É algo que nos provoca tonturas e vertigens, e uma reviravolta no estômago, e aquela sensação de agonia de jet-lag. Situamo-nos a norte, certo? Na Suécia. Bastante longe das mareações convulsas do mapa abaixo de dela. Lá em cima, onde a educação é exemplar e inteiramente gratuita, e as mulheres têm paridade no parlamento. No país que ocupa o primeiro lugar do índice de democracia e se situa no topo da tabela dos índices de desenvolvimento humano, que se orgulhou da social-democracia referencial de Olaf Palm, dos avanços na igualdade de géneros e sempre foi de uma generosidade imensa no abrigo aos exilados políticos. E que instituiu o prémio Nobel, tem mais patentes do que qualquer outro país europeu, é recordista em qualidade de vida, tem o Ikea, os Abba, o Strindberg, a compota de mirtilo… É para aí que aponta a agulha da bússola, não para o desnorte distópico descrito no “universo Stieg Larsson”, o romancista sueco principiante, de 50 anos, perseguido por grupos de skinheads e neonazis, que morreu em 2004, antes do primeiro romance Os Homens que Odeiam as Mulheres, (o filme de David Fincher estreia-se, quinta, 19) ser publicado, e da triologia Millennium se juntar à lista dos best-sellers mais vendidos de sempre PUXADA 1.
Aí a gélida, paritária e organizada Suécia é vista como um faroeste com neve. Onde os rancheiros são os políticos corruptos, os xerifes os polícias ineficientes, e os fora-da-lei predadores sexuais. Naquele que é considerado o melhor país para uma mulher viver, há estatísticas, simultaneamente, arrepiantes: quatro mil violações por ano num universo de 9 milhões de habitantes. Com mais um milhão, Portugal não ultrapassa a 500 por ano. Mas é claro que é preciso ter em conta as modalidades jurídicas que configuram casos de violação na Suécia (como as relações sexuais não consentidas de que foi acusado Julien Assange) e o facto de em Portugal apenas se contabilizarem as denunciadas. Seja como for, Anna Lindh, ministra dos Negócios Estrangeiros, foi assassinada em circunstâncias pouco esclarecidas, em 2003, e Stieg Larsson fez questão de não renunciar ao sub-título do primeiro tomo – Os Homens Que Odeiam as Mulheres -, e de abrir cada uma das quatro partes do livro com mais uma negra estatística: “46% das mulheres suecas foram sujeitas a violência por parte de um homem”.
Nas edições anglo-saxónicas, porém, a vontade do escritor não foi acatada. Chamaram-lhe A Rapariga da Tatuagem do Dragão. O que se não leva indirectamente à mesma questão, chama a atenção para o aspecto mais especial destes livros – aliás, com uma quota altíssima na responsabilidade pelo seu sucesso. É que este é o único policial em que o mais interessante não é a identidade da vítima desaparecida misteriosamente (uma adolescente, Harriet Vanger, que se evaporou há 40 anos durante uma reunião de família), mas a da coadjuvante do investigador (um jornalista caído em desgraça por causa de um processo de difamação e incumbido pelo grande industrial, patriarca à moda antiga, de descobrir o que aconteceu à sobrinha-neta: fuga, suicídio ou homicídio?). A protagonista, a tal da tatuagem do dragão na omoplata direita e dos piercings, não é a habitual femme fatale, de gestos sexys e olhar felino que costumam comparecer nos policiais. Aliás, Lisbeth Salander, 24 anos, tem mais o perfil de gata vadia, com movimentos aracnídeos, e raramente estabelece contacto visual com o interlocutor. Cabeça de Bill Gates em corpo de Amy Winehouse, ela é uma hacker genial, pálida e anorética, caçadora de caçadores de mulheres. Encontra os esqueletos no armário, “as pessoas têm sempre segredos, é uma questão de os descobrir”. E não há besta sem senão…
Este poor lonesome cowboy do faroeste gelado tem a inclemência de um Dirty Harry, também não usa os músculos faciais para efeitos de sorrisos, mas sem a menor sombra de charme. Ou se o tem está disfarçado, naquele ser escanzelado, quase andrógino, remotamente bissexual, uma espécie de duende, aparentemente frágil e quebradiço, com uma memória extraordinária e estratégias de xadrezista. Diz-se que Larsson terá pensado no síndroma de Asperger ao compor a personagem, incrivelmente brilhante, socialmente desajustada. Ou que se terá inspirado na Pipi das Meias Altas, de Astrid Lindgren, que, há gerações, assalta o imaginário de todas as crianças suecas: também ela é de baixa estatura mas possuidora de uma força mítica, autosuficiente, independente, imune às convenções e com uma altivez impassível. Muitos “turistas Millennium já foram afugentados da real rua de Estocolmo onde Larsson lhe estabeleceu fictícia residência. No livro, a porta leva um nome: V. Kulla, numa alusão à Villa Villekula onde morava Pipi das Meias Altas.
