O realizador ousou entrar no infinito particular de Bernardo Soares. Numa fase complicada da sua vida, o Livro do Desassossego caiu-lhe em cima: “Salvou-me a vida”. O livro, os fragmentos, as palavras, toda aquela “depressão serena e tormentosa”, a transcendência, a melancolia, o estranhamento, a incomodidade de uma cidade que acolhe e é hostil vão andar em digressão por telas de todo o país. E de um não-livro, de uma ruína literária João Botelho ergueu um filme que não é de época mas que é fora de época. E de um livro-caos, encontrou o seu pedaço de cosmos, sem fim, nem meio, nem princípio – exactamente por esta desordem.
Desta fez tentou o impossível ao adaptar ao cinema um livro que muitos sustentam que nem existe?
Não é impossível. As pessoas pensam sempre que é difícil adaptar literatura ao cinema, quando os textos são muito bons. Difícil é não ter medo dos textos. Diz-se que para fazer um bom filme é preciso utilizar um mau romance. Hitchock é que sabia disso, de romances de cordel fazia obras primas do cinema. Pegar em obras muito fortes da literatura é arriscado. Há inconvenientes que são os de fazer cinema em Portugal: os filmes são raros, há pouco dinheiro, é cada vez mais difícil filmar… Mas há uma vantagem que é a de ser ir arriscando, de ser fazerem protótipos e não séries e repetições, e tentar que os filmes sejam importantes. Por exemplo, com a Conversa Acabada, há 30 anos, interessou-me pegar no modernismo português como afirmação de algo inovador da cultura portuguesa. Peguei na relação entre o Fernando Pessoa e Mário de Sá Carneiro, que tinha a ver com a criação e a amizade. Foi talvez a coisa mais arriscada que fiz na vida. Agora apeteceu-me voltar à carga. Senti-me novo, outra vez…
Lembra-se de algum caso em que um bom livro tenha dado um bom filme?
Sei lá… Rebecca de Daphne du Maurier. Hitchcock fez-lhe uma boa adaptação
O Leopardo de Visconti?
Nem sei se o filme nem é melhor que o romance. Mas neste caso, eu não fiz um filme do Livro do Desassossego, eu fiz uma parte do Livro do Desassossego, aproveitei bocados. O Livro do Desassossego tem uma vantagem sobre as outras coisas, é um livro que não tem princípio nem meio nem fim. O Richard Zenith vai na sétima versão, cada um pode fazer um livro de desassossego diferente, pegar naquilo e ordená-lo por metonímicas, associações de ideias, cronologias, racords de luz e de música…
Qual foi a sua ordem?
Foi a ordem que Pessoa me indicou. (risos) A sério. Uma é a ideia do tempo que me ajudou a estruturar o filme todo. O tempo do sonho nunca é o tempo da vida. No cinema também não. O filme é estruturado em três dias e três noites na vida de Bernardo Soares, mas podem ser três minutos. Na primeira cena faltam três minutos para as três da manhã e na última, o relógio marca três. E, na verdade, o filme dura uma hora e 59 minutos… São caixas dentro de caixas…
O filme acompanha as deambulações quase sonâmbulas de Bernardo Soares…
Ele não é um heterónimo, é quase um Fernando Pessoa, mora em Lisboa na mesma rua (“sou da rua dos douradores como a humanidade de inteira”), tem quase a mesma profissão de Pessoa, que não é guarda-livros mas também trabalha num escritório, leva uma vida miserável, de abnegação, de isolamento. E essa ideia de viagem que não vai ter a lado nenhum também me ajudou. “Comboio andando ao Cais do Sodré. Chego a Lisboa mas a nenhuma conclusão” Uau! (risos)
Fernando Pessoa odiava viajar…
Mas se calhar sem sair do mesmo lugar foi a pessoa que mais viajou. A ideia de tempo e de viagens que não existem, esse fingimentos interessaram-me muito na construção deste filme. Porque no cinema também é tudo a fingir. A única verdade do cinema é a relação entre o espectador e aquilo que vê. De resto, não se viaja, não se morre no cinema, não se vai para a cama no cinema a não ser nos pornos. E houve uma frase muito bonita que me confirmou o desejo de ser democrátrico quando filmo: “Devem-se iluminar as polainas com a mesma luz que se iluminam as caras dos santos”. E eu tentei fazer isso toda a minha vida. Os ricos e os pobres devem ter a mesma dignidade de luz. O cinema é luz e sombra e pessoas aflitas lá dentro. E o Livro do Desassossego é isso também: luzes e sombras e uma pessoa aflita. Mas a melhor frase de todas, aquela que me deu o filme, diz que os grandes textos dele “só existem lidos em voz alta ou em voz baixa desde que se ouçam”. Portanto, só no cinema ou no teatro fazem sentido. Têm uma musicalidade, e uma outra camada completamente estranha em relação ao que está escrito. O que está escrito tem um sentido ou um não sentido ou o quiser, mas ganha-se outro quando se começa a falar em voz alta. Mesmo com o meu sotaque do Alto Douro, a gente começa a falar e cria-se uma dimensão estranha.
