Tete, maio de 1971
Num dia de maio de 1971 perguntei-me o que estava a fazer numa paisagem lunar, cinzenta e alaranjada, de rochas escaldantes, árvores de ramos secos, enquanto comia uma lata de conserva da ração de combate, sob uma temperatura superior a 40 °C, nas imediações dos morros de Cabora Bassa, em Tete, Moçambique. Suava e afastava mosquitos. Não me queixava das condições da natureza. Preparara-me para a enfrentar e aos inimigos, mas chegara o momento das interrogações. Era um intruso. Que causas me haviam trazido até ali? Estar ali resultava da minha vontade e da minha liberdade, ou fora fruto de um conjunto de acasos, pelo que tanto podia estar naquele como noutro lugar ou situação, segundo o meu livre-arbítrio? A causa ou causas que me conduziram àquele inóspito ponto da crosta terrestre eram conciliáveis com a minha liberdade? Se o acaso é uma mera justificação para a ignorância sobre a forma como os eventos se relacionam e surgem, como podia relacionar a minha presença nas montanhas de Tete com a minha liberdade?
Tinha 24 anos, o posto de capitão comandante de uma companhia das tropas especiais, os comandos, com o nome totémico de «Escorpiões». Estava a terminar os dois anos de comissão. Chegara a Moçambique em 1969, como tenente, vindo do Centro de Instrução de Comandos de Angola, a casa mãe daquelas tropas. Formara esta companhia em Montepuez com voluntários, havíamos combatido nas grandes operações do Norte em Cabo Delgado, no planalto dos Macondes. Os dirigentes da FRELIMO, o movimento que lutava pela independência de Moçambique, haviam decidido abrir a frente de guerra em Tete, e para ali viera eu enfrentá-los com os meus experientes, silenciosos e atentos comandos. Confiavam em mim e eu neles. Observei-os: todos tinham os olhos fundos de olheiras, os ossos dos rostos salientes, todos estávamos magros e de cabelos quase rapados. Havíamos decidido rapar o cabelo antes deste período de operações. Decisões sem explicação. Reforçava o espírito de corpo, ficávamos todos parecidos. Lembraram-me prisioneiros dos campos de concentração.
Perto de mim, um negro esfarrapado, descalço, magro, sem idade identificável, quase uma múmia de pele seca e escamada. O guia que a PIDE me tinha entregado para me levar ao acampamento dos guerrilheiros, vindos do Norte, que haviam atravessado o rio Zambeze. O negro, sentado sobre os calcanhares, amarrado pela cintura a um soldado, comia em silêncio o que lhe tínhamos dado
Afastados umas dezenas de metros, duas equipas de pisteiros rodesianos, os selous scouts, de calções caqui e chapéus de abas, bebiam chá. Haviam sido desembarcados de madrugada de um helicóptero Alouette, um ALIII, para procurar vestígios da presença de guerrilheiros da FRELIMO ou da ZANU, os seus correspondentes para a independência da antiga colónia da Rodésia do Sul, que haviam ultrapassado o rio Zambeze, o que o general comandante-chefe queria impedir a todo o custo. Por isso, determinara a vinda de uma unidade de comandos para, pela primeira vez, realizar operações conjuntas em Tete, o meu terceiro teatro de operações, depois do Niassa e de Cabo Delgado. Pela velocidade a que perdíamos o controlo do território admitia que ainda terminaria no Sul, em Gaza, como Mouzinho de Albuquerque, o patrono da minha arma de origem, a cavalaria, que prendeu Gungunhana, o rei dos Vátuas, e se viu promovido a trágico herói pelos políticos de Lisboa que o traíram. Os políticos mandaram-no combater enquanto negociavam com a Inglaterra a cedência do controlo do território que designariam por «Delagoa Bay», o atual porto de Lourenço Marques, por onde exportavam os produtos dos estados do Transval e do Natal e, através dos ingleses e dos boers, estabeleciam acordos com os chefes dos povos da região nas costas dos seus militares. Uma atitude que antecipou o tipo de relação entre os governos de Salazar e Marcelo Caetano durante a Guerra Colonial. Mouzinho não conseguiu, ou não quis encabeçar a revolta dos jovens oficiais que o seguiam. Suicidou-se física e politicamente sem proveito para Portugal e para os portugueses, tomando uma opção que os capitães rejeitaram em 25 de abril de 1974.
