
Ruy Castro escreveu este monumento à maneira do seu ídolo: com os “dedos salivando”. Nelson Rodrigues (1912-1980), autor desassombrado e despudorado, que dissecou sexo, morte, obsessões, virgens e maridos ciumentos, vergonhas de macho, tragédias, arremedos noir, deixou um património de 17 peças de teatro, muitas crónicas e contos, adaptações para cinema e televisão – sem esquecer as fatais e fulminantes paixões do futebol. Mas a sua vida rivalizou com qualquer romance. Um de catorze filhos do clã Rodrigues, que marcou a ascensão do Brasil moderno, mudando o jornalismo, o samba e o futebol, Nelson conheceu comédia e tragédia. Assistiu ao assassinato do irmão Roberto, passou fome, sofreu de tuberculose, foi vítima de censura, viu o filho Nelsinho ser preso pela ditadura militar, foi vilipendiado pela proximidade com o regime. E viveu histórias de amor intensas. Tarado, foi um rótulo que sempre o perseguiu. Estas peripécias estão todas em O Anjo Pornográfico (Tinta da China), lançado esta sexta-feira, 25 de agosto, da autoria de Ruy Castro, premiado com vários prémios Jabuti, jornalista e autor de biografias definitivas, como Carmen(sobre Carmen Miranda, 2005), Estrela Solitária (dedicada a Garrincha, 1995) ou ainda Chega de Saudade:a história e as histórias da Bossa Nova (1990). Para contar a história de Nelson Rodrigues, Castro entrevistou mais de 120 pessoas – e escreveu o resultado com panache. Este lançamento, que chega vinte e cinco anos depois da edição original, por causa da batalha sobre os direitos autorais travada entre os descendentes, é fundamental para conhecer melhor a obra, que tem vindo a ser editada pela Tinta da China e da qual já saíram A Vida como ela é… (contos), A Menina sem Estrela (memórias), O Homem Fatal (crónicas) e O Casamento,único romance assumido de Nelson Rodrigues. Em entrevista à VISÃO, Ruy Castro afirma: “Ao mergulhar na obra de Nelson Rodrigues, acredito ter incorporado um importante traço que ele tinha: tornei-me mais brasileiro.”

Ruy Castro
DR
Conta que almoçou duas vezes com Nelson Rodrigues, e entrevistou-o uma vez. Pode descrever como foram esses encontros?
Estive com Nelson várias vezes na casa de um amigo comum, nos anos 1960 e 70. Participei de diversos almoços que seus “irmãos íntimos”, como ele os chamava, lhe ofereceram e almocei a sós longamente com ele uma vez, em função de uma entrevista para uma revista de São Paulo – por acaso, minha primeira colaboração para a imprensa de lá e, desde então, os paulistas nunca mais se livraram de mim [risos]. Isso não me tornou um dos “irmãos íntimos” de Nelson; eu era muito jovem e preferia ficar observando-o. Hoje, acho bom que tenha sido assim. Pude ver Nelson em ação: como ele andava, gesticulava, falava, ria etc, e conservar toda a objetividade a seu respeito. Em minha opinião, um biógrafo não deve ter intimidade demais com o biografado.
Em O Anjo Pornográfico, não branqueia as falhas do biografado – mas pressente-se que criou uma ligação forte em ele. Foi efeito secundário da empreitada de escrever uma biografia ambiciosa ou a sua ligação com o personagem já existia?
A intimidade deve dar-se exatamente quando se mergulha na vida do biografado, através de depoimentos alheios e extensa leitura de textos e documentos – não antes. É verdade que eu já tinha toda uma vida ligada a Nelson como leitor. Aprendi a ler sozinho, no colo de minha mãe, lendo sua coluna diária A vida como ela é…, no jornal Última Hora, do Rio, entre os quatro e os cinco anos. Logo depois, redescobri-o como colunista de futebol na revista Manchete Esportiva. E nunca mais parei de o ler. Em 1960, tive a felicidade de ler seu folhetim Asfalto selvagem à medida que os capítulos saíam diariamente na Última Hora – é uma leitura impressionante para um garoto de 12 anos. Quando me decidi a biografá-lo, em 1990, já tinha lido todos os seus livros e visto quase todas as suas peças.
Ao levantar a vida de Nelson Rodrigues, sentiu que tinha pontos de identificação com ele?