Mas se só lhe tivessem interessado as imagens filmava com o ecrã em preto como o João César Monteiro… As palavras também lhe inspiraram imagens?
Não sei se consegui ou não, mas tentei não ilustrar nada, o texto devia ganhar, e estar sempre acima de qualquer coisa. Apenas criei situações em que os textos pudessem ser ditos. Tentei tornar Lisboa o mais abstracta possível, tornando-a muito inquietante. Quando ele sai desesperado da igreja depois de resposta sobre a existência de Deus dada por um coro de crianças diabólicas, mudo a geografia da cidade, a casa dos bicos está em cima da calçada de São Francisco… Isso tem a ver com ideia de modernidade, de cubismo, com esta Lisboa de cartão como planos esmagados em cima uns dos outros. Lisboa não é muito bonita casa a casa, mas é deslumbrante com as casas todas juntas. Deu-me essa ideia de distorcer Lisboa, também através de vidros pintados à frente da câmara, planos filmados a partir de espelhos, sombras artesanais projectadas na parede. Coisas de estranheza. Eu não gosto muito das coisas, gosto das ideias das coisas. Fui buscar o escritório mais sinistro que podia encontrar em Lisboa, no Arquivo Militar em Chelas, com salas e salas monumentais e corredores muito estreitos, que desse a sensação de esmagamento às pessoas que lá trabalham. O sótão onde Bernardo Soares vive, angustia-o pelo vazio. O restaurante Sol Mar, nas portas de Santo Antão podia ser um décor de hoje, de ontem ou daqui a 40 anos. A ideia era sempre criar estranheza. Como o travelling da fila das sopa dos pobres nas arcadas do Terreiro do Paço e a rapariga nua debaixo de um casaco de peles a passar…
Mas esse já é um toque muito seu…
Essa cena foi-me inspirada num filme em que há um concurso de aristocratas para ver quem traz a coisa mais excêntrica. Ganha o que leva um pobre… Ricos e pobres divertem-se da mesma maneira. Têm suas drogas, apenas as dos ricos são mais requintadas
Um é a sopa dos pobres outro o manjar dos ricos…
Mas é tudo igual. Só a pose de divertimento nos ricos é diferente da dos pobres.
A Alexandra Lencastre faz de centro de mesa…
A Alexandra é uma querida. É uma brincadeira por causa da Mulher que Queria Ser Presidente dos EUA e também uma homenagem à própria Alexandra
Alexandra Lencastre, Catarina Wallenstein, Ana Moreira, Mónica Calle, Margarida Vila-Nova, Rita Blanco… Quase que dá vontade de perguntar que actriz não entra no seu filme?
A Maria João Luís que é óptima, por exemplo, quem me dera…
Mas descobriu um Bernardo Soares admirável…
O Cláudio Silva é um grande actor mas não lhe têm ligado muito. É um rapaz predestinado para representar, tem uma excelente voz, é calmo e inquietante. É um grande actor mas que andava um bocado perdido por aí…Vi-o numa peça de Shakespeare, no Dona Maria, Tanto Amor Desperdiçado, e ele fazia um papel deslumbrante. Eu disse: “É este!”. Teve uma doença infantil que lhe deu uma pequena deficiência física. Ele é muito bonito e dramático – assim uma mistura entre Gael Garcia Bernal e Johnny Depp. Tem uma grande coragem de interpretação. Entrou mesmo no personagem, foi um óptimo portador. Dei-lhe uma pequena indicação: “Ó Cláudio, no cinema os olhos são mais importantes que o resto. Não pestanejes”. E ele não pestanejou o filme inteiro. Apenas duas vezes quando o fumo do tabaco lhe incomodava os olhos e, mesmo assim, pestaneja em câmara lenta, que é uma coisa que só a Anna Magnani conseguia.
