Desde que Moisés separou as águas do Mar Vermelho para conduzir o seu povo à terra prometida que as travessias do deserto têm conotações bíblicas. E só assim as diásporas fazem sentido. E quem quer chegar à terra prometida tem que penar, passar sede e fome, comer o pó e o pão que o diabo amassou. São assim tão fustigados como ínvios os caminhos para os paraísos terrenos, que se revelam sempre mais parcos que o verdadeiro Eden. As três famílias do filme de Kelly Reichardt buscam um atalho para a terra prometida. Ousado atrevimento que evidencia a sua frágil condição humana. A quimera do ouro sai-lhes cara, tudo tem um preço. Só que este deserto que Richardt nos mostra não é, naturalmente, a do Monte Sinai, mas as infindáveis planícies do Arizona, solos argilosos, temperaturas avassaladoras, que os primeiros colonos atravessaram, para povoar terras estranhas, em busca de riquezas. A tal terra prometida ainda ali é uma miragem, uma lenda que teima em não se concretizar, num país ainda por definir.
O Atalho é assim uma espécie de pré-western… De alguma forma, as figuras míticas, dos índios, dos cowboys, dos xerifes, dos fora-da-lei, nascem ali… já aparecem no filme, mas ainda de forma embrionária, começam a construir-se, e apercebemo-nos de como os primeiros passos são decisivos para tornar o Oeste selvagem e indomável, terra de lendas e de peripécias, de crueldades e de desfiladeiros adversos. Entendemos isso pela aridez da paisagem mas sobretudo pela forma como os novos colonos se relacionam com o outro, com o estranho. E o estranho mais estranho que ali aparece é o índio. Figura misteriosa que lhes cria curiosidade e pavor. Todo o filme, perdido num espaço sem fim, alicerça-se na questão da confiança e na aventura pelo desconhecido. Há, em primeiro lugar, a confiança no guia, que aparentemente é menos dotado do que o que se quer fazer parecer e é um autêntico criador de lendas. Tem já a figura típica do cowboy solitário, bárbaro e selvagem por natureza. Da (des)confiança no cowboy, passamos à (des)confiança no índio, necessária, pois ninguém como ele domina o território, mas também temerosa. É ali que se esclarece o conflito, e a permanente dúvida entre a diplomacia e a agressão.
O Atalho é um on-the-road lento e coletivo, feito ao ritmo das carroças, num espaço vazio e infindo. Não será um western clássico tal como não será um on-the-road típico. Até porque o que mais conta não são as peripécias que se encontram pelo caminho, mas antes as relações que se estabelecem dentro do próprio grupo, invulgarmente largo para o género, e a forma como se organizam em situações extremas. As personagens estão bem definidas e são credíveis num registo mais próximo do real. Ao contrário do que os fantasiosos westerns que estamos habituados a ver, aqui permanece essa ideia de realismo, parece-nos que ficamos a saber como tudo realmente passou, com esta ilustração exemplar da dura travessia de uma família. É um realismo pouco habitual em filmes do género.
Kelly Reichardt é uma das mais promissoras realizadoras do cinema independente americano. É a autora de Wendy and Lucy, uma brilhante e comovente obra sobre a América profunda contemporânea. Em O Atalho abre caminho para as profundezas da América em construção. Um filme que vive do espaço em branco, mas que se abstém de chegar a um porto, demitindo-se de dar qualquer resposta. No fim, continuamos sem saber por onde estamos a ir. Mas se calhar não se pretende que os westerns indie tenham um fim.