Para já, é uma “coligação” improvável: CDS-PP, PAN, Chega e Iniciativa Liberal estão unidos na intenção de avançar com um inquérito parlamentar à utilização fraudulenta de donativos e de verbas públicas destinados às vítimas do incêndio de Pedrógão Grande, ocorrido em junho de 2017. Os quatro partidos convergem na ideia de que só o apuramento das responsabilidades dos organismos do Estado e demais instituições que operaram no terreno pode restituir a confiança dos cidadãos em campanhas de solidariedade e, por isso, mostram-se disponíveis para alinhavar com uma proposta concertada, indo ao encontro de uma petição que será debatida esta quinta-feira na Assembleia da República.
Os 4.008 peticionários consideram “profundamente repugnante o aproveitamento fraudulento, abusivo e corrupto dos donativos e dinheiros públicos” e, como tal, entendem que os deputados “não podem permanecer em silêncio perante as suspeitas de tão vil violação da lei”, conforme pode ler-se no texto datado de setembro do ano passado, dois meses após a VISÃO ter denunciado os esquemas de alteração das moradas fiscais que viria a permitir que habitações não permanentes, casas devolutas ou ruínas fossem tratadas como intervenções prioritárias.
O texto que será apreciado, assinale-se, é anterior à dedução da acusação por parte do Ministério Público (MP) contra 28 arguidos, entre os quais o presidente da Câmara de Pedrógão Grande, Valdemar Alves reeleito nas listas do PS, e o ex-vereador Bruno Gomes (a ambos são imputados 60 crimes). O Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) de Coimbra concluiu que houve uma aplicação indevida de apoios, “provenientes de crimes”, no montante global de 716 mil euros.
Além disso, o Tribunal de Contas, com uma auditoria ao fundo criado pelo Governo, o Revita, veio expor a falta de transparência de todo o processo, a escassa coordenação e fiscalização de entidades como a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro (CCDRC), então presidida pela agora ministra da Coesão Territorial, Ana Abrunhosa, e do próprio fundo estatal, liderado por Rui Fiolhais, pelo qual passaram todos os casos que mereceram ajudas públicas ou privadas.
Perante isto, os partidos são contundentes. “O CDS não se oporá a um inquérito parlamentar sobre esta matéria e está disponível para integrar o conjunto de deputados que o possam requerer”, afirma, em declarações à VISÃO, João Almeida, deputado, porta-voz e candidato à liderança dos centristas. Mais à direita, o único representante e presidente do Chega, André Ventura (que, por força do regimento parlamentar, não poderá intervir na discussão desta tarde), adianta que vai lançar um repto a outras forças para irem juntos a jogo.
“Vamos desafiar o PSD, o CDS e a Iniciativa Liberal para a constituição de uma comissão de inquérito ao que se passou com os donativos e com a reconstrução de Pedrógão”, frisa o deputado, mostrando-se convicto de que os sociais-democratas também aderirão à ideia. “Tenho confiança de que Rui Rio possa aceder à nossa proposta porque se trata de uma questão de transparência e que envolve a solidariedade das pessoas, sem desprimor para o trabalho de investigação que o MP fez. Estou convicto de que Rui Rio será sensível a esta proposta e, caso a aceite, vou pedir uma reunião para podermos acertar as condições em que o inquérito será lançado”, reforça.
“Como se não bastasse termos todos assistido a uma das maiores catástrofes que este País já viu e sentiu, como se não fosse suficiente todos os relatórios existentes, nomeadamente o do TdC, apontarem para chocantes falhas do Estado, central e local, bem como de várias instituições, seria um verdadeiro escândalo que a Assembleia da República compactuasse com bloqueios a iniciativas que visem o cabal esclarecimento dos acontecimentos”, enfatiza João Cotrim de Figueiredo, líder e deputado único da Iniciativa Liberal.
E o representantes dos liberais (que também não poderá usar da palavra nesse ponto da ordem de trabalhos) acrescenta que o seu partido “validará toda e qualquer iniciativa que vise o cabal esclarecimento e que permita a preparação da sociedade e do território para evitar a repetição de um drama como este”. Mesmo que isso passe por um texto comum.
Em nome do PAN, uma fonte oficial assinala que o partido não fez dar entrada de qualquer proposta para a comissão de inquérito, embora admita “a possibilidade de acompanhar” alguma iniciativa de outras forças “que vá nesse sentido”. A VISÃO procurou conhecer as posições do BE, PCP e Livre, mas, até à hora de publicação deste artigo, não teve sucesso.
