Vista do ar, Black Rock City é um semicírculo perfeito, com linhas que parecem ter sido traçadas por um compasso e divididas depois em porções que vão minguando quando se aproximam do centro. Ao longe é difícil compreender o que preenche cada um desses retângulos, ou quarteirões, em que se divide. À medida que a imagem se aproxima, porém, o cenário e as personagens que o habitam, quase sempre envolvidas por fortes nuvens de pó das tempestades do deserto, começam a parecer-se mais com atores e figurantes do filme Mad Max, a Estrada da Fúria. Mas a única fúria que aqui existe é mesmo a criativa. Essa, sim, parece não ter limites. Só para se ter uma ideia do que falamos, e para quem conhece ou ouviu falar, imagine o Boom, o festival bienal de Idanha-a-Nova, ou o Tomorrowland, nascido na Bélgica, ainda que este esteja mais centrado na música eletrónica. Já imaginou? Então agora esqueça. O Burning Man é diferente e muito, mas muito maior. E mais cool.
“Há muitos anos que ouvia falar mas só no ano passado tive oportunidade de lá ir”, conta Xana Nunes à VISÃO. A ex-manequim e ex-apresentadora de televisão, hoje ligada à comunicação no segmento de marcas de luxo, adorou a experiência de viver “um festival que não é de música, ainda que tenha inúmeros espaços com todo o género de música, mas antes um festival de arte, contracultura, enfim, um espaço onde o denominador comum é a liberdade de expressão”.
“Onde o asfalto acaba e o Oeste começa”. A placa situada à saída da pequena localidade de Gerlach, no estado do Nevada, não deixa margem para dúvidas. A pequena vila de 206 habitantes (censos de 2010) fica, ela própria, para lá do fim do mundo, a quase 100 quilómetros de Nixon, a cidade mais próxima. Mas durante uma semana, entre finais de agosto e inícios de setembro, é por ali que passam cerca de 70 mil pessoas em direção ao deserto e a uma cidade que não existe mas que será erguida por eles para o evento e destruída no final, sem deixar rasto.
Black Rock City é a cidade efémera construída pelos burners, a designação dos participantes no festival, no tal semicírculo geometricamente cuidado. No local não há qualquer infraestrutura, nem asfalto, nem espaços verdes, nem água, nada, apenas terra a perder de vista. Mas depressa o espaço se enche de tendas, autocarros e autocaravanas, o meio preferido por uma grande parte dos participantes, e ganha vida. Lá chegados distribuem-se pelas centenas de campos temáticos. E também aqui o que não falta é escolha. Este ano, por exemplo, há o Huggzilla, especializado em terapia… por abraços, a 7 Deadly Gins, onde a especialidade é claro, o gin, a Mirage Garage, uma estrutura mecânica futurista recheada de curiosidades e tantos outros que o melhor é mesmo consultar a página do festival.
E, afinal, o que faz esta gente percorrer tantos quilómetros? “Aquilo é um autêntico playground para adultos”, diz Xana Nunes. Carros decorados, instalações gigantescas e com formas estranhas, pessoas despidas de preconceitos que se passeiam a pé pelos campos ou de bicicleta, a forma mais fácil de se mover por todo o lado, o Burning Man é uma verdadeira galeria de arte a céu aberto e uma festa ininterrupta até ao último dia do festival. “Ali não há dinheiro, nada se compra, nada se vende, tudo se partilha”, explica a empresária. Na verdade, entre os princípios do evento está a inclusão radical, o esforço comunitário, a participação, mas também a responsabilidade cívica, a auto-expressão radical, a autossuficiência.
Criado em 1986, o Burning Man começou por ser uma ideia de dois amigos de São Francisco, Larry Harvey e Jerry James, que construíram a estátua de um homem gigante em madeira, em Baker Beach, durante o solstício de verão. No final decidiram queimar a estátua perante os aplausos de uma multidão. O feito repetiu-se durante alguns anos, até que, em 1990, a polícia os impediu de queimar o boneco e Larry e Jerry decidiram então procurar outro local para o fazer, um sítio onde não perturbassem ninguém e onde não tivessem problemas com as autoridades.
