Como todos os anos, chego ao Marquês do Pombal, ao bater das três da tarde, a hora a que costuma ser dado o toque de marcha para a manifestação. O toque de marcha é uma força de expressão, porque há sempre um compasso de espera – um longo compasso de espera – até que a coisa arranque. O coletivo Toupeiras, um grupo de artistas que desenha cartazes como se fossem quadros, a que normalmente me junto, fica sempre para o final e isso faz com que a massa de gente que nos precede demore a mover-se.
Mas adiante, que este ano Toupeiras só na Internet ou no live do Lux (lá mais para a frente neste texto) e hoje estou sozinha no 25 de Abril. Sozinha não, há a Diana, a nossa fotógrafa millennial, que entretanto se tornou minha amiga. No entanto, não posso deixar de sentir falta dos meus pais e dos meus filhos. E sei que não vou encontrar todos os aqueles que ajudam a fazer com que este seja um dos dias mais bem vividos do ano.
Mal chego ao Marquês, oiço uma buzinadela seguida de um grito cheio do meu nome. Olho, em busca de quem me chama, e vejo o Manel, colega da VISÃO e amigo da adolescência, que vive por perto. Está de mota, mas adivinho que vem ver a movimentação. Acenamo-nos, entusiasmados, como quem constata que, afinal, sempre dá para encontrar caras conhecidas.
Mas é em António Grosso, 67 anos, que me centro desta vez, pois ele está junto ao único carro estacionado em plena rotunda, e ainda por cima a debitar música, num poderoso altifalante. Nem chego a ver-lhe a cara, porque se abriga, e bem, numa máscara. É da direção do MAS, Movimento Alternativa Socialista, sindicalista que sabe bem o que foi o 25 de Abril, e trouxe consigo meia dúzia de camaradas. “Estamos aqui a celebrar a data e o Serviço Nacional de Saúde. Já viemos pendurar a faixa e agora estamos a passar música.” Música revolucionária e é por causa disso que dou por mim a trautear o Povo Unido Jamais Será Vencido, de Luís Cília.
E a polícia? Não está nem aí, embora esteja bem aqui, que a vemos por todo o lado. Nem mesmo quando se juntam algumas pessoas a entoar o hino da revolução, que estará, por estes minutos, esperamos, em coro nas varandas do País. O Marquês, que deveria rebentar pelas costuras a esta hora, encontra-se vazio. Porém, nos postes, o PCP pendurou cravos de cartão até ao Rossio. “PCP saúda Abril”, lê-se várias vezes, durante esta estranha tarde, para lembrar que não se trata apenas de mais um sábado deste nosso confinamento.
O solitário sócio 4362 da Associação 25 de Abril
Deito um último olhar ao Marquês de Pombal e reparo no escadote que lá ficou esquecido, da hora em que a faixa foi pendurada por fios. E atiro-me à Avenida, de coração apertado, confesso, ao som de que Faz falta é Animar a Malta, do grande Zeca Afonso.
Os carros passam por nós, simplesmente, como se estivéssemos a viver um dia normal. Em alguns casos, poucos, abrem-se as janelas e lá de dentro saem músicas que queríamos mesmo estar a ouvir neste momento. E agradecemos por isso.
Mas onde estão os vendedores de cravos? E as farturas, que nos costumam dar força para continuar a descida com garra, tragadas na companhia de uma mini fresquinha? Só vejo bicicletas, tantas, como nunca vi. Algumas trotinetas e vários desportistas empurrados para a rua pelo estado de emergência.
Quando reparamos na Avenida cortada ao trânsito e muita polícia por aqui, pensamos: “Tu queres ver?” Mas depressa somos informados que só estão a impedir a passagem dos carros porque há uma filmagem a acontecer lá mais à frente, junto ao Cinema São Jorge. E só não partimos em desfilada, porque pelo caminho cruzamo-nos com Carlos Alberto Ferreira, sócio 4362 da Associação 25 de Abril, a figura da tarde, aquele que, adivinhamos, fará as parangonas dos noticiários.
Aos 72 anos, veio de Massamá, de comboio, vestido a rigor, como se ainda trabalhasse no Tivoli, aqui mesmo ao lado. Carlos apresenta-se de blazer branco, apertado com um alfinete de ama, porque os botões já não cumprem a sua função óbvia e calça luvas da mesma cor, que seguram a enorme bandeira vermelha e verde, com alguns cravos falsos anexados de forma arcaica. “Naquele hotel [aponta], atendi a Beatriz Costa, Sá Carneiro, Jorge Amado e Mota Amaral, só para citar alguns”, conta, parado no meio da rua, com tanto fulgor como se estivesse em plena manifestação. Na lapela, topamos-lhe dois pins do MFA. E, na alma, o saudosismo de uma Avenida cheia de gente, a gritar: “Fascismo nunca mais”. Na realidade, diz, só está a fazer “o costume”.