Perto de mim, um negro esfarrapado, descalço, magro, sem idade identificável, quase uma múmia de pele seca e escamada. O guia que a PIDE me tinha entregado para me levar ao acampamento dos guerrilheiros, vindos do Norte, que haviam atravessado o rio Zambeze. O negro, sentado sobre os calcanhares, amarrado pela cintura a um soldado, comia em silêncio o que lhe tínhamos dado – mastigava lentamente, com a boca de lábios rebentados pela pancada no interrogatório de há dois dias, numa tenda, na povoação de Estima, na base dos morros do Songo, no quartel-general do Comando Operacional das Forças de Intervenção. O negro confundia-se com a paisagem, a tempos regulares afastava as pequenas moscas com um gesto mecânico. Para ele, eu e os meus homens não existíamos. Éramos um acidente. Uma armadilha onde caíra, uma praga, uma maldição.
Perguntei-me de novo o que fazia naquele fim do mundo, no interior de África, com um negro atado pela cintura a um soldado, transformando-o num moderno caçador de escravos e a mim num negreiro. Aquela não era a terra a que eu pertencia. Nada me ligava àquele negro, nem àquelas rochas, nem àquele sol abrasador, nem aos mosquitos que me entravam pela boca, nem aos rodesianos brancos que mandavam os seus militares combater ao nosso lado, do lado de cá da nossa fronteira, para evitar que os guerrilheiros anti-apartheid realizassem ações do seu lado, na Rodésia que tinham escolhido para ser a sua terra e que por isso haviam declarado unilateralmente independente.
Que causa me ligava àquele negro e aos homens que estavam sob o meu comando? Que causa justificava a presença de cada um de nós naquele palco, a representar os nossos papéis? Mandei avançar a minha tropa, com o negro, de quem nunca soube mais do que ser um homem negro capturado, à frente.
Assistira ao interrogatório deste negro, efetuado por um major, oficial de informações, e pelo agente da PIDE que estabelecia a ligação com as Forças Armadas. No briefing da véspera da operação,
Perguntei-me de novo o que fazia naquele fim do mundo, no interior de África, com um negro atado pela cintura a um soldado, transformando-o num moderno caçador de escravos e a mim num negreiro. Aquela não era a terra a que eu pertencia
o subinspetor da PIDE declarara ao coronel Videira, comandante das Forças de Intervenção, o COFI (existe uma norma não escrita, mas funcional, de encontrar siglas para abreviar os textos), que o insucesso das operações realizadas para impedir o avanço dos guerrilheiros para sul do rio Zambeze se devia ao pouco empenho dos militares do Exército, que não aproveitavam os guias que a PIDE fornecia, devidamente maltratados. A cobardia é a mãe da crueldade. (Julgo ser uma frase de Montaigne. Confirmei-a em várias ocasiões.) A guerra é reveladora de caracteres. O major R., o oficial de informações, depois de agredir o capturado, libertou-lhe as mãos para ele desenhar a base de guerrilheiros no chão da tenda. Além de cobarde, o major R. era estúpido. Em vez de fazer um desenho, o prisioneiro agrediu o major, que ganhara a alcunha de «cretino esférico», sem ponta por onde se lhe pegar. Seria o intérprete da PIDE, também negro, quem vingou o major, batendo no prisioneiro com um pau até conseguir que ele fornecesse as informações necessárias para o assalto à base dos guerrilheiros vindos através da fronteira com a Zâmbia. Possuía a experiência dos maus resultados obtidos através destes interrogatórios e comuniquei as minhas dúvidas ao coronel Videira, que conhecia das operações no planalto dos Macondes, no Norte. Ele fora o primeiro comandante dos paraquedistas portugueses, um transmontano sensato e conhecedor, um comandante como os militares gostam de ter tanto nos bons como nos maus momentos. Olhou-me e sorriu quando me ouviu pedir-lhe autorização para o agente da PIDE me acompanhar e provar a eficácia dos seus métodos e a acusação que fizera, de a tropa não se esforçar em seguir os guias fornecidos pela polícia política.