Ao longo deste processo nunca se sentiu um profanador, ao dar um cosmos a um livro-caos?
Quis fazer um filme sério a partir daquele que é talvez a obra mais importante da literatura portuguesa do século XX. Mas não lhe dei sentidos, aquilo não tem repostas só perguntas. Queria encontrar uma Lisboa que fosse justa com o texto. Nem realista, nem vouyeurista. Queria inquietar. Os filmes não devem confortar as pessoas. Kafka diz que a literatura deve rasgar, dividir, partir incomodar, em última instância levar suicídio. Depois há uma criança que diz ‘Ó pai… ‘ (Risos) As pessoas não devem ficar indiferentes nem consumidoras. O sexo no filme é seco, duro, não é voyeurista… Há uma violência física extraordinário, sem uma única palavra. Queria que o texto fosse mais importante. Como o grande plano da boca da Catarina no texto da Educação Sentimental dito na íntegra. É ali, na língua, na saliva, no lábio, é dali que sai a voz, a origem…
Porque que é que as mulheres são sempre assim nos seus filmes, lábios vermelhos, vestidos de cores saturadas e penteados exuberantes?
Porque ficam mais giras (risos). São ideias de mulheres, não são mulheres. Quando fiz A Mulher que Queria Ser Presidente… fui acusado de misógino. Não era nada, aquilo era a Sarah Palin dez anos antes. Era igual, juro-lhe, era uma ideia do que iria acontecer.
Quando fiz o Tráfico, ninguém diria que Portugal ia ficar assim, mas ficou… Nós realizadores temos tempo para pensar, portanto podemos anunciar qualquer coisa. Gosto de estilizar, de ser abstracto, Passo a vida fazer a uma coisa nos meus filmes: dar um rebuçado ao espectador e depois tirá-lo de repente. Só têm um defeito: vê-se a estrutura toda, onde está a câmara, de onde vem a luz, como é montado…
Isso é bom ou mau?
Há pessoas que dizem que é mau porque retira às pessoas a capacidade de se evadirem, mas eu sou contra o cinema da ilusão, sou a favor do cinema da matéria. Gosto de pintura abstracta. Quando ouço musica não penso em nada. O problema do cinema é que concretiza de mais. Na literatura há uma liberdade que o cinema não tem. Diz-nos: “Aquele senhor anda com sapatos castanhos e camisa verde” e nós podemos imaginar centenas de tons de castanhos e de verde. No cinema não, é aquele castanho e aquele verde. A ideia é chegar a esta abstracção. Mas nunca se consegue a abstracção que outras artes conseguem. Tem sempre de contar, tem sempre de mostrar. O cinema é uma arte com pecado. No princípio para se ver cinema metia-se uma moedinha e tornava-se logo negócio, nunca se conseguiu libertar desse lado, porque é caro e tem de haver retorno. Depois é uma arte vampírica, não é uma coisa pura, vai buscar ao teatro, à música, à poesia… É uma ladroagem. Eu sou um vampiro. Por exemplo, este filme está estruturado em torno de dois pintores: um é Gerhard Richter sobre o desfoque e a percepção, por isso é que Pessoa limpa os óculos no início. Outro é Lucian Freud para a posição e aquele torcer dos corpos. E depois há um com que ando toda a vida que é o “sr Caravaggio”. que me ensinou o que era a sombra e a luz, a luz pontual que ilumina uma mão e um olho. E depois há aquela memória que se me vai acumulando, a arte pop, cores fortes, os lábios vermelhos, os homens cinzentos e mulheres exuberantes…
No filme há 12 minutos de ópera, três fados, uma música estranha de Lula Pena, outra de Caetano, um bocadinho de rap numa cozinha – mas não é um musical. Em que género o inscreve?
Em nenhum. Podia ser assim como as peças do Brecht em que há sempre zonas musicas que comentam a cena anterior, Aqui as partes musicais, ligam, mais do que comentam. O Eisenstein fez a montagem de atracções, do pára e arranca, como a vida. Só que é cinema, não a vida. Logo é abstracto.
