A quarta temporada de Cuéntame [Conta-me Como Foi], a popular série televisiva sobre a história recente de Espanha, abria com a visita ao bairro da família protagonista de um cantautor catalão, que interpretava na sua língua materna a canção que foi um dos grandes hinos da luta contra a ditadura, L’ Estaca. Tivesse havido em Espanha uma revolução como a portuguesa e este tema musical teria sido o Grândola Vila Morena espanhol, mas trata-se, em qualquer caso, de um poderoso símbolo da luta pela liberdade, que o sindicato polaco Solidariedade transformou, anos depois, no seu hino contra a opressão soviética. O seu compositor e intérprete, Lluís Llach, é cabeça de lista independentista pela província de Girona nas eleições catalãs de 27 de setembro. A evolução do cantor, que passou de símbolo do progressismo espanhol a ponta de lança do secessionismo, reflete a de uma parte significativa da sociedade catalã, que, nos últimos anos, se desligou da Espanha e quer romper com ela a todo o custo, apesar das ameaças de ser excluída da União Europeia. O resultado do 27-S, como é designado o ato eleitoral, indicará quantos são eles e qual é, por conseguinte, a gravidade do conflito, bem como as possibilidades de que se recue ou de que acabe numa rotura de consequências incalculáveis, através de uma declaração unilateral de independência e, inclusive, de uma suspensão da autonomia.
“As primeiras palavras em catalão que ouvi na vida estavam nos discos de Lluís Llach que os meus pais tinham em casa”, contou, no último domingo, num comício no bairro de Horta, em Barcelona, Pablo Iglesias Turrión, o líder do partido emergente Podemos, formação que há um ano encerrou o seu primeiro comício na praça de touros madrilena de Vista Alegre a cantar L’Estaca. O seu refrão, em catalão, diz “se puxarmos todos juntos, cairá. Muito tempo não pode durar” e referia-se originalmente à ditadura de Franco, mas o Podemos aplica-o ao ?regime instaurado em Espanha a partir da Constituição de 1978.
“Não percebo o que teve de se passar neste país para que Lluís Llach esteja mais perto de Artur Mas que de nós. Não percebo”, proclamou Iglesias no comício da Horta, para acrescentar uma surpreendente confissão: “Desculpem-me se manifesto a minha perplexidade. Se calhar é porque não percebo a Catalunha”. Estas declarações do líder do Podemos, pouco usuais num discurso de campanha, vinham na sequência da polémica que mantivera nos dias anteriores com Llach, o qual acusou Iglesias de ter “obsessões sexuais” com Artur Mas, o atual presidente da Generalitat e número quatro da lista por Barcelona do Junts pel Si.
Cenários em aberto
Ainda que se manifestasse impotente, Iglesias acertou no alvo. Não é nada fácil perceber o que se passa na Catalunha. O diário? El País publicou uma reportagem sobre as dificuldades sentidas pelos correspondentes estrangeiros em Espanha, na sua maioria com escritório em Madrid, para relatar o que está a acontecer, depois da tradicional festa nacionalista da Diada, a 11 de setembro, se ter convertido num movimento massivo que reclama a independência, com a novidade de que, desta vez, os 1,4 milhões de pessoas que participaram segundo a polícia municipal, ou os poucos mais de meio milhão, segundo os números do governo espanhol, o que reivindicaram já não foi votar num referendo de autodeterminação como o de 2014 na Escócia, mas sim proclamar diretamente a República Catalã. “É realmente impossível interpretar o que vai acontecer”, dizia o correspondente da BBC em Espanha, Tom Burridge.
Essa dificuldade na leitura da realidade catalã, complexa e em mutação, explica-se em parte pelo desinteresse de Madrid em interpretar o que aconteceu em Barcelona desde junho de 2010, quando, em plena tempestade financeira no sul da Europa, pouco depois do primeiro resgate grego e ao mesmo tempo que o então primeiro-ministro português José Sócrates proclamava que “o mundo mudou”, o Tribunal Constitucional espanhol publicou a sua sentença sobre o Estatuto de Autonomia que tinha sido maioritariamente aprovado na Catalunha por referendo em 2006 e que, entre outros, tinha sido apoiado pelo Partido Popular, a força governante hoje em Espanha. O texto foi modificado pelo Tribunal Constitucional em partes muito sensíveis, que afetavam o reconhecimento da nação catalã, a língua e o financiamento do Governo autonómico. O sentimento de ofensa perante esta sentença, combinado com o mal estar provocado pela crise e adornado com alguma demagogia sobre a solidariedade territorial com as zonas mais pobres de Espanha, fez disparar o sentimento ?independentista catalão, até então minoritário, ao mesmo tempo que se entrava numa dinâmica de retroalimentação entre os setores mais intransigentes dos poderes políticos e mediáticos espanhóis com os defensores mais radicais do secessionismo da Catalunha.
