Quando, há dez anos, o Primavera Sound chegou a Portugal, importado de Barcelona, apresentava-se com uma identidade bem definida. Um festival com um cartaz diferente, menos obediente ao circuito mainstream como denominador comum para chegar a muita gente, espaço certo para descobertas e reencontros de um universo mais indie – pop, rock, passando pelo hip-hop e as eletrónicas. Como grande trunfo, o Primavera Sound no Porto tinha o Parque da Cidade, cheio de relvados e recantos, que parecia desenhado, desde sempre, para receber um festival assim. Em 2012, a lotação máxima de cada dia aproximava-se das 20 mil entradas, e essa limitação era apresentada como uma mais-valia para a boa fruição de um festival que, nas palavras de João Paulo Feliciano, então responsável pela conceção do espaço “minimalista”, se focava “na experiência de as pessoas estarem a ver e ouvir música.”
Dez anos depois, com uma paragem forçada em 2020 e 2021, é com visível excitação que organizadores, público e artistas voltam ao Parque. As premissas mantêm-se, mas só o facto de o Festival ter recebido, em 2022, mais de 30 mil pessoas por dia (ao todo, nos três dias houve cerca de cem mil entradas), sem que o desenho do espaço se tenha alterado muito, faz mudar a experiência de todos. A qualidade de um cartaz que gosta de arriscar em nomes menos óbvios nos vários palcos continua a ser clara, mas o NOS Primavera Sound parecia também, mais do que nunca antes, um festival de famílias e de gente que ali vai pela “experiência” e não tanto pelo interesse nos concertos. Nada contra. Mas em vários momentos a aglomeração de tanta gente foi motivo de algumas queixas (por exemplo na saída por um portão estranhamente exíguo e no sistema de transportes pós-festival).
E quanto à música? Há belos momentos para recordar, alguns com potencial de se tornarem especialmente memoráveis ao longo dos anos para muita gente. Já se sabe que nisto dos festivais com muitos palcos, cada festivaleiro tem, no fim, uma história diferente para contar. E a história faz-se tanto do que se viu como do que não se conseguiu ver… Essa frustração, por vezes, surge logo no momento em que se estuda a programação. Um exemplo, entre muitos: este ano, muitos dos que estavam a ver o concerto de Nick Cave, na quinta-feira, 9, gostariam certamente de ver também os londrinos Black Midi, que atuavam à mesma hora. Incluo-me nesse grupo. Tinha mesmo decidido abandonar o palco principal antes do fim do concerto, mas virar as costas a Mr. Cave e Warren Ellis tornou-se uma missão impossível. Depois de uma corrida consegui ver/ouvir 40 segundos de Black Midi. E foram excelentes 40 segundos, diga-se, com direito a uma explosão final.
Nick Cave. Em nove edições do Primavera Sound no Porto esteve presente em três. Nas redes sociais, muitos não resistiram à piada: Nick Cave tornou-se na Ivete Sangalo do Primavera (a brasileira está presente em todas as edições do Rock in Rio em Lisboa). Mas esse estatuto, neste festival, pertence aos Shellac (já lá vamos). Nick Cave tornou-se, isso sim, no sacerdote, pregador, da sua própria religião. Foi angariando novos crentes nos últimos anos e, como tantas vezes acontece no mundo da música popular, alguns fiéis mais antigos, vindos das profundezas do século passado, não gostaram lá muito de ver o seu (anti-)herói preferido rodeado de tanta gente… Hoje, aos 64 anos, Nick Cave é amor e empatia. Exorciza as trevas, a tristeza e a transgressão em cerimónias que transbordam de energia empática (o abraço sorridente ao cúmplice Warren Ellis foi um bom exemplo dessa celebração). Dir-se-ia que Nick Cave precisa de tocar, literalmente, no seu público para sobreviver (as mãos que se erguem na sua direção são exatamente o contrário do que era a kryptonite para o Super-Homem). Já em 2018, debaixo de chuva, tinha sido assim. Quem o vê agora pela primeira vez em muitos anos fica rendido à sua prédica; quem o tem acompanhado tenta perceber quanto do que vê é genuíno ou representação, depois das repetições da cerimónia em tantas noites. Acreditamos que Nick Cave está ali, totalmente, representando-se e mostrando que é, com os seus Bad Seeds, um dos grandes músicos da atualidade a encher os palcos com uma idiossincrasia e uma mundividência que tem feito o seu caminho, muitas vezes sinuoso, nas últimas quatro décadas. Ouvir From Her to Eternity, de 1984, Tupelo, The Ship Song ou The Mercy Seat ao vivo é sempre uma emoção. As novas canções, dos álbuns Skeleton Tree, Ghosteen ou Carnage mostram um artista que se recusa a desistir, reinventando-se sem perder um pingo de identidade e autenticidade. Resumindo: impossível virar-lhe costas. Nick Cave vai regressar a Portugal já em setembro, no novíssimo festival Meo Kalorama, em Lisboa.
No palco principal seguiu-se o psicadelismo sempre eficaz de Tame Impala (ou a visão do futuro com sabor a passado que Kevin Parker teve um dia na sua remota cidade australiana, Perth). Impossível não reparar no poderoso e hipnotizante círculo de luzes e cores que encimava o palco, como saído de um filme de ficção científica. Ainda assim, sentimos que a ordem de australianos em palco estava trocada: Tame Impala, com as suas reverberações etéreas, funcionaria na perfeição no crepúsculo do Parque da Cidade, com o dia a fazer-se noite, e Nick Cave seria sempre um triunfante final do primeiro dia do festival. Uma coisa é certa: a música dos Tame Impala parece rimar na perfeição com a ideia de “festival de verão.”
No dia seguinte, às 20h10, os norte-americanos Shellac sobem ao mais belo palco do Festival, rodeado de árvores por quase todos os lados, para mostrar que, mesmo depois duma pandemia, há coisas que não mudam. Estiveram sempre presentes na edição do Porto do Primavera Sound. Mas… the times they are changing? O palco que um dia teve o poético e velvetiano nome All Tomorrow’s Parties chama-se agora Binance – tive que ir pesquisar: é uma “corretora de criptomoedas, sendo a plataforma com maior volume mundial diário de negociação de criptomoedas desde 2017.” Não deixou de ser irónico ver Steve Albini, vocalista dos Shellac (entre muitas outras coisas), fazer uma longa dedicatória duma canção aos “scrapers de Chicago”, uma espécie de respigadores urbanos que são autossuficientes a partir dos desperdícios que outros vão deixando pela cidade… Salva de palmas. Sobre a sua cabeça, em cima do palco, o logotipo da Binance. Bem-vindos às contradições do capitalismo avançado do século XXI, ao som de um rock honesto, direto e sempre poderoso.
Para muitos, esse era o dia em que um nervosinho ia crescendo, com a promessa da estreia dos Pavement, tantos anos depois, num palco português. Antes, ainda houve tempo, no palco Cupra, para perceber que o miúdo ruivo inglês King Krule está a envelhecer muito bem (só tem 27 anos, mas já anda nisto desde antes dos 20…) com as suas canções disparadas num estilo (e num sotaque) muito seu, tão devedor do rock, como do pós-punk ou do hip-hop. Nem precisava de exibir o seu cãozinho (“Digam olá ao Marino!”) em fotografias no fundo do palco para conquistar o público.
No palco maior (o NOS), antes de Pavement, Beck teve tempo e espaço para brilhar. Imaginamo-lo um eterno miúdo, mas quando o víamos, nos ecrãs, em grande plano, não podíamos deixar de reparar nas rugas na testa. “Parece uma mistura do Elton John e do Slimmy…”, disse alguém ao nosso lado. Beck tem excelentes canções para fazer a festa num festival de verão (as melhores e mais conhecidas deixou-as para o fim: Looser e Where It’s At) mas pareceu-nos que algumas não estão a envelhecer especialmente bem. Em vez de ir conquistando o público, Beck, com uma pequena banda lá atrás, em segundíssimo plano, agiu, correndo e rodopiando, como se todos já estivessem aos seus pés desde início – mas não estavam, e muitas das suas solicitações para a colaboração dos festivaleiros acabaram por ser recebidas com alguma frieza. Nota positiva, ainda assim, mas ficámos a pensar que lugar na História do pop rock estará reservado para o músico californiano, agora com 52 anos.
A presença dos norte-americanos Pavement como cabeças de cartaz numa sexta à noite é a prova de que o NOS Primavera Sound continua a ser um festival diferente dos outros. Não arriscamos muito se dissermos que uma boa maioria das trinta e tal mil pessoas que circulavam nesse dia pelo recinto do festival não sabiam lá muito bem quem eram os Pavement. Mas havia uma minoria, não tão minoritária assim, que ali estava só por causa desse concerto (e isso viu-se nas caras e nas vozes a acompanharem muitas letras do princípio ao fim). E quem são os Pavement? Um nome que se foi impondo discretamente no indie rock americano dos anos 90, a partir da costa oeste, assente em boas canções, guitarras sobrepostas com distorção qb e a voz e letras de Stephen Malkmus. O suficiente para conquistar, por todo o mundo, fãs indefectíveis, que só fizeram aumentar o culto quando a banda decidiu terminar em 1999, sem deixar perceber aquilo em que se poderia tornar no século XXI. Depois de um breve regresso em 2010, 2022 marca a segunda reunião dos Pavement, que optaram por reaparecer trazendo simplesmente as suas “velhas” canções para o palco, sem acrescentos ou novidades. Para alguns, reconhecendo cada canção, foi um momento histórico, intenso e inesquecível; para outros, um bom concerto de uma velha banda rock que (ainda) sabe muito bem como se faz; para muitos outros, um concerto aborrecido e arrastado em que nenhuma canção, vinda do final do século passado, parecia primar pela originalidade.
A mudança rápida do palco maior para o Binance, onde, a partir das duas da manhã, atuava Chico da Tina, não podia ser mais radical. O trapstar do Minho é uma figura pouco consensual mas decididamente contemporânea. Em palco há muita gente, sempre em movimento, mas não se vislumbram músicos, além de um DJ que vai disparando, quase sempre a pedido de Chico, o suporte musical. Quando lá chegamos, Chico da Tina discursa sobre a qualidade do vinho que levou para ali e que alguns dos seus cúmplices/amigos distribuem, copo a copo, na fila da frente, com garrafões. Há ambiente de festa, muita conversa da personagem (com uma referência – irónica? – às criptomoedas e muitos agradecimentos aos fãs). Mais uma vez, Chico da Tina exibe, ao pescoço, o seu pequeno quadro de Pedro Alexandrino (1729-1810) e vai pegando na concertina que lhe dá nome (mas que usa cada vez menos). A atitude e o talento (“Como eu é out of stock, tenho talento, nunca foi sorte…”, canta) com as palavras estão lá mas falta-lhe, talvez, nesta fase, um salto em frente, com mais música em palco (e que se aproxime mais do que se ouve nos discos), sem perder aquela dimensão de festa adolescente e colorida sempre à beira de descambar… Quem é o verdadeiro Chico da Tina, onde começa e acaba a personagem, continua a ser um mistério. No dia seguinte, outra figura icónica (e irónica) da região do norte do País, David Bruno, brilharia no palco Super Bock. De algum modo, estavam os dois a jogar em casa e o Primavera era o sítio certo para contarem as suas histórias.
Uma banda que parece talhada para criar bom ambiente em festivais de verão dá pelo nome de Khruangbin. Difícil de compreender que tenha sido colocada no único palco com alcatrão à frente (o Cupra), quando a música descontraída, cool, ora dolente, ora festiva, com referências a sonoridades de latitudes muito diversas, deste trio está mesmo a pedir relva, sol e até as flores na cabeça tão típicas deste festival.
Foi nesse mesmo palco que, pouco depois, aconteceu um dos momentos altos da edição de 2022 do NOS Primavera Sound: a estreia em palcos portugueses da rapper britânica Little Simz. Sometimes I Might Be Introvert estava praticamente em todas as listas de melhores álbuns de 2021 (em muitos casos em primeiro lugar). A transposição da energia dos discos para os palcos é perfeita, com uma banda musculada de excelentes músicos a servirem as palavras de Simbi (diminutivo da música e, tambem, acrónimo do título do tal álbum de 2021). Aos 28 anos, Little Simz mostra ter total controlo sobre os timings e ritmos do seu espetáculo, sabe comunicar com o público e conquistá-lo e parece ter nascido para disparar palavras certeiras, ora num “rapanço” rápido e intenso, ora em canções mais calmas. Saímos dali com vontade de a reencontrarmos e com o feeling de que este foi o primeiro de muitos concertos em Portugal.
Mal sabíamos que o reencontro aconteceria ainda nessa mesma noite… Little Simz foi uma convidada surpresa da grande festa montada por Damon Albarn, em nome dos Gorillaz, para fechar a programação do palco maior do festival. Também Beck irrompeu pelo palco para interpretar The Valley of the Pagans. Dificilmente o NOS Primavera Sound poderia acabar melhor. Houve uma altura em que os concertos de Gorillaz foram anunciados (e concretizados) como um prodígio tecnológico, com hologramas dos bonecos que compõem a banda (2D, Noodle, Russel Hobbs e Murdoc Niccals) em palco e os músicos bem escondidos. Em boa hora, o criador dos Gorillaz (e já lá vão quase 25 anos…) optou por fazer destes concertos uma espécie de Damon Albarn e amigos, com uma super-banda em palco. As figurinhas coloridas de duas dimensões também estão, muitas vezes, presentes nos ecrãs e no fundo do palco, mas o que fica é a memória de uma grande máquina, bem afinada, de música (quase sempre) muito dançável, com êxitos que já são clássicos, como Feel Good Inc (interpretado por Kevin Mercer, dos De La Soul, que conseguiu arrancar uns poderosos “ah, ah ah, ah!” do público), Clint Eastwood ou Kids with Guns. Damon Albarn que, em 2013, já tinha pisado aquele palco com os Blur, parecia feliz. E nada como um (bom) músico feliz para contagiar a plateia. Nem o azar final (corte total de som nos últimos acordes, antes das despedidas) manchou minimamente uma atuação triunfal para um mar de gente.
Para a história do que não vi fica, sobretudo, um nome: Dry Cleaning. Assim, só posso imaginar que o concerto foi ainda melhor do que terá sido, e espero encontrá-los, em breve, noutros palcos. Como os mais experientes saberão, também é de desencontros que se faz a história vertiginosa dos festivais de verão.