Conta-se que o Eisenstein queria filmar também algo tão impossível como O Capital…
Seria uma coisa genial. Garanto-lhe que se pode fazer um grande filme sobre O Capital, juro-lhe. As pessoas têm a mania que o cinema é uma coisa só, uma arte de se contar histórias, mas não é…
Talvez agora com o trecho “a minha pátria é a língua portuguesa” no seu filme as pessoas reparem que é um texto nada patriótico…
Porque Pessoa foi tudo, de direita, de esquerda, do centro e viva a contradição! Um génio! Eduardo Lourenço diz que esse trecho é a maior invenção desde as Descobertas. Ele diz que não se importava nada que nos invadissem, que viessem os espanhóis ,desde que não o incomodassem pessoalmente. E acaba esse trecho com uma frase notável: “Eu não escrevo em português, escrevo eu mesmo”. Depois há partes de um individualismo absoluto, sobre o isolamento e a capacidade de criar. No meu filme, ele acaba a dizer ‘Deus sou eu , ah, ah ah’… (risos) É preciso ter muita lata…
Também é preciso ter muita lata para ter entrado neste universo pessoano?
Calhou-me… Caiu-me na cabeça. Estava numa fase estranha da minha vida, naquelas fases em que a pessoa nem sabe se está velho se está novo, e comecei a ler o Livro do Desassossego, em simultâneo com a Corte do Norte. Aquilo salvou-me. O que é o meu sofrimento ao pé deste? Aquele grande texto está para lá de nós. É um livro da abdicação e do prazer enorme de se estar sozinho. É um prazer enorme da solidão.
É um tratado de escrita.
Fernando Pessoa dizia que Bernardo Soares era ele “sem afectividade nem racionalidade”. Parece que sobra pouco para a sua personagem?
Sobra tanto, minha querida, sobra tanto… É a transcendência. A arte abstracta também não tem afectividade nem racionalidade e eu choro perante um Pollock. É emoção pura, arrepia-me, fico angustiado. Há coisas que nos deixam num estado superior da vida, levam-nos para cima. Há coisas que estão para além da expressão dos sentimentos… Há uma frase que diz que “quando a arte era a observância cuidada das regras havia poucos artistas e eram muito bons, quando a arte se transformou numa expressão dos sentimentos é uma porcaria, toda a gente pode ser artista porque toda a gente tem sentimentos…”(risos). Há coisas que estão para lá dos sentimentos, são construções…Quantas horas terá levado Pessoa a escrever isto, quantos neurónios terá gastado? Para escrever assim só mesmo levando uma vida anónima e desinteressante. E quando morreu aos 47 parecia que tinha 80…Como o Da Vinci parecia que tinha 100.
Porque é que optou por não estrear o filme no circuito comercial?
Esta é uma opção comercial, garanto-lhe. Os circuitos comerciais estão reduzidos a centros comerciais. A Corte do Norte foi esmagada por centros comerciais. Hoje quem vai ao cinema são crianças entre os 8 e 18 e querem ver entretenimento, com pipocas, telemoveis, galhofas, e medos e sustos. São contos para crianças, conta-se tudo em três minutos. No tempo dos grandes clássicos cada plano tinha dez ideias, agora uma ideia dá para um filme inteiro. Muitos efeitos, muitas imagens, três mil planos, os miúdos hoje só se concentram com o desfilar das imagens, se a pessoa lhe der um plano fixo, são incapazes de ver o vento nas árvores. Têm um cérebro, se calhar, muito maior do que o meu, mas não tem pensamento abstracto, não projectam geometricamente no espaço, não entendem as contradições e a dialéctica, mas têm gosto. Este filme vai ter mais espectadores e receitas nos cineteatros do país. E vou ter uma coisa fantástica que já não tenho há muito tempo: pessoas em silêncio a ver e ouvir.
Mas face a isso, essa opção, é uma desistência ou uma resistência?
É uma dissidência. Quando se é resistente perde-se sempre, ensinou-me Jean-Marie Straub. Porque é que eu hei-de de ter 10 mil espectadores se posso ter 40 mil? Se não posso ganhar as maiorias, quero ganhar as minorias.