Ficou famosa, como rábula, a estratégia de Paulo Futre para a presidência do Sporting: bastava contratar o melhor jogador chinês da atualidade, e chegariam charters de adeptos vindos do mais populoso país do mundo. Não se pode ignorar os cerca de 1,4 mil milhões de chineses e o potencial cultural da China, mas por vezes parece mesmo que se ignora. Só assim se explica que tenha demorado tanto tempo a estrear-se, em Portugal, um filme de Zhang Lu, um dos mais destacados realizadores chineses do momento.
O primeiro elemento surpreendente, em A Torre sem Sombra, talvez seja mesmo a ausência de traços exóticos, ou seja: muitas vezes, procuram-se nos filmes asiáticos, incluindo os japoneses e os coreanos, traços reveladores de uma cultura misteriosa, diferente e estranha para os ocidentais. O que vemos em A Torre sem Sombra é uma China relativamente ocidentalizada, longe do folclore de alguns clássicos, em que a vivência urbana deixa todo o espaço para se abordar o indivíduo e as suas teias relacionais.
A Torre sem Sombra é, em parte, um filme de inação, que abre janelas para o interior das personagens, de uma forma facilmente universal, com destaque para as emoções. Centra-se em Gu, um poeta frustrado que se converteu em crítico gastronómico, recém-divorciado e de uma delicadeza bloqueadora, numa encruzilhada entre passado e futuro, entre o reencontro com o pai e a paixão por uma desconcertante rapariga mais nova.
Para reflexão, ficam temas básicos da condição humana, como o envelhecimento, a solidão, a busca da própria identidade, os momentos imponderáveis. A China em pano de fundo não é demasiado tradicionalista, tão-pouco libertária; é feita à roda de uma classe intelectual, que pertence a uma burguesia emergente, quase à moda europeia.
Há partes do filme de clara inspiração autobiográfica. O realizador, que viveu também na Coreia do Sul, percorre locais da sua vida e trata de minorias, como tem feito ao longo da carreira, e também mostra o interesse pelas línguas, não fosse ele um professor universitário de Literatura. A torre sem sombra, que existe mesmo no centro de Pequim, é por si só uma alegoria poética de um mundo ofuscado pela luz.
A Torre sem Sombra > De Zhang Lu, com Xin Baiqing, Huang Yao, Tian Zhuangzhuang > 144 min