupo de dirigentes históricos, mas apenas tolerado pelos ex-líderes Jiang Zeming (da chamada fação de Xangai) e o seu sucessor, Hu Jintao (da fação da Juventude Comunista) – que, para se manter em jogo, conseguiu impor o seu protegido Li Kegiang para o lugar de primeiro-ministro. “Mas apesar dessa posição de compromisso, em que se viu obrigado a cooperar com dirigentes escolhidos pelos seus antecessores, Xi Jinping conseguiu na mesma consolidar o seu poder e convencer o partido a aprovar todas as reformas que quis”, destaca Jean-Pierre Cabestan, professor de ciência política em Hong Kong.
Para o antigo primeiro-ministro australiano Kevin Rudd, o segredo do êxito da liderança de Xi Jinping, que conhece bem, reside em três características: “A sua autoridade pessoal, o seu sentimento profundo de missão, e um sentimento ainda maior de urgência.” A primeira característica permitiu-lhe impor-se acima dos seus pares, graças a uma retórica eloquente que, quando quer, consegue transformar em agressiva e dura para com os adversários. A segunda, granjeou-lhe uma fama inquebrável de tenacidade, alicerçada também num faro político desenvolvido ao longo de uma longa experiência política em que passou por vários cargos e funções, conforme confidenciou, em 2013, a um grupo de jornalistas estrangeiros: “Eu trabalhei no campo, e a todos os níveis locais, provinciais e centrais, e percebi que um dirigente com boa experiência no terreno é o que conhece melhor as condições verdadeiras do país e o que o povo quer. Esse é, para mim, um requerimento básico para se fazer um bom trabalho.” Mas foi a terceira característica que, finalmente, acabou por ser decisiva para enfraquecer os adversários internos e, em simultâneo, granjear-lhe um grande apoio popular: fazer da luta contra a corrupção a sua maior urgência.
Contra “tigres” e “moscas”
Pouco tempo depois de tomar conta do partido, Xi Jinping avisou que ia ser implacável no domínio da corrupção. Numa reunião com os outros 24 membros do Politburo, ele disse-lhes que “a corrupção podia matar o partido” e que a sobrevivência da organização que dirige a China desde 1949 depende do apoio popular que possa ou não ter. Para isso, citou Confúcio e exortou-os a “governar com virtude e a manter a ordem através da punição”. Não era retórica, conforme se foi vendo ao longo dos últimos cinco anos.
Com a ajuda do seu mais próximo aliado Wang Qishan – conhecido como o “bombeiro de serviço” por, ao longo da sua carreira, ter sido chamado para desempenhar tarefas difíceis e delicadas, como a de garantir os últimos preparativos dos Jogos Olímpicos de Pequim 2008 ou coordenar a resposta chinesa à grande crise económica do subprime –, Xi Jinping lançou uma campanha anticorrupção sem precedentes. Conhecida por “tigres e moscas”, esta ação dirigida por Wang em linha direta com Xi, visava tanto os militantes de base como os mais altos quadros do partido.
Os resultados foram demolidores: mais de 1,4 milhões de quadros do partido, a maioria “moscas”, foram alvo de processos e muitos deles condenados e expulsos. Mas o impacto mais mediático, numa China em que cada vez mais habitantes estão interligados nas redes sociais locais, foi mesmo a dimensão da razia entre os “tigres”: mais de 250 dirigentes e altos funcionários foram derrubados, incluindo generais, presidentes de grandes corporações, governadores provinciais e até membros do Comité Central do partido. Muitos foram condenados a prisão perpétua.
Ainda em julho, poucos meses antes do 19.º Congresso, a cruzada anticorrupção atingiu Sun Zhengcai, governador da megacidade de Chongqing, que muitos tentavam perfilar como um futuro membro do Comité Permanente e até como sucessor de Xi Jinping. O anúncio da sua destituição foi objeto de editorial na primeira página do Diário do Povo, jornal oficial do PC Chinês, a criticá-lo por se ter desviado “da disciplina férrea” e, com isso, a fazer “soar o sinal de alarme no partido”. E uma semana antes do congresso, o veredito chegou para mais uma dúzia de membros do Comité Central, a quem foi dada ordem de expulsão. No total, desde 2012, Xi Jinping e Wang Qishan afastaram 17 membros efetivos e outros 17 suplentes dos cerca de 200 elementos do Comité Central.