Muita gente sempre me disse que, às vezes, eu falo como os personagens de Nelson. Na verdade, Nelson apenas reproduz a fala carioca dos anos 50: as gírias, as inflexões, as imagens. E, como foi assim que aprendi a falar, no Rio dos anos 50, era natural que houvesse uma semelhança. Mas, ao mergulhar na vida de Nelson, acredito ter incorporado um importante traço que ele tinha: tornei-me mais brasileiro, menos “internacionalista”, como os brasileiros tendem a ser.
Biografou Carmen Miranda, Garrincha, a Bossa Nova. Porque era importante – para si e para os leitores brasileiros, e não só – contar a verdadeira história de Nelson Rodrigues?
Ao decidir biografar alguém ou contar a história de uma época, levo duas coisas em consideração: a admiração pela obra desse alguém ou daquela época, e uma grande curiosidade sobre a vida daquelas pessoas. Essa admiração e essa curiosidade não nascem de repente, mas levam muito tempo sendo construídas – décadas antes de essa biografia ser pensada. Outro fator que pesa na minha decisão é acreditar que a vida dessa pessoa ou época ainda não foi bem contada. No caso de Nelson, Garrincha, a Bossa Nova ou mesmo o samba-canção de A noite do meu bem [meu livro de 2015], era fácil: não tínhamos praticamente nada a respeito até então. Mas, no caso de Carmen Miranda, já havia cinco ou seis livros sobre ela, e que eu achava completamente insatisfatórios. Sabia que havia muito mais a descobrir, e muitos equívocos também a corrigir…

DR
“Descobrir uma informação que mais ninguém sabe tem um prazer quase sexual”, disse numa entrevista. É preciso ser uma espécie de voyeur para escrever uma boa biografia?
E por que não? Biografar alguém é espiar a vida desse alguém pelo buraco da fechadura… Mas o importante é que, com isso, se possa estabelecer a verdade. A fofoca pela fofoca não me interessa a mínima. E é verdade que passo a sonhar com o biografado. Todos os biógrafos sonham.
O que é revelado em O Anjo Pornográfico que se desconhecia de todo sobre Nelson?
Oitenta por cento do que está no livro é informação original. Os outros vinte foi o próprio Nelson que contou, em suas crónicas e memórias. Antes da publicação de O Anjo Pornográfico, em fins de 1992, a esquerda brasileira via Nelson como um génio do teatro, mas como um reacionário, favorável ao regime militar. Já a direita o via apenas como um imoral, tarado, violador de túmulos. Hoje, como ficou claro depois do meu livro, sabe-se que a verdade era muito mais profunda do que isso. Nelson não foi o único intelectual brasileiro a apoiar os militares em 1964, mas poucos como ele ajudaram a soltar presos políticos, facilitaram a fuga de pessoas perseguidas e até contribuíram em dinheiro com asilados – fez isto por razões humanitárias. E, quanto ao tarado, Nelson era, ao contrário, um moralista. Sua ambição era a de se tornar um santo.
Na altura, entrevistou mais de uma centena de pessoas. Como não perdeu o fio à meada? Gerou inimigos e críticas com o resultado final?
À medida que vou conversando com os informantes e colhendo dados em toda espécie de fontes, jogo direto as informações em arquivos correspondentes no computador. Com isso, nunca perco o fio da meada. Quando dou por terminado o trabalho de apuração, o livro já está, de certa forma, montado. Daí é só escrevê-lo [risos]. Críticas a O Anjo Pornográfico? Zero. Nenhum livro meu foi tão bem recebido quanto este – exceto pelas irmãs de Nelson, que me acusaram de ficar ao lado da viúva e dos filhos dele, que elas detestavam. Mas não fiquei do lado de ninguém, fiquei do lado da verdade. As irmãs de Nelson, hoje falecidas, eram assim: odiavam todas as mulheres que se casavam com seus irmãos. O que é uma situação absolutamente rodriguiana [risos].

Nelson e Lúcia, a mulher por quem se apaixonou em 1961, então casada com outro, e causa de uma tentativa de suicídio de Elza
Manchete
As críticas a O Anjo Pornográfico sintetizam-se bem assim: “Lê-se como um romance.” Essa avaliação agrada-lhe?