É assim que, em 1991, o evento se muda para o deserto do Nevada, e com ele leva uma legião de fãs, muitos dos quais da região de Silicon Valley, que também decidem participar ativamente. De resto, outra das características que faz do Burning Man um festival único é que qualquer participante pode fazer parte da programação desde que apresente uma proposta e ela seja aceite. É por isso que existem, por exemplo, workshops, seminários, palestras, performances ou demonstrações de tudo e mais alguma coisa. Mas as grandes atrações, as inúmeras instalações de arte, geralmente de enormes dimensões, ficam situadas na Playa, a designação porque é conhecido o centro do semicírculo formado pelos diversos campos. De todas as cores, formatos tamanhos e texturas, algumas dão mesmo para os burners entrarem ou subirem, para tocarem e sentirem.
Apesar de tanta diversidade, cada edição conta com um tema principal, e a de 2016, que arrancou no domingo, 28 de agosto, e terminou nesta última segunda-feira, foi dedicada a Leonardo Da Vinci. Os ideais humanistas, a redescoberta da ciência e a revolução cultural do maior vulto da Renascença italiana prometem inspirar, cinco séculos depois, também os artistas e criadores do nosso tempo. Os organizadores do Burning Man, pelo menos, tinham a expectativa de “tornar Black Rock City no epicentro de uma nova renascença”.
Tudo o que se respira na cidade efémera por estes dias é, pois, arte e festa, quase sempre em contramão. No final, a apoteose é a queima de todas as instalações para seguir a tradição que, afinal de contas começou por dar o nome ao festival.
De resto, e para ser fiel ao espírito do Burning Man, este texto só poderia terminar com um AVISO, assim mesmo, em letras garrafais: PARA DESTRUIR DEPOIS DE LER.
Burning Man – Factos e curiosidades
1. O 1º Burning Man teve lugar em 1986, em Baker Beach, São Francisco, e foi uma ideia de dois amigos: Jerry James e Larry Harvey.
2. Em 1991 Kevin Evans e John Law decidiram levá-lo para o deserto do Nevada.
3. O número de participantes tem crescido a cada edição e em 2015 estiveram presentes cerca de 70 mil. Este ano o número deverá ser superior. Uma entrada custa 390 dólares.
4. O Burning Man conta desde sempre com a presença de muita gente que trabalha em empresas de Silicon Valley. Larry Page e Sergey Brin, cofundadores do Google, Mark Zuckerberg e Dustin Moskovitz, do Facebook são alguns dos burners repetentes em várias edições.
5. Mas há também famosos do cinema, da música ou da moda. A portuguesa Sara Sampaio já lá esteve e até fez questão de partilhar uma imagem no instagram, bem como Katie Perry, Cara Delevingne, ou os atores Will Smith e Susan Sarandon.
6. No festival só há duas coisas que se compram: café e gelo. Tudo o resto é partilhado. Mas convém não esquecer os mantimentos fundamentais para uns dias no deserto, a começar, claro pela comida, água e um local de abrigo para dormir.
7. O estado do tempo é sempre imprevisível. A organização até ilustra as informações sobre o tema com um ditado do Nevada: “Se não gostas do tempo vai dar uma volta por cinco minutos que ele muda”. Ainda assim, o pior é a temperatura, que durante o dia pode chegar aos 40 graus, e as tempestades de pó.
8. Este era o ano Da Vinci mas o festival já teve temas tão diversos como a fertilidade, o tempo, o inferno, o espaço, o corpo, esperança e medo, o homem verde, o sonho americano ou o carnaval de espelhos.
9. Não há entradas temporárias no festival só para assistir a um ou outro espetáculo. A organização entende que o festival é uma experiência de vivência temporária em comunidade e nem considera essa hipótese. Ir a Black Rock City por menos de 24 horas está fora de questão.
(Artigo publicado na VISÃO 1226, de 1 de setembro)