Fascismo nunca mais no banco de jardim
Quando chegamos finalmente ao happening que fechou a Avenida durante uma horinha, percebemos que a culpa é do dj Branko. E do seu convidado, Dino D’Santiago, já agora. Estão por aqui, a tirar fotografias nesta avenida vazia e mais ou menos silenciosa, depois de terem feito um direto de 30 minutos no Youtube, numa iniciativa conjunta com a Câmara de Lisboa – A Liberdade em Casa. “Quisemos aproveitar a poesia da cidade vazia, especialmente esta avenida neste dia”, diz-nos Branko, já com tudo arrumado e a equipa, reduzida ao máximo, a debandar, com máscaras e algum desalento na alma.
Ainda que a coisa esteja acabada, continuamos com música. E isso é bom, até porque o que nos chega aos ouvidos é Grândola, de novo. Estamos a dois passos da organização regional de Lisboa do PCP e é de lá que sai o som, bem alto. E logo a seguir, o hino nacional, que sempre soa a desatualizado, com tanto apelo “às armas”.
Ainda nem estamos nessa estrofe, quando ouço, pela segunda vez nesse dia, alguém a gritar o meu nome, desta vez com apelido e tudo. É a Joana Synek, e vem com o seu namorado João e a amiga Cristina – além de fazer anos hoje, tem uns brincos lindos, que dão uma forma estilizada aos cravos. “Estamos a fazer a nossa caminhada higiénica do dia”, conta-nos Joana, que pela primeira vez vislumbro escondida por trás de uma máscara, junto à entrada do metro da Avenida. Trazem todos cravos, arrumados como a imaginação dita, encomendados online na Flores do Cais. “Viemos até aqui, ordeiramente, mantendo a distância social, de máscara e sem grande alarido”, diz-nos, enquanto se esfrega com álcool gel, por duas vezes num curto espaço de tempo. Na verdade, o adjetivo ordeiro não assenta apenas em Joana e nos seus amigos, mas no povo em geral, pois tirando algumas pessoas, muito salpicadas por esta grande artéria lisboeta, não há desacatos dignos de repreensão pela direção-geral da Saúde (DGS).
Damos então por um pedaço de cartão bem adequado, em jeito de cartaz, pousado num dos bancos de jardim, que aqui não estão vedados ao descanso: “Fascismo nunca mais.” Dantes, neste dia, costumava ouvir esta frase em grito, várias vezes, no meio da multidão.
Ai, a cabeça que não ajuda
Lídia Soeiro, 68 anos, carrega um luto forte que a desanima. Vive nas traseiras da Avenida e veio até aqui à procura dos cravos que sempre se vendem em frente ao PCP. Mas, desta vez, em pleno 25 de Abril, não os encontra nem à bancada do costume, e isso entristece-a ainda mais, conta-nos com a máscara descida até ao pescoço. Em vez da fila para as flores símbolo da revolução em que costuma pôr-se, deliciou-se a ouvir as músicas que lhe ofereceram da janela do PCP, apesar de já nem conseguir enumerá-las, porque a cabeça não ajuda. “Foi uma quantidade delas, do Zeca Afonso, ai desculpe lá, mas não estou a lembrar-me de quais são.”
Os vizinhos que encontramos logo à frente trazem os mais pequenos pela mão, para que não se esqueçam nunca do valor da liberdade, mesmo que só tenham idades entre os 11 e os 2 anos e que agora até possam desconfiar dela. São eles que carregam, orgulhosos, os cravos vermelhos de Abril. Antes de aqui chegarem, contam-nos que estiveram a cantar todos juntos, em suas casas, a Grândola à janela, e só depois vieram, sorrateiramente, até à Avenida, a pé, mantendo as distâncias impostas pelo vírus. Já aqui, cruzam-se com quem usa o cão como desculpa para ver o que se passa, consciente da importância do dia, ainda que sem ornamentos na lapela.
Nos Restauradores, há os que aproveitam o espaço livre para umas manobras de skate, numa praça que praticamente é só deles. Por pouco não atropelam Manuel Reis, 66 anos, de jornal Expresso numa mão e dois cravos na outra, a mesma que segura uma mala de tiracolo.
Vem absorto, desde o Marquês, a trocar mensagens com os amigos com quem costuma fazer este trajeto, em convicta manifestação. É que, este ano, decidiu gravar uma versão da Grândola com os filhos, dois deles músicos profissionais, e pô-la no Youtube. É esse o tema que enche as conversas virtuais deste professor de filosofia que está habituado às celebrações do 25 de Abril, desde que trocou Alcains por Lisboa, nos idos setentas. “Nunca tinha feito este percurso verdadeiramente sozinho”, lamenta, mas logo a seguir acena a um carro, onde segue uma amiga e ainda vai cumprimentar, ao longe, claro, uma família que conhece do coro da Achada, de que faz parte.