Sim, desde que se faça a ressalva de que, nele, nem uma única vírgula é fictícia. Tudo é baseado em informação, e informação conseguida a duras penas. A vida de Nelson é que se lia como um romance. Com aquela riqueza de peripécias, dramas, tragédias e também muito humor, não poderia ser de outro jeito. Além disso, esforço-me para que meus textos sejam lidos com facilidade, mesmo que isto os torne muito mais difíceis de escrever.
Ao escrever certos diálogos (como, por exemplo, quando Nelson, desesperado por os pais de Lucia não o aceitarem, diz à futura mulher que a alma da mãe desta “é mais suja do que pau de galinheiro”), assumiu liberdades criativas para enfatizar o traço?
Absolutamente. Todos os diálogos me foram narrados por testemunhas ou pessoas a quem Nelson os narrou, e não se esqueça de que conversei com mais de cem pessoas e várias vezes cada uma. O próprio Nelson contou algumas dessas histórias em suas memórias. Sou absolutamente contra inventar, presumir ou supor qualquer coisa. Se o biógrafo quiser inventar, por que não vai escrever ficção de uma vez?
Só ao chegar na página 172, o leitor sente que O Anjo Pornográfico se centra, finalmente, no próprio Nelson. A tentação de esmiuçar a dinastia Rodrigues e as suas histórias excecionais foi difícil de controlar?
Ninguém biografa apenas uma pessoa. Biografa também seus antecedentes, seus parentes, seus amigos, seus inimigos, sua cidade e sua época. No caso de Nelson, mais ainda, porque seus pais e seus irmãos foram importantíssimos em sua vida. Por exemplo, o assassinato de seu irmão Roberto, em 1919, desencadeou tudo que aconteceria com os demais Rodrigues. Quando o livro saiu, muitos me perguntaram se não iria escrever também a história de Roberto e a de Mario Filho, seus principais irmãos. Respondi que não, mas que gostaria muito de ler esses livros, escritos por outros. Estou esperando até hoje… [risos].
Do “diabolismo” do miúdo Nelson com sete anos, ao adolescente capaz de gritar declarações de amor correndo ao lado de um carro em andamento, ao homem de várias paixões e ao rotulado de tarado: Nelson é, fundamentalmente, um proverbial macho latino e conservador, figura de bolero?
Desculpe, mas essa figura do macho latino é apenas um clichê. Os seres humanos não se reduzem a um estereótipo. Nelson era um homem permanentemente apaixonado. Foi casado três vezes e, durante sua primeira mulher, teve alguns casos por fora. Em todos eles, era uma história de amor. Sei disso porque conversei com várias dessas mulheres e com as amigas delas e li as cartas entre eles.
Quando descreve as primeiras incursões de Nelson nos jornais (como escriba de ópera), sublinha que ele faz questão de afirmar-se como “um primitivo” para que as suas primeiras peças ganhassem uma aura maior. Mais à frente, em 1958, declara que Nelson “se sentia um Ibsen”. Rodrigues queria criar o seu próprio mito?
Sim, ele tinha total consciência de sua importância e de como o meio da época não era capaz de reconhecê-lo. Talvez por isto, a partir de 1951, quando começou a fazer A vida como ela é… na Última Hora, adotou uma atitude anticultural e passou a se dizer um primitivo, um ignorante. Até pessoas inteligentes, como Paulo Francis, acreditaram nisso.
Assassinato do irmão, fome, miséria, tuberculose, cegueira, tentativas de suicídio da primeira mulher, protestos em nome dos valores da família brasileira, a tragédia da chuva, censura, inimigos ‘shakesperianos’, filho preso… A vida de Nelson Rodrigues compete com qualquer ficção. Vê-o como um perdedor, um vencedor, um anti-herói?…
Uma pessoa que tenha passado por tudo isso – e você sabe que não é tudo – e ainda constrói uma obra das dimensões que ele criou só pode ser um vencedor.
O seu único romance, O Casamento, foi censurado. Asfalto Selvagem, romance disfarçado de folhetim, impactou. Na biografia cita o dramatugo Henrique Pongetti: “A paixão com que o combatem ou endeusam vai da injúria à genuflexão, sem etapas intermédias.” E o Ruy conclui: “Enxotado da literatura, Nelson tinha de contentar-se com “o povo”.” Acha que Nelson Rodrigues poderia ter insistido e ter sido um grande da literatura, espécie de Machado de Assis dedicado ao adultério, ciúme e fatalidade?
