Mais de duas décadas após a última criação conjunta, João Brites e Olga Roriz pegam numa das mais importantes obras literárias mundiais e transformam-na num espetáculo duro e belo, construído em cima de histórias salvadoras.
Quase podemos dizer que 1001 Noites – Irmã Palestina é uma espécie de matriosca, donde saltam histórias dentro de histórias, que se vão encaixando e completando. O resultado é uma intrépida viagem guiada por Xerazade, a mulher do rei Xariar, que, para salvar a própria vida – e a do seu povo –, lhe conta uma história maravilhosa, noite após noite, mantendo-o curioso e mantendo-se viva.
Durante uma hora e meia, os contos de 1001 Noites transportam-nos para o Médio Oriente de há uns séculos, mas, tendo em conta o momento que vivemos, é inevitável que as transportemos para a atualidade. E a atualidade está em cima do palco, na presença de Maria Dally, 32 anos, bailarina palestiniana, originária de Kfar Yasif, uma vila situada no Norte de Israel, para onde regressará após a colaboração com o Teatro O Bando.
Maria foi convidada para interpretar Doniazade, a irmã de Xerazade, a quem ajuda a saciar a fome de matança de Xariar, através das histórias. Emocionada, confessa à VISÃO: “É muito importante, para mim, participar neste espetáculo, pois contar histórias é uma maneira de o meu povo se manter vivo.”
Uma curiosidade: a não ser que o espectador saiba árabe, não entenderá uma palavra do que Maria diz em palco, porque as suas falas não são acompanhadas de legendas. “Penso que essa é uma das questões mais bonitas deste espetáculo”, refere a coreógrafa Olga Roriz. “Sente-se uma angústia naquela mulher, que se soma à angústia de não a entendermos.”
Para João Brites, diretor d’O Bando, ao não entendermos as suas palavras, “o pensamento torna-se mais versátil e a sensibilidade, mais aberta”. Maria, que também não percebe o português dos colegas, vai mais longe: “Isto só prova que, mesmo sem entendermos as palavras, nos podemos ligar uns aos outros. Somos todos humanos, estamos unidos.”
Além de Maria Dally, o elenco conta com os atores Fabian Bravo, Nicolas Brites e Rita Brito e os bailarinos António Bollaño, Marta Lobato Faria, Maria Fonseca e Yonel Serrano – acompanhados por 30 músicos da Banda Sinfónica Portuguesa que interpretam a música original de Jorge Salgueiro e Fábio Marques.
Num jogo poético de movimento e palavra, todos se desdobram em várias personagens, e não é tarefa fácil para o espectador adivinhar quem são os bailarinos e quem são os atores. Para chegar a este ponto, admite Olga Roriz, “tiveram de trabalhar muito!”
Levantados do chão
Não nos deixemos cair em ideias feitas, induzidas pelo título da peça: este não é um trabalho panfletário nem pretende passar “mensagens”, garante Olga Roriz. “Do que eu gosto é de pensar em algo e levantá-lo do chão, de forma que as pessoas fiquem mais alerta, possam pensar e sentir de outra maneira. Essa é uma responsabilidade do artista: fazer o público pensar e dar-lhe espaço para poder interpretá-lo e imaginá-lo de outra maneira.”
João Brites admite que a escolha do título lhe confere “uma responsabilidade acrescentada”, mas sublinha que “a arte serve para despertar sensações e sensibilidades, não é apenas literal.” E realça: “O que nos move é sermos interventivos na sociedade à nossa maneira. E sermos políticos é isso: é fazermos espetáculos que interfiram com as pessoas e criem memória.”
1001 Noites – Irmã Palestina > Teatro São Luiz, Lisboa > 30 mai-2 jun, qui-dom > €12 a €15 > Cineteatro São João, Palmela > 7-16 jun > Festival de Teatro de Almada > 6 jul