
Tal como os irmãos Dardenne e Ursula Meier (em Irmã), Valérie Massadian encontra o substrato do seu filme na classe baixa e trabalhadora da Europa desenvolvida. Não o faz em torno de imigrantes ou de comunidades étnicas socialmente discriminadas, na denúncia de uma espécie de “negligência xenófoba” de Estado, mas antes entre os próprios nacionais, loiros, brancos, dando um retrato abrangente de uma pobreza que subsiste independentemente dos fluxos migratórios. Milla, como Rosetta ou Irmã, conta uma história totalmente europeia, sem discurso racial ou margem de fluxos migratórios, sendo apenas um reflexo de uma assimetria social ancestral e avassaladora, que a tão desenvolvida Europa está longe de erradicar.
Milla começa por levar-nos numa maravilhosa aventura juvenil. A primeira parte do filme é um hino ao amor e à liberdade. Milla e Leo partem para a vida, com uma criança por nascer, com uma irresponsabilidade sonhadora própria de quem é jovem. É como se Bonnie e Clyde, em vez de assaltarem bancos, fugissem para ter um filho, o que se revela uma experiência tanto ou mais radical. O confronto com a realidade, dura e crua – de quem se vê forçado a enfrentar a vida – é dado também com um naturalismo quase poético. O mundo não desaba, apenas se reconstrói e se transforma no sorriso e na graça do bebé que nasceu. Milla torna-se assim um poderoso e endiabrado retrato da maternidade adolescente, sem nunca correr risco de moralizar.
É filmado num estilo realista-documental, mas com um extraordinário sentido de câmara, que nunca se apressa e sabe tirar o melhor de cada cena, o que só é possível com um argumento solto, em que o realizador encontra flexibilidade e tempo para deixar que os atores ajudem a construir o filme. No meio desta toada quase documental, Valérie arrisca interlúdios, deliberadamente artificiais, que acabam por dar força e carisma à narrativa, como as leituras do ator para a câmara, em jeito de quem nos interpela, ou o extraordinário momento musical, em que os Ghost Dance apresentam uma visceral e minimalista versão de Add it Up, dos Violent Femmes.
Coproduzido pela portuguesa Terratreme, Milla revela Séverine Jonckeere, uma “não atriz” de uma humanidade e de uma fotogenia deslumbrantes, que contracena com o próprio filho, Ethan. O registo híbrido, entre o documentário e a ficção, valeu-lhe o mais importante prémio do DocLisboa.
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Milla > De Valérie Massadian, com Séverine Jonckeere, Luc Chessel, Ethan Jonckeere > 128 minutos