Numa tela gigante, o autorretrato de Agnès Varda (1928-2019), tirado, em 1962, frente a uma pintura de Gentile Bellini, ocupa toda a parede direita à entrada da Casa de Cinema Manoel de Oliveira (CCMO). Serve como preâmbulo da exposição Luz e Sombra, acabada de inaugurar e que ali permanecerá até janeiro de 2023, da cineasta belga radicada em França, pioneira do novo cinema francês, fotógrafa e artista que, por isso, afirmava ter tido três vidas. A única fotografia aqui exposta observar-se-á mais adiante: a Pied de Nez, autorretrato da realizadora (já numa idade avançada) a fazer caretas à Varda mais nova, diante da mesma pintura do pintor italiano.

Esta mostra que integra a Temporada Portugal-França, apresenta “uma visão ampla do seu trabalho”, a forma como “a realizadora se foi reinventando” e o “modo como a sua produção artística se desenvolveu em diálogo com a sua obra cinematográfica”, resume o curador e diretor da CCMO, António Preto, sobre a cineasta falecida em 2019, aos 90 anos. Se os mais de 50 filmes realizados por Varda, entre documentário, ficção, curta-metragem, e séries para televisão (boa parte deles incluídos numa retrospetiva que vai acontecer a partir de setembro) têm uma presença subliminar na exposição, as peças centrais são, no entanto, duas instalações: Une Cabane de Cinéma: La Serre du Bonheur (Uma Cabana de Cinema: A Estufa da Felicidade, 2018) e Patatutopia (2003).

Na primeira, uma cabana-estufa, onde crescem girassóis a remeterem para o filme Le Bonheur (As Duas Faces da Felicidade, 1965), do qual se verão excertos, foi totalmente revestida com os 2 500 metros da película 35 mm do filme, como se fosse “uma reciclagem da película original que, com o advento do digital, se tornou obsoleta.” Através desta instalação, “ela concede uma segunda vida ao filme enquanto narrativa e enquanto material, uma atitude que se inscreve noutra preocupação de Varda acerca da reciclagem e da reutilização, sobretudo depois do filme Os Respigadores e a Respigadora”, aponta António Preto. “E porquê uma cabana? Porque ela diz que constrói abrigos precários, onde ela pode entrar e habitar no cinema de forma literal [os filmes As Praias de Agnès ou Varda para Agnès, são disso exemplo]”.

Já em Patatutopia, três videoprojeções inspiradas nos retábulos de Roger van der Weyden, estreados na Bienal de Veneza em 2003, onde Agnès Varda apareceu vestida de batata, a cineasta reflete sobre a sua própria velhice. O chão da CCMO está, aqui, coberto com 700 quilos de batatas (cheiro incluído) e nesta instalação “é possível ver que, ao mesmo tempo que envelhecem, vão lançando rebentos que são o início de uma nova vida.” Mais: “Ao interessar-se pelas batatas que não correspondem às normas de calibragem [narrativa que remete para o filme Os Respigadores e a Respigadora, 2000], Varda está a pensar sobre a oposição entre normas e margens, em questões de natureza social e de género, e, a partir da sua própria condição, sobre o lugar dos velhos nas sociedades contemporâneas”, explica o curador.
O envelhecimento é apenas uma das coincidências com a obra de Manoel de Oliveira. “À semelhança de Varda, Oliveira também é um cineasta que, a partir de uma determinada altura, vai refletir sobre a velhice, passando pela autorrepresentação”, aponta António Preto. Mas não é a única semelhança: “Ambos levaram ao limite a problematização da forma de documentário. Os dois experimentaram toda uma série de possibilidades que não são canónicas.” Por isso, numa das salas estará em exibição o encontro entre os dois gigantes do cinema, em 2009, aquando da visita da realizadora belga a Serralves para inaugurar duas instalações na Capela. Nessa altura, com a pequena câmara com a qual a realizadora sempre andava, Agnès filmou um centenário Oliveira a imitar Chaplin (tal como ele tinha feito para o filme Lisbon Story de Wim Wenders), num momento que foi eternizado na série televisiva Agnès de ci de là Varda (2011).
Esta exposição ficará completa com a edição do catálogo onde, pela primeira vez, serão publicadas na íntegra as fotografias tiradas pela cineasta belga em Portugal, na década de 50 do século passado, aquando de uma visita como fotógrafa oficial do Festival de Avignon.
Agnès Varda: Luz e Sombra > Casa do Cinema Manoel de Oliveira > Parque de Serralves, R. Dom João de Castro, 210, Porto > T. 22 615 6500 > até 22 jan 2023, seg-sex 10h-19h, sáb-dom e feriados 10h-20h > €12
Cinco filmes marcantes de Agnès Varda
Numa carreira longa, a realizadora assinou mais de 50 produções, entre documentário e ficção
1.”Duas Horas na Vida de uma Mulher” 1962
O filme acompanha os passos de Cléo, uma cantora famosa que acredita ter cancro e espera pelos resultados dos exames médicos. Deambula pelas ruas de Paris, tentando combater a ansiedade, faz compras, ensaia… Entretanto, conhece Antoine, um soldado de partida para a Argélia. Com Corinne Marchand e Antoine Bourseiller > 90 min
2. “As Duas Faces da Felicidade” 1965
Uma parábola, que desconstrói a relação de um casal e a sua vida aparentemente idílica: François, um jovem carpinteiro casado com Thèrese, de quem tem dois filhos, envolve-se num caso amoroso com Emilie, a atraente funcionária dos correios. O filme recebeu dois prémios no Festival de Cinema de Berlim, incluindo o de Grande Prémio do Júri. Com Jean-Claude Drouot, Claire Drouot e Marie-France Boyer > 80 min
3. “Os Respigadores e a Respigadora” 2000
A partir de um célebre quadro do pintor francês Millet, o filme é um olhar sobre os respigadores da sociedade contemporânea, os que vivem da recuperação de coisas que os outros não querem ou deixam para trás. Varda assume-se ela própria uma respigadora de imagens que os outros não querem captar. Documentário > 78 min
4. “As Praias de Agnès” 2008
Documentário autobiográfico, onde a realizadora regressa às praias da sua infância para contar o seu percurso, usando uma série de materiais e formatos: os primeiros passos como fotógrafa de teatro, a vida com Jacques Demy, a sua militância feminista, as viagens a Cuba, à China e aos EUA, o cinema, a vida em família. Documentário > 110 min
5. “Varda por Agnès” 2019
Último filme realizado pela cineasta, estreado um mês antes da sua morte (em março 2019, Varda tinha então 90 anos) no Festival de Berlim. Um filme-testemunho, um autorretrato onde olha para os seus filmes e fala sobre as suas três vidas: a de fotógrafa, a de realizadora e a de artista. Documentário > 114 min