Obsessão independentista
Mas no caráter indecifrável da política catalã influi também uma certa absorção obsessiva, um fecho em si da Catalunha nos seus complexos debates sobre o polémico caminho até à independência, dentro do chamado procés – processo em catalão. Por exemplo, discute-se agora se será legítima a Declaração Unilateral de Independência (DUI) que os partidários da secessão querem aprovar, em menos de ano e meio, se tiverem maioria absoluta no próximo Parlamento autonómico.
As eleições do 27-S deveriam contribuir para clarificar o hieróglifo catalão, porque os partidários da independência apostaram em transformá-las num plebiscito sobre a criação da república catalã, depois de não terem conseguido convocar o referendo de 9 de novembro do ano passado, que se ficou por um processo de cidadania participativa, apadrinhado pela Generalitat, face à recusa do governo espanhol. Votaram então 2,3 milhões de pessoas, 37% dos recenseados, e 80% delas pronunciou-se a favor de que a Catalunha seja um estado independente.
Duas candidaturas defendem a posição secessionista. Uma é a oficial, a do Junts pel Si, uma amálgama do independentismo social com os dois principais partidos soberanistas, Esquerra Republica e Convergencia. A outra é a da rotura, a candidatura da CUP, uma espécie de Podemos catalão. A frente do Não à independência e ao referendo articula-se em torno do PP e do seu novo concorrente no centro-?-direita espanhol, a Ciudadanos, uma força política nascida em 2006 como um partido nacionalista espanhol com um líder habilidoso, Albert Rivera. O PP e a Ciudadanos acusam Artur Mas de fomentar todo o imbróglio independentista para esconder os graves casos de corrupção da Convergencia, o partido que tem governado a Catalunha durante a maior parte do período autonómico, que afetam muito diretamente a família do seu fundador, Jordi Pujol. ?A meia distância dos dois polos, Sim e Não, estão as propostas de pacto, através de um estado federal ou de um referendo acordado com o governo espanhol, posições defendidas pelo PSC, que é a versão catalã do PSOE, e por Cataluña Sí que se Puede, a coligação formada pelo Podemos e pelo Unió, o antigo parceiro da Convergencia que se demarcou da via independentista.
Contar votos
No entanto, o cenário é muito complexo porque na realidade o que se vai realizar no domingo 27 de setembro são eleições autonómicas. Segundo as sondagens, haveria uma maioria parlamentar do Junts pel Si e da CUP, partido este que apoia a declaração de independência, mas não a investidura de Artur Mas. Assim, poderia ser mais difícil governar a Catalunha do que proclamar a sua separação de Espanha, se bem que na verdade a declaração de independência não será mais que simbólica, porque o governo de Madrid não a vai aceitar e conta com o apoio pleno da União Europeia.
A questão reside na força eleitoral que o independentismo tiver para avançar com o seu plano, podendo mesmo obrigar Espanha a negociar um referendo à escocesa, como admitiu por diversas vezes Artur Mas, o qual, no entanto, também se diz disposto a proclamar a independência se obtiver a maioria de lugares no Parlamento, ainda que tenha menos de metade dos votos, porque o sistema eleitoral o favorece.
O episódio do Cuéntame sobre a atuação de Lluís Llach no bairro da família Alcántara, emitido pela TVE em 2003, acabava em confrontos porque um grupo de extrema direita interrompia o concerto pedindo que se cantasse “em cristão” e não em catalão, ao mesmo tempo que aparecia a polícia de choque. Está para se ver se o 27-S desemboca também num conflito, com a intervenção das forças policiais, ou se abre caminho a uma nova versão da articulação territorial de Espanha, com a canção de Lluís Llach como um dos seus símbolos renovados.