O subinspetor da PIDE apresentou-se de madrugada junto aos helicópteros. Lembrou-me um manequim na montra de um pronto a vestir para caçadores: camuflado novo, botas de lona, um cantil, uma pistola e de óculos escuros. Um turista. Os meus soldados olharam-me à espera de um comentário. Levavam consigo, além do cantil pendurado no cinturão, mais um outro de 2 litros de água, a tiracolo, um poncho e uma camisola de lã no saco de lona às costas. Em Tete, as temperaturas de dia ultrapassam os 40 °C e de noite podem ser negativas. O homem devia conhecer a meteorologia, mas trabalhava num escritório com ar condicionado e nunca sentira os efeitos de viver como os lagartos nas rochas, que se tornam brasas durante o dia, nem o gelo do cacimbo à noite. Nos comandos treinávamos para sofrer situações extremas, na PIDE treinavam para os outros as sofrerem. Uma diferença que o devia ter aconselhado prudência antes de lançar suspeitas.
Depois do desembarque dos helicópteros, logo após o nascer do Sol, num ponto a alguma distância do local onde o homem da PIDE informara situar-se a base da FRELIMO, seguimos o «capturado» por trilhos entre rochas: descemos, subimos, voltámos a descer encostas de abismos com as pedras a rolarem debaixo das botas. Ao meio-dia o PIDE, que suava, já bebera toda a água, e eram os meus soldados que não o deixavam morrer à sede. Foram eles também que à noite lhe estenderam as suas mantas para ele não morrer de frio. Em vez de um fiscal que verificava como cumpríamos as missões ganháramos um empecilho!
De manhã os helicópteros trouxeram duas parelhas de selous scouts para renderem as que se encontravam junto a nós e reenviei à procedência o subinspetor da PIDE. Antes de embarcar, perguntou-me: «E o prisioneiro?» «Fico com ele, é-me mais útil do que o senhor!» «Ele foi entregue à PIDE…» «Eu sou o comandante. Embarque antes que os rodesianos se vão embora e eu não o levo às costas!»
A minha má relação com a PIDE começara no final do ano de 1970 e devia estar registada nos arquivos da organização.
A minha má relação com a PIDE
A companhia que comandava, os «Escorpiões», passara o Natal de 1970 em operações no planalto dos Macondes. Na noite de 24 para 25 de dezembro esperámos a madrugada para assaltar a base Angola, da FRELIMO, na região do lago Nguri, uma operação em que substituímos um destacamento de fuzileiros, declarado inoperacional por razões sanitárias que haviam reduzido o seu efetivo.
Vivida a consoada de Natal de 1970 com tiros, regressámos a Mocímboa da Praia para ali embarcarmos com destino a Porto Amélia, de onde iríamos continuar a fazer operações, agora às ordens do batalhão local. Como uma companhia de circo, servíamos vários empresários, mas foi após esta temporada de operações que começou a minha má relação com a PIDE.
No regresso a Montepuez, à base dos Comandos de Moçambique, li o correio acumulado. Da metrópole alguém me lembrava que tínhamos uma viagem a França combinada quando eu regressasse, no verão! «Passaporte!» Faltava o passaporte. Entregara há uns dois meses nos serviços da circunscrição de Montepuez, que correspondia mais ou menos a uma câmara municipal e a um governo civil, os papéis para obter o documento. Dirigi-me ao edifício, tipo colonial, e ao gabinete do administrador, que conhecia dos encontros sociais. Quando lhe perguntei pelo passaporte, o autarca colonial começou a esfregar as mãos de atrapalhação. Não fora emitido. «Falta algum documento?» Até tirara fotografias à civil. «O melhor seria o senhor capitão falar com o agente Casimiro (não me recordo do nome, podia ser Jacinto) da PIDE…» Perguntei ingenuamente: «Que tem a PIDE a ver com o meu passaporte?» «Também passa por eles…»
Regressei ao quartel e mandei o meu condutor ir com dois dos membros da minha equipa avisar o chefe da delegação da polícia política que precisava de lhe falar. Um quarto de hora depois entrou o jipe a grande velocidade, travou à minha frente e os meus dois soldados despejaram diante de mim um homem de pequena estatura, de calções e camisa caqui. Fitou-me, hesitante entre mostrar-se ofendido ou aceitar com resignação o que lhe pudesse acontecer no lugar mal-afamado que é um quartel de comandos, onde reina uma ordem particular e um capitão é o Deus todo-poderoso em exercício. Por sorte dele, a nossa má fama não correspondia à realidade das salas de interrogatório da PIDE.