O casting de Lisbeth era um dos grandes desafio de David Fincher, sobretudo depois da feroz Noomi Rapace PUXADA 2, na versão cinematográfica sueca de Niels Arden Oplev, em 2009 (Daniel Craig é o jornalista em apuros e Christopher Plummer o velho patriarca). Noomi aprendeu a praticar kicboxing, a andar de mota, fez piercings na sobrancelha e no naruz. A enigmática Lisbeth de Fincher superou-a, pelo menos em número de piercings: também fez no lábio e no mamilo. Poucos reconhecerão Rooney Mara, mas ela, ainda o ano passado, protagonizou uma cena muito esticométrica, no início de A Rede Social, enquanto namorada de Mark Zuckerberg.
Fincher parece estar na primeira linha dos realizadores indicados para adaptarem Millenium. Ele está familiarizado com serial killers, que propositadamente largam pistas, em forma de charadas, para atraírem os polícias seguidores de migalhinhas como Hansel e Gretel. Sobretudo depois de Seven (1995) ou Zodiac (2007). Percebe de ambiências opressivas e sombrias. Já lidou com personagens, ao mesmo tempo, magnéticas e repulsivas (Fight Club,1999). Ou crimes em espaços fechados (Sala de Pânico e Alien) E, espantosamente, consegue tornar as tecnologias de comunicação em algo muito sedutor e cinematograficamente dinâmico. É preciso não esquecer que ele transformou A Rede Social (2010), um filme de processos judiciais, em que o cúmulo da acção era a velocidade com que alguns teenagers nerds teclavam no computador, numa obra a transbordar de frenética energia.
Os Homens Que Odeiam as Mulheres tem isto tudo. Atmosferas azul cinza muito opressivas e glaciais, muita tecnologia de comunicação (Lisbeth é uma hacker), personagens perversas… Há violações muito cruéis e explícitas, perseguições de mota, uma câmara de tortura numa cave sinistra, uma família pouco recomendável cheia de segredos de incesto, e passados nazis, há uma tatuagem forçada na barriga adiposa de um sádico abusador de raparigas indefesas: “Sou um porco sádico, um pervertido e um violador”. Fincher gere tudo isto com uma fluência notável, na forma como interliga os vários plots, os avanços e recuos no tempo, com o “tensímetro” sempre ligado.
Na sua formulação atípica, o policial de Larsson tem um whodunit interessante – quem fez desaparecer a tal sobrinha-neta do industrial? Quem levou 40 anos a enviar-lhe pontualmente, no dia dos seus anos, a mesma prenda que a miúda costumava oferecer-lhe – uma flor seca emoldurada? Na boa tradição britânica, é um mistério “quarto-fechado” em formato ilha. Durante as horas que coincidiram com o desaparecimento, a ilha Hedeby (inventada por Larsson, com direito a mapa e tudo), esteve isolada do mundo, portanto ficam circunscritos os suspeitos. Sempre a cruzar a linha do policial negro e do quebra-cabeças inglês, com o clássico crime cometido num ambiente fechado e familiar, o escritor lança-lhe depois enredos políticos, financeiros e religiosos. Mulheres ritualmente assassinadas em crimes tão brutais que só poderiam mesmo ser inspirados no Velho Testamento. E sempre de passagem, o ódio racial, uma espécie de rancor de género sexual, atravessam a história como vultos sinistros.
Stieg Larsson nunca foi reconhecido enquanto jornalista, apesar de inúmeros esforços, ao contrário do repórter do seu livro, sócio da revista Millennium. Ex- maoísta e trotskista, foram as suas investigações de denúncia de grupos racistas neonazis na Suécia que lhe trouxeram uma malograda notoriedade. Devia aguardar as ameaças constantes à sua vida com a mesma atormentação com que o velho industrial recebia as flores secas. Vivia sob o medo e as contingências de segurança. Morreu no aniversário da Noite de Cristal, o que causou as sempre muito pegajosas teias da conspiração. PUXADA 3 Muito se especulou sobre as causas da sua morte, sobre a sua herança de milhões (provenientes da vendas de livros e de direitos) que foi parar, não à sua companheira de 30 anos, mas ao pai e ao irmão de quem não era íntimo – ela que sempre defendera as mulheres não o conseguiu garantir após a morte. Também muita tinta continua a correr sobre a possibilidade da existência de um quarto livro, ainda mantido em total secretismo, algures numa pen ou no disco rígido do seu computador. O local da sua sepultura permanece incógnito. Há quem sustente que ele não morreu, mas “fez-se” desaparecer como uma personagem dos seus livros. É este enredo póstumo o seu quarto romance.
Caixa 1 – Fotos Livro
As 1868 páginas da triologia Millennium (Os Homens que Odeiam as Mulheres, A Rapariga que Sonhavam Com uma Lata de Gasolina e um Fósforo e A Rainha no Palácio das Correntes de Ar) foram escritas entre 2002 e 2004. Traduzida em 46 países, venderam-se mais de 45 milhões de exemplares. Em Portugal, o primeiro volume vai na 13ª edição
Caixa 2 – Fotos duas atrizes
No remake hollywoodesco de David Fincher é Rooney Mara quem substitui Noomi Rapace, na versão inicial sueca, realizada por Niels Arden Oplev, em 2009
Caixa 3- Foto escritor
Stieg Larsson, morreu sem suspeitar do sucesso global que decorreria dos seus primeiros e únicos romances. Pouco antes da publicação, morreu de ataque cardíaco, aos 50 anos, em Novembro de 2004, enquanto subia as escadas do edifício do seu escritório, num lance de sete andares, por se encontrar subitamente avariado o elevador.