Ao eliminar, de uma forma sem precedentes, tantos dirigentes e adversários, Xi Jinping conseguiu fazer desaparecer quase por completo o poder das fações que, nos tempos de Jiang Zemim e Hu Jintao, minavam a influência do partido e, de certa maneira, abriam caminho para a corrupção. Agora, este 19.º Congresso dá-lhe a possibilidade de montar um corpo dirigente de topo muito mais unido, composto por aliados e seguidores.
“Este congresso é o ideal para assinalar o início de uma nova era para Xi Jinping”, diz Chen Daoyin, professor de ciência política em Xangai. “Ele tem todas as garantias de poder promover os seus apoiantes para postos-chave, onde podem desenvolver a sua política e agenda em posições de liderança centrais.”
Poder a mais?
A grande dúvida, em vésperas do congresso, é saber até onde Xi Jinping levará o seu poder, perante a quase unanimidade gerada à sua volta, em especial quando começam a ser públicas as vozes que advogam que a China está numa fase decisiva da sua história e que, como tal, precisa de um líder forte e com uma visão de longo prazo. Pode Xi Jinping não indicar um sucessor e tentar posicionar-se para se manter mais do que os “regulamentares” (embora não escritos) 10 anos no poder? Pode Xi Jinping contrariar a regra (também não escrita) do limite de idade de 68 anos para os altos dirigentes e manter o seu “czar” anticorrupção a seu lado, durante mais um mandato? Finalmente, pode Xi Jinping convencer o partido a elegê-lo chairman e, com isso, alcançar o mesmo poder indiscutível, acima de todos os outros órgãos, como sucedia com Mao Tsé-Tung?
As respostas a essas perguntas andam, nestes últimos dias, a ser debatidas entre as altas figuras do partido nos edifícios oficiais de Zhongnahai, no meio de uma área ajardinada, a poucos passos de Tiananmen. O que parece já assente é que o partido poderá aprovar uma contribuição ideológica de Xi Jinping para uma nova interpretação do marxismo. Se aprovar esse Pensamento de Xi Jinping, estará, na prática, a colocá-lo no mesmo patamar dos dois grandes líderes históricos do partido, a par do Pensamento de Mao Tsé-Tung e da Teoria de Den Xiaoping.
Mas, externamente, os grandes elefantes no meio do imenso auditório do Palácio do Povo serão, naturalmente, as relações da China com a sua vizinha Coreia do Norte e a tensão com os Estados Unidos da América, de Donald Trump. Como habitualmente, os mais de 2 300 delegados ao congresso não deverão ouvir mais do que algumas frases que, após elaboradas interpretações, poderão dar alguns sinais. Mas nada mais do que isso. Até porque, como se sabe, Xi Jinping tem planos até 2049 e não serão algumas pedras passageiras no caminho que o farão afastar desse objetivo. O tempo na China tem sempre menos urgência e ainda é cedo para dar lições.
Os trabalhos de Xi JiNping
As metas que o líder de Pequim pretende alcançar para restaurar a glória e o orgulho chinês:
Fim da pobreza
Em 2020, o Partido Comunista celebra o centenário e a China prevê ter conseguido duplicar, numa década, o PIB per capita. Com isso, o país deixará de ter bolsas de pobreza e terá, segundo Xi Jinping, uma “sociedade modernamente próspera”.
“Modelo chinês”
Em 2049, a China será “rica e poderosa”. Este objetivo deve ser atingido, diz, seguindo o “modelo chinês”, liderado pelo PC, em oposição ao modelo capitalista liberal democrático do ocidente, que ele considera totalmente inadaptado às características do país.
Rota da seda
A maior plataforma comercial do mundo, assente em rotas marítimas, rodoviárias e ferroviárias, unindo mais de 60 países em três continentes. Um projeto decisivo para a concretização do “sonho chinês”.
Artigo publicado na VISÃO 1284 de 12 de outubro