Em todas as guerras – além de vidas humanas – se perdem peças irrecuperáveis da história. Seja nos pequenos conflitos, seja nos grandes embates bélicos e ideológicos. Para não recuarmos demasiado no tempo, basta invocar a sanha nazi em eliminar a cultura e o povo judaicos. Entre 1996 e 2001, os talibãs afegãos multiplicaram autos de fé e não hesitaram em dinamitar os budas de Bamiyan (erguidos no século VI) e Ai-Khanoum, a mítica cidade fundada no século IV antes de Cristo por Alexandre, o Grande. Nas últimas semanas, o autoproclamado Estado Islâmico (ou ISIS ou Daesh) tem vindo a demonstrar que não tolera a existência de relíquias e monumentos que considere contrários ao Corão. Para os seguidores da organização fundamentalista que proclamou em junho um novo Califado que é suposto vir a estender-se do Sahel à Ásia Central – sem esquecer o Al-Andalus, a Península Ibérica – é imperioso destruir tudo aquilo que fomente a “idolatria” e desrespeite os ensinamentos do livro sagrado e do profeta Maomé. Em particular o património das civilizações anteriores à era islâmica. Um objetivo radical fundamentado no conceito de Jahiliyyah, a “idade da ignorância”, do paganismo, das trevas anteriores à submissão do homem e das mulheres a um Deus único (Alá) e à sua lei (a sharia). É com essa missão que o grupo tem vandalizado museus, bibliotecas e lugares milenares na Síria e no Iraque, alguns deles classificados pela UNESCO como Património da Humanidade.
E, apesar da indignação que tal comportamento tem suscitado a nível internacional, é bem provável que o pior ainda esteja para vir. A diretora geral da UNESCO, Irina Bokova, já pediu para o Conselho de Segurança e o Tribunal Penal Internacional se envolverem nesta questão. Em vão. “Não podemos ficar em silêncio. A destruição deliberada do património cultural constitui um crime de guerra” declarou Bokova a 6 de março, após ser revelado que os jihadistas se muniram de martelos pneumáticos e escavadoras para “terraplanarem” boa parte de Nimrod, antiga capital do império assírio, no norte do Iraque, cidade fundada no século III antes da era cristã. Antes, a 27 de fevereiro, o ISIS divulgou um vídeo com os seus fiéis a darem cabo das esculturas do Museu da Civilização, em Mossul, incluindo alguns Lamassu, os touros alados com cabeça humana que, com quase 28 séculos de história, um dos ex-líbris da cultura assíria. Muitos analistas falaram em “genocídio cultural” mas o ódio iconoclasta do califado não ficaria por aqui. Dia 7 foi a vez de um outro lugar mítico da antiga Mesopotâmia. Hatra, 80 quilómetros a sul de Mossul, cujas muralhas resistiram por duas vezes às legiões romanas, pode ter sucumbido aos explosivos do ISIS. Após o ataque, o Governo iraquiano pediu aos EUA que bombardeiem as posições jihadistas para proteger património insubstituível. Mas a barbárie continua à solta. Com os fundamentalistas sob assédio devido à ofensiva militar para os desalojar de Tikrit o vandalismo – e o saque – de sítios arqueológicos pode aumentar. Afinal, esse sempre foi um dos segredos para o seu financiamento. Só na Síria, em 2014, as estatísticas da ONU, falam por si: 24 lugares de grande valor cultural foram destruídos, 266 foram danificados e nenhum dos seis classificados como património da humanidade escapou…