No Rossio, não se passa nada, além de algumas máscaras e de outros corredores eventuais nascidos deste confinamento. Não há uma única esplanada aberta, daquelas que dantes nos serviam de poiso para descansar as pernas depois de percorrida toda uma Avenida em para-arranca, nem a ginjinha, onde invariavelmente acabávamos com os mais resistentes, depois de, em coro, cantarmos a Grândola e de a emoção atingir o ponto mais alto da tarde.
O ator Nuno Gil, 40 anos, veio preencher esse vazio, a dar ao pedal de uma Gira, uma das bicicletas partilhadas da cidade. Na mochila, traz 17 quilos de coluna, a transmitir, em looping, a música-hino da revolução, às vezes na voz de Rodrigo Leão. No regaço, carrega o que resta de um molho de cravos que comprou de manhã no Mercado da Ribeira, a troco de 50 euros. Desde a uma da tarde que anda pela cidade a distribuir as flores por amigos, ou por quem atendeu ao seu apelo no Facebook (150 respostas). Já passou pelo Carmo, onde cantou a música que a sua coluna debita com a deputada Joacine Katar Moreira, que conheceu no Cais do Sodré, foi ao Bairro Alto, ao Príncipe Real e às Amoreiras. Ainda tem clientes à espera na zona de Anjos e Arroios, até que o seu molho, ou a sua energia, se acabe. A polícia já o mandou parar, para saber onde vive, mas como até tem casa nas redondezas, deixaram-no seguir, livremente. Aliás, como a todos os que não quiseram deixar a Avenida despida de alma, nem surda de música. Embora o silêncio seja o que mais se faz ouvir, a maior parte do tempo em que a descemos – e voltámos a subir, num tira-teimas.
Enquanto isso, em Santa Apolónia…
Enquanto tudo isto acontece, aos bochechos, na Avenida, há toda uma energia positiva que escorre, desde as três e meia da tarde, do terraço do Lux – de portas fechadas desde que a ordem foi de não irmos a sítios de lazer para nos aliviarem o dia a dia. E por isso, sentimos que temos de ir lá espreitar este sítio onde já fomos felizes tantas vezes, antes de chegarmos a casa. Os streamings de sábado à noite já viraram ponto de encontro virtual, em que amigos trocam piadolas na caixa de comentários e vivem uma ficção que em tempos – não tão longínquos como os sentimos – já foi realidade. “Encontramo-nos no bar?”, “Estás onde? A fumar um cigarro na varanda?”
Desta vez, e porque este sábado foi feriado e ainda por cima o feriado do 25 de Abril, a coisa quis-se mesmo diferente. Para já, a festa não foi à noite, mas à tarde, com uma luz que nos encanta, mesmo por cima do rio que está de um azul irrepreensível e aonde até passa um barco em modo lazer, como nos dias de que ainda nos lembramos. Ao lado da mesa por onde passam quatro djs (Tiago Miranda, DjAl, Pedro Ramos e Rui Vargas), vê-se o urso branco que costuma estar no piso intermédio preso atrás de um vidro e em manobras de diversão. No colo, tem um cartaz das Toupeiras (Eu Vou Ser Como a Toupeira), de anos anteriores, que o Lux foi resgatar à biblioteca Ephemera e esteve nos últimos dias a retocar, porque já davam mostras de cansaço.
Pelo meio, mostra-se a curta Passos de Abril, filmada pelo realizador João Botelho junto ao Parlamento, um habitué do Lux e amigo irremediável da casa, outro filme de quatro minutos, tão divertido quanto criativo, com os empregados, confinados em casa, imagens e sons de arquivo da época da revolução (por momentos, estranhamente atuais) e ainda algumas imagens inéditas de outros 25 de Abril, celebrados em verdadeira liberdade e captadas por José Pinheiro, que anda por aqui hoje, ora na régie, ora a enrolar cabos quando avisam que a festa é para acabar, numa ajuda preciosa para que tudo saia com a devida perfeição.
Embora a coisa esteja animada, não há cá encores. Mais um bocadinho e a tarde cai sobre o rio e são horas de terminar com a celebração online, ainda que nos custe. Nos bastidores, ouvem-se então palmas e uma onda de alívio por esta sétima sessão do Lux em modo redes sociais ter corrido como previsto, seguindo o guião by the book. Mas na caixa de comentários há de continuar a escrever-se muito amor e emoção. Até bater a ressaca de um dia estranho e voltarmos à interminável rotina a que o nosso confinamento obriga.