O problema para que a investigação parlamentar possa ocorrer prende-se, assim, com a vontade do PSD. Isto porque existem duas vias para que a comissão seja formada: aprovando-a em plenário, por maioria simples (o que pressuporia uma união que incluísse também bloquistas e comunistas), ou forçando a sua constituição, através de um requerimento subscrito por um quinto (46) dos deputados em efetividade de funções.
No segundo cenário, a aritmética é exigente: seria sempre necessária a bênção da bancada “laranja” (ou de quase metade dela). Somados, CDS, PAN, Chega e Iniciativa Liberal contam com 11 parlamentares. Precisariam, portanto, de, pelo menos, 35 deputados sociais-democratas.
Ora, à VISÃO, o deputado do PSD João Marques, ex-presidente da Câmara Municipal de Pedrógão Grande – derrotado, justamente, por Valdemar Alves -, fecha a porta ao inquérito: “O PSD está disposto [a viabilizar a investigação] em tempo, mas agora não.” Justificação? O MP “está no terreno”, realça, embora a investigação, conduzida pelo DIAP de Coimbra, já esteja fechada e o segredo de justiça ultrapassado.
“Por ora, não há razão para avançar com uma comissão de inquérito, mas não descartamos num futuro próximo fazê-lo. Não fazia sentido sobrepor-se uma comissão de inquérito às investigações judiciais. Para já, a nossa posição é esta”, insiste João Marques. Já quando questionado sobre a hipótese de outras forças formularem a proposta e de o PSD vir apenas a dar-lhe luz verde, o também vereador pedroguense lava as mãos de responsabilidades e remete-as para Rui Rio: “Não sei dizer, isso caberá à direção do grupo parlamentar.”
A VISÃO tentou ouvir a direção da bancada social-democrata, mas não obteve qualquer resposta até à hora de publicação desta notícia.
“Belíssima oportunidade para o PSD fazer oposição”
O primeiro subscritor da petição, Miguel Figueiredo, advoga que a comissão de inquérito “vale a pena pela mesma razão que na altura [2018] valia”. “Uma coisa”, a investigação judicial, diz, “não invalida a outra”, a averiguação na Assembleia da República.
“Nós temos um problema sistémico e sistemático”, continua, que é a “aparente máquina de corrupção instalada”, maleita essa que, acrescenta Miguel Figueiredo, “tem de ser combatida em todas as frentes”, nomeadamente na arena parlamentar para que sejam apuradas “responsabilidades políticas”. Isto porque, vinca o coach de executivos, lisboeta, 47 anos, que garante não ter filiação partidária, “houve, no mínimo, negligência ou um grau de incompetência gigantesca” por parte de vários organismos do Estado.
E acredita que a comissão avance? “Tenho alguma esperança de que seja proposta e aprovada, nomeadamente havendo cobertura mediática para que fiquem expostas as posições de todos os partidos. Vão ter de definir se são a favor ou contra, e essa definição vai dizer muito aos portugueses sobre os que são contra ou se abstêm”, atira. Quanto à posição do PSD, é lacónico: “Se acredito ou não vou guardar para mim, mas esta é uma belíssima oportunidade para o PSD fazer algum tipo de oposição ao PS.”
Por sua vez, a recém-eleita presidente da Associação de Vítimas dos Incêndios de Pedrógão Grande, Dina Duarte, defende que “faz todo o sentido” avançar com o inquérito no hemiciclo, para que se “apure tudo até às últimas consequências”. “Quanto mais luz se fizer sobre este imbróglio maior será a confiança e segurança de qualquer português de que, no futuro, quando for confrontado com uma tragédia, os seus donativos sejam aplicados nos fins para os quais fizeram a sua doação”, observa.
Sem querer partidarizar a questão, assegura acreditar “que haja pessoas com boa vontade” nas várias bancadas do Parlamento e que isso se traduza na aprovação da CPI, de modo a fazer desvanecer “a nebulosa de informação e contrainformação” que tem chegado à opinião pública.
“Nós não estávamos preparados para a tragédia que aconteceu e para as suas consequências, mas construir futuro é aprender com os erros e não permitir que haja a sensação de que há agentes e instituições imunes ao escrutínio e à prestação de contas”, salienta Dina Duarte, que tomará posse no dia 2 de janeiro, sucedendo a Nádia Piazza. A terminar, deixa ainda um apelo aos deputados: “Deverão os eleitos entender os cidadãos que participaram nesta petição – cidadãos que possivelmente também foram doadores para a causa – e dar seguimento a este legítimo ato de cidadania.”