Talvez não, porque não se esqueça de que, enquanto escrevia suas peças e seus romances, lutava contra a censura. Nelson era também jornalista – muito mais do que Machado – e muito dedicado ao futebol. O jornalista vive do dia-a-dia, não tem tempo para cultivar a posteridade. Mas esta tem sido generosa com Nelson. Ele hoje é importantíssimo na cultura brasileira. Tudo que escreveu nos ajuda a pensar o país. Todos o citam – até mesmo pessoas ignorantes, como Dilma Rousseff, que nunca o leram. Frases e expressões como o “complexo de vira-lata” e “em Brasília, todos são inocentes e todos são cúmplices”, circulam de boca em boca. E, na minha modesta opinião, ele é tão grande na literatura quanto Machado de Assis.
Zona cinzenta, a da relação de Nelson com a ditadura militar que vigorou no Brasil, e a sua tolerância e “ingenuidade” (crendo, por exemplo, em 1970, que não havia torturas por parte do regime). Essa faceta surpreendeu-o?
Não, porque todos sabíamos disso na época. A adesão de Nelson aos militares era mais que conhecida. O que não se sabia é como era a relação de amor entre ele e seu filho na prisão e de como, quando este lhe disse que havia sido torturado, Nelson finalmente passou a acreditar na tortura e começou uma campanha pela amnistia. A esquerda brasileira, hoje, reconciliou-se com Nelson. Aliás, mesmo em vida e no pior período da ditadura, inteletuais sabidamente de esquerda, como Helio Pellegrino, Moacir Werneck de Castro e Antonio Callado, continuaram seus amigos. Podiam ter atritos, mas nada que turvasse a amizade, que, para Nelson, significava mais do que tudo.
A prisão de Nelsinho, e a pressão política sobre Nelson Rodrigues, é um ponto de viragem para o dito anjo pornográfico?
Não, não creio. A luta política, ele adorava-a. E, apesar do problema de seu filho, ele nunca deixou de produzir suas três [três!] colunas diárias: duas para O Globo e uma para o Jornal dos Sports. A vida seguia.
A biografia faz um panorama geral da história do Brasil: a ascensão do futebol, a consagração do samba, a criação da Globo, a emergência de certas figuras culturais, os meandros da ditadura militar. Jornalismo, samba, futebol, teatro, novela, política…Pode dizer-se que, sem Nelson Rodrigues e a sua família, o Brasil não seria o mesmo país?
Nunca tinha pensado nisso, mas é possível. A presença de Nelson em todas essas instâncias era grande demais. Sem ele, as coisas, sem dúvida, teriam sido diferentes.
Perante a paisagem literária contemporânea e a geração de novos leitores tão dependentes de redes sociais, as tragédias incestuosas de Engraçadinha, os maridos ciumentos, as paixões funestas, a caricatura da elite de Country Club, o gore e o excesso de Nelson Rodrigues, correm riscos de ser esquecidos, confundidos com coisa datada ou meio kitsch?
Não. Asfalto selvagem e as histórias de A vida como ela é… já foram filmadas pela TV Globo, atingiram milhões de pessoas e continuaram intactas; é verdade que foram excecionalmente bem feitas. Se Nelson um dia se tornar kitsch, Eça de Queiroz, Machado de Assis e F. Scott Fitzgerald também se tornarão.
O atual momento do Brasil seria fonte inesgotável para manchetes do pai, Mário Rodrigues. Que ressonância tem a vida e provocações de Nelson Rodrigues na sociedade brasileira atual?
O jornal de Mario Rodrigues era típico de sua época: escandaloso, achacador, desonesto. A imprensa brasileira de hoje não é assim, longe disso. E, como eu disse, a obra de Nelson tem ajudado a explicar muito do país em que vivemos. Hoje, basta aos jornais e TVs registrarem friamente o que os políticos dizem e fazem. Há dias, por exemplo, o ex-presidente Lula declarou que “o Brasil não merece ser a merda que é”. Esquecendo a grosseria da formulação, principalmente vinda da boca de um ex-presidente, não é interessante ouvir isto de alguém cujo partido governou o país durante 16 anos e até há dois anos atrás? Pode haver maior autocrítica? [risos]
E como é que vê os acontecimentos atuais? Escreveria biografias de figuras como Lula, Dilma, Temer?…
Nunca. Como já disse, para biografar alguém eu precisaria admirar esta pessoa. E não há palavras que descrevam meu desprezo pelos que você citou e outros que deixou de fora…