Convidei o agente a sentar-se e a beber uma cerveja, antes de o informar que pretendia saber do meu passaporte. Tal como o administrador da circunscrição de Montepuez, também o agente começou a gaguejar e a torcer os dedos. A conversa decorreu entre o absurdo e o surreal. Um diálogo de manicómio. Ele recebera a indicação para me interrogar e responder a perguntas vindas da PIDE de Lourenço Marques: «O senhor capitão quer o passaporte para que finalidade?» «Para me deslocar ao estrangeiro!» «Sim, claro… E a que países do estrangeiro?» «Àqueles que constarem do passaporte, aqueles com quem Portugal mantém relações diplomáticas e onde eu tenha dinheiro para viver!» «E o senhor capitão… pensa lá ficar, ou volta?» «Boa questão. Se pensar ficar no estrangeiro não lhe vou dizer, não é verdade?» «Sim, claro, mas sabe o que se passou com aqueles seus colegas da Academia Militar que desertaram para a Suécia e para a Bélgica…»
O problema era esse!
Um grupo de dez alunos que frequentavam o último ano dos cursos de engenharia da Academia Militar no Instituto Superior Técnico havia desertado em agosto de 1970 por se opor à Guerra Colonial. O contacto com o movimento estudantil fizera-os críticos do regime. Haviam entrado na Academia Militar no ano anterior ao meu, e com alguns deles mantivera uma estreita relação de camaradagem, inclusive na prática de desporto, nas equipas de atletismo. A notícia da deserção fora publicada em vários jornais europeus e aproveitada pelos movimentos independentistas como propaganda contra a política do governo de Marcelo Caetano. Percebia a preocupação da PIDE e a intenção de não correr riscos comigo: a deserção de um capitão dos comandos em pleno teatro de operações teria efeitos devastadores. No final da curta entrevista disse-lhe: «Senhor agente…» «Sou chefe de brigada…» «Senhor chefe de brigada, a questão é simples: informe os que o mandaram interrogar-me que ou eu daqui a quinze dias, quando regressar de operações, tenho o passaporte passado e assinado, ou no dia seguinte vou a Nampula entregar o comando da companhia ao general comandante-chefe, que me manda realizar operações onde entende, mesmo nos países vizinhos, sem passaporte e sem receio que eu por lá fique, a não ser morto!»
Quinze dias depois, no regresso das operações, tinha em cima da minha secretária em Montepuez o passaporte, com as capas azuis em uso ao tempo, com os selos fiscais, a lista de países e um pormenor que me fez dar uma gargalhada. Na linha de identificação correspondente à profissão estava escrito «estudante»! – naquela época, os militares dos quadros permanentes das Forças Armadas apenas dispunham de bilhete de identidade militar. Mas eu era, para efeitos de apresentação num país estrangeiro, em 1970, um estudante que residia em Montepuez!
Adeus
Os selous scouts rodesianos haviam-nos apontado o trilho onde detetaram rastos de passagem de guerrilheiros. O assalto ficava por nossa conta.
Seguimos devagar, confundidos com as rochas, em silêncio, afastados. Cada um sabia o que fazer, para onde vigiar, onde colocar os pés, o guia um pouco à minha frente. Fizemos um pequeno alto junto a uma poça de água esverdeada, rodeada de árvores raquíticas. Mandei o homem que levava o guia preso à cintura sentá-lo perto de mim, fiz um gesto para colocar as mãos em concha e enchia-as de água. E ele elevou as mãos num gesto de agradecimento. Dei-lhe um cigarro dos meus e fumámos em silêncio. Perguntei: «Maconde?» Acenou que sim. Reparara nas cicatrizes de tatuagem nas fontes. «Base?» Apontou a direção com o queixo. Mandei os meus homens seguirem-no.

