José Frade
É a sua bagagem – como diz o título – e a sua história que o bailarino e coreógrafo congolês Faustin Linyekula dança em Le Cargo. Em 2014, apresentou a coreografia no Teatro Municipal São Luiz, durante o Festival Alkantara, mas agora leva-a ao bairro da Cova da Moura, na Amadora. E perguntar-lhe porque o faz é encontrar na resposta toda a filosofia de trabalho que tem desenvolvido em Kisangani, no Congo, onde funciona a sua companhia, os Studios Kabako.
Porquê dançar Le Cargo na Cova da Moura?
No trabalho que desenvolvemos em Kisangani uma das questões principais é: “Que lugar pode ter a arte dentro de uma comunidade?”. Virando-nos para a História, percebemos que a arte nunca foi feita para ser fechada em lugares exclusivos para espectadores exclusivos. É essa a questão nos Studios Kabako: como podemos fazer um trabalho desafiador para nós e para os que nos rodeiam? E, ao mesmo tempo, fazer com que isto funcione como parte da vida quotidiana das pessoas. Será sequer possível? Escolhi viver no Congo porque percebi que as histórias importantes para mim não eram as do exílio, e percebi depois que, se a arte é uma forma de imaginarmos possibilidades para nós próprios e para os que estão à nossa volta, então, é nas partes mais frágeis da nossa comunidade que a arte mais é necessária – porque é aí que existe uma necessidade maior dessa imaginação de possibilidades. Por isso, trabalhamos nas zonas mais periféricas de Kisangani, onde as autoridades só aparecem na altura das eleições. Na margem sul do rio Congo, existe um bairro onde vivem 200 mil pessoas e não há sequer água corrente. Fazer projetos artísticos lá tornou-se uma necessidade para mim, porque é ali que precisamos de nos sentar com as pessoas e de dizer “hey, se não temos água, como imaginamos soluções?”. Nesta vinda a Lisboa era importante que esse aspeto do meu trabalho fosse visível, porque é essencial para descrever o que sou. Quis encontrar uma forma de tradução aqui. Mas não queria apenas olhar para o mapa e escolher um lugