“A minha arte é estar aqui convosco e ser-vos alimento e companhia na viagem para estar aqui de vez. Sou português, pequeno-burguês de origem, filho de professores primários, artista de variedades, compositor popular, aprendiz de feiticeiro, faltam-me dentes. Sou o Zé Mário Branco, 37 anos, do Porto, muito mais vivo que morto, contai com isto de mim para cantar e para o resto.” Silêncio. Uma estrondosa salva de palmas. Essas eram as últimas palavras do irrepetível FMI. Como chamar-lhe? Não é uma canção, é uma performance, uma explosão em palco, lendo um texto que escreveu “de um só jorro numa noite de fevereiro de 1979”. A versão que ficou registada em disco (um maxi single hoje raro) foi gravada no Teatro Aberto, em Lisboa, a 1 de maio de 1981. Por vezes, muitas vezes, o público pedia-lhe nos concertos que interpretasse o FMI, esse discurso que foi ganhando o estatuto de objeto de culto com o passar dos anos. Mas era impossível. Uma coisa assim não se repete, não se pede. Logo a ele que punha a sinceridade e a autenticidade como princípio de tudo na vida.
Esses não foram anos fáceis para José Mário Branco. Em 1979, perdeu os pais (“Mãe, não quero pensar mais… Mãe, eu quero morrer, mãe. Eu quero desnascer, ir-me embora, sem ter de me ir embora”, ouve-se em FMI), as grandes editoras não viam interesse comercial no disco que estava a preparar (Ser Solidário, hoje considerado um clássico da música popular portuguesa) e, no fundo, sentia, de uma vez por todas, a ressaca do PREC, da revolução de 1974. Revolução? Qual revolução? “O que eu vi não foi revolução nenhuma, aquilo foi uma descompressão. É verdade que o sistema político foi alterado, mas a relação de forças, em termos sociais, passado pouco tempo estava restabelecida: o Champalimaud, a Igreja… No fundo, nós fomos um joguete, no fim da Guerra Fria, nas mãos de dois grandes impérios”, dizia-nos em 1996.
Em termos de embates duros com a realidade, já tinha uma boa experiência, estava calejado. Noutra entrevista à VISÃO, esta em 2004 (ano do seu último álbum de originais, Resistir É Vencer), falava-nos de uma velha “derrota”: “Acabar por perceber – eu que tinha uma formação cristã básica quando era adolescente, acreditava mesmo naquilo, e continuo a ter nos meus valores muitos dados da história de Jesus, que é uma história belíssima, cheia de ensinamentos – que a Igreja Católica era exatamente o contrário do que apregoava. Foi um choque traumático. Talvez mais, até, do que o fim do PREC [Processo Revolucionário em Curso].” Mas, nos dois casos, recusava-se a falar em “desilusão”: “Desilusão é quando percebemos que tínhamos ilusões. E aquilo não eram ilusões, era a vontade de fazer qualquer coisa e, depois, encontrar pela frente obstáculos que não se conseguem ultrapassar.”
Utopias
A sua passagem das convicções católicas para a militância comunista clandestina, ali pelos primeiros anos da década de 60, fez-se depressa, sem tropeços, como se fosse a transição mais natural do mundo. Afinal, para o jovem Zé Mário, os alicerces eram os mesmos: um projeto utópico, a crença num mundo melhor, o combate às injustiças e uma profunda convicção na solidariedade. Mas a relação com o Partido Comunista Português também não durou muito…
A passagem das convicções católicas para a militância comunista clandestina, ali pelos primeiros anos da década de 60, fez-se depressa, sem tropeços, como se fosse a transição mais natural do mundo
Esse combate de forças estava bem marcado na história familiar de José Mário Branco, de forma trágica, num episódio daqueles que parecem saídos de um filme. O seu avô paterno, Umbelino Branco, era um aguerrido republicano ateu; a avó era uma beata. Daí nasceu uma discussão sem fim no momento de decidirem a educação dos três filhos. Ela queria que fossem estudar para um seminário, ele opunha-se ferozmente. A insistência foi tanta que o homem cedeu e levou o filho mais velho, António, de 9 anos, para o seminário franciscano de Tui, na Galiza. Cedeu, sim, mas não resistiu. A viagem de regresso não chegaria ao fim: Umbelino deu um tiro na cabeça. António viria a ser o pai de José Mário Branco. “Sei que jurou a si próprio que faria o curso do seminário até ao último dia, mas na véspera das ordens viria embora. Assim foi: ficou lá até aos 23 anos. Ao fim de 14, na véspera da visita do bispo que iria ordená-los padres, fez uma trouxa, como nos filmes, com o cajado às costas, e veio embora”, contou o músico a Paulo Pena e a Jorge Costa, nas páginas do DNA, suplemento do Diário de Notícias, em 1999 (uma entrevista citada na biografia José Mário Branco, O Canto da Inquietação, de Octávio Fonseca Silva, publicada no ano 2000, pela editora Discantus, com a marca do Mundo da Canção).
Essa experiência seminarista do pai seria, afinal, marcante para o futuro de José Mário no mundo da música. A formação musical no seminário deixou sementes, e o casal de professores primários, em Leça da Palmeira, fez questão de que os três filhos (José Mário Branco tinha dois irmãos: António Jorge, nome histórico do jornalismo radiofónico, e Maria Virgínia, ambos já desaparecidos) aprendessem a tocar piano desde muito cedo, apesar das dificuldades económicas.
Mudam-se os tempos…
Um momento de viragem, daqueles que criam um “antes” e um “depois”, na vida de José Mário Branco aconteceu no dia 10 de junho de 1963. Saiu de Portugal, com a família da namorada, Isabel Alves da Costa, numa Renault 4L, para um passeio na Galiza. Nem os pais nem Isabel sabiam que a intenção dele era não regressar nesse dia. De Vigo voou para Madrid, e daí seguiu, de comboio, até Paris. O exílio duraria até 1974. Uma das razões mais fortes para a fuga prendeu-se com a proximidade do serviço militar e a mais do que certa chamada para combater na Guerra Colonial. E, afinal, em 1962, com 20 anos, já tinha passado seis meses na prisão pelo envolvimento nas células comunistas estudantis. “Nessa altura, os elementos do PCP achavam que se devia ir para a guerra com o objetivo de lá se desenvolver trabalho político. Nunca aceitei tal posição. A minha recusa em entrar na guerra colonial foi total”, contou a António Macedo, no semanário Se7e, em 1980. Mas o corte definitivo com o Partido Comunista Português acontecerá já em Paris (quando se aproximou mais da linha maoista).
A 10 de junho de 1963 saiu de Portugal, com a família da namorada, Isabel Alves da Costa, numa Renault 4L, para um passeio na Galiza. Nem os pais nem Isabel sabiam que a intenção dele era não regressar nesse dia
Foi na capital francesa que nasceu o José Mário Branco que todos conhecemos. Com a bagagem musical que tinha, e pegando distraidamente numa guitarra que apareceu lá por casa, foi escrevendo umas canções, quase sempre em francês, muito marcadas pelo seu quotidiano em Paris, onde viveu com Isabel Alves da Costa, arranjou trabalho e nasceram os filhos (Pedro e João). Alguns encontros revelaram-se fundamentais para o seu crescimento como músico (na altura, estava também muito ligado ao teatro). Com Sérgio Godinho, Luís Cília ou Tino Flores, tocou muitas vezes no meio das convulsões e greves do Maio de 1968. Em 1969, numa sala do Boulevard Saint-Michel, conheceu José Afonso. Daí nasceu uma amizade e uma cumplicidade artística para toda a vida. Foi José Afonso que, pouco depois, trouxe para Portugal as maquetes do que viria a ser o primeiro álbum de José Mário Branco, Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades, verdadeira pedrada no charco no panorama da música popular portuguesa, gravado em quatro dias de estúdio e que foi um imediato sucesso de vendas em 1971. Antes, só tinha gravado um EP em que musicou velhas Cantigas de Amigo, impressionado com a força poética do Cancioneiro Galaico-Português. Ainda antes do 25 de Abril, editou o segundo álbum, Margem de Certa Maneira, sem adivinhar que faltava pouco para poder regressar ao seu País – o que aconteceu, entre sonhos e euforia, logo no dia 30 de abril de 1974, no mesmo avião em que viajava Álvaro Cunhal, Luís Cília, Cláudio Torres e muitos portugueses exilados.
Agora, o futuro
Para avaliar a grandeza do músico nascido no Porto, em maio de 1942, não basta olhar para a sua obra gravada e cantada em nome próprio. Recordamos dois nomes fundamentais, entre outros possíveis: José Afonso e Camané. O que eles são e representam na música portuguesa não seria o mesmo sem a marca de José Mário Branco. Cantigas do Maio, o histórico álbum de José Afonso, editado em 1971, em que se pode ouvir Grândola, Vila Morena, vive muito da sua criatividade e originalidade como produtor. Quanto a Camané, toda a sua discografia, desde Uma Noite de Fados (de 1995), assenta na cumplicidade e no trabalho permanente com José Mário Branco. “Ter trabalhado com ele foi a coisa mais importante que me aconteceu”, disse o fadista na passada terça-feira, 19, quando o País acordou com a notícia da morte de José Mário Branco, durante a madrugada, na sequência de um AVC.
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Havia ideias que, invariavelmente, repetia nas entrevistas mais longas. Esta, por exemplo (dita à VISÃO, em 2004): “Não sei fazer discos se não tiver alguma consciência do que quero dizer às pessoas. É uma limitação minha. Com que direito me meto num estúdio e deito um disco cá para fora se não sei o que hei de dizer às pessoas, ou como hei de dizer às pessoas? Mais vale estar calado, não é? É por isso que tenho poucos discos. Nunca fui capaz, e não digo isto com um sentido irónico ou depreciativo contra outros músicos, de funcionar num regime de fazer um disco todos os dois anos.” Mas o seu trabalho é vasto. Musicalmente, era perfeccionista, culto, de uma seriedade sem cedências, sabendo ser popular e direto (como na canção Qual É a Tua, ó Meu?) ou complexo e mais erudito (como no trabalho para as vozes do grupo coral Canto Nono e, até, no coletivo GAC – Vozes da Luta, entre 1974 e 1978). Com Sérgio Godinho e Fausto (a quem chamou, incluindo-se, “filhotes diretos do Zeca Afonso”) construiu, em 2009, o espetáculo (e, depois, disco e DVD) Três Cantos, verdadeiro monumento da música popular portuguesa.
As sucessivas gerações nunca perderam a obra de José Mário Branco de vista. JP Simões e Camané com os Dead Combo têm belíssimas versões do tema Inquietação. Os Linda Martini usaram samples de FMI logo no disco de estreia. Já neste ano foi editado Um Disco para José Mário Branco, com músicos dos mais diversos géneros a fazerem versões dos seus temas.
A sua obra aí está, agora, como uma arma carregada de futuro. Para sempre.