De repente encontrámo-nos na orla de uma mata no fundo de um pequeno vale. Vi restos de cinza, ramos secos a servir de teto a uma palhota já desfeita. Ali estava a base de guerrilheiros que constituía o meu objetivo! «Base?» O guia acenou afirmativamente. «Foi por isto que aqui viemos, meu capitão?», perguntou o alferes que comandava o grupo de assalto. «Parece que sim.» «Andam a gozar connosco!
Estava ali com excelentes jovens soldados, treinados para resistirem às piores condições de vida, armados e equipados, num desfiladeiro rochoso, desabitado, a 40 ou 50 quilómetros da mais avançada tecnologia, monstruosas, que construíam a gigantesca barragem de Cabora Bassa para produzir energia elétrica que iria iluminar as cidades dos brancos da África do Sul, produzir brisa fresca através dos seus ares condicionados, fazer mover os elevadores das minas do Rand, girar as brocas de furar as terras de diamantes, acender e apagar os néones dos centros comerciais da Cidade do Cabo e de Joanesburgo, que conhecia da passagem de Angola para Moçambique.
Mandei o soldado soltar o preso, dei-lhe o resto das minhas latas da ração de combate, que já não comia, enjoado, e apontei uma direção: «Zâmbia, gosse, gosse!» Já sabia algumas palavras dos idiomas locais, como «depressa». Um dos soldados perguntou: «Mata-se?» Neguei com a cabeça. O capturado afastou-se a andar de lado, olhando para nós, incrédulo e à espera de ser morto; vi-o afastar-se, primeiro lentamente, depois a correr, e desaparecer.
Eu viajava sozinho. Devia dar essa oportunidade e respeitar esse direito aos que se cruzavam comigo.
Restava procurar uma zona para os helicópteros aterrarem e me levarem de regresso. Seria a última operação que fiz em Moçambique. Quarenta anos mais tarde, em 2010, saberia em que estratégia estivera eu envolvido. Descobri uma aliança surpreendente.
Exercício Alcora
No dia 14 de outubro de 1970, delegações militares de Portugal, da África do Sul e da Rodésia assinaram em Pretória um acordo a que foi dado o nome de código «Exercício Alcora» e cujo objetivo consistia em «investigar os processos e meios de conseguir um esforço coordenado tripartido entre Portugal, África do Sul e Rodésia, tendo em vista fazer face à ameaça mútua contra os seus territórios na África Austral»
O acordo dos três países implicava um elevado grau de integração das suas Forças Armadas e destinava-se a estabelecer uma verdadeira aliança para a criação de um «bloco branco».
O meu 25 de Abril de 1974 começou em Tete, Moçambique, em maio ou junho de 1971, a perguntar-me o que andava a fazer em África. Combatia e conduzia os soldados a quem o Estado português, através do seu governo, impunha o dever do serviço militar obrigatório. Precisava de ter certezas quanto à razão ou razões pelas quais me encontrava em Tete, Moçambique, numa guerra que começara há dez anos, para lhes poder dar uma resposta, como era meu dever. Os militares que comandava tinham o direito de exigir que eu soubesse. Na guerra de guerrilha, realizada por pequenos
grupos isolados, a hierarquia assenta mais na confiança pessoal do que na graduação formal dos postos das Forças Armadas e por isso nestas unidades os seus elementos fazem poucas perguntas. Confiam.
Em Tete, em 1971, deixei de ter uma resposta que satisfizesse a minha consciência para a transmitir aos que comandava, mesmo que eles não me perguntassem porque estávamos ali. Se o negro capturado que me conduzira à sua antiga base, ao primitivo acampamento que os seus construíram no avanço para sul, me perguntasse a razão da minha presença ali também não lha saberia explicar, a não ser invocando o direito resultante da força. O capturado não necessitava de procurar justificações, nem invocar o direito natural da pertença ao espaço onde nasceu, onde se encontram os seus. Eu viera de longe. Ele era dali.
O meu 25 de Abril pode ter começado quando, na tarde de um dia de maio ou de junho de 1971, os helicópteros me vieram recolher e decidi deixar em terra, na sua terra, o capturado, enquanto levantava voo para o meu acampamento de tendas de lona, modelo sul-africano, para enviar a mensagem com o resultado da operação: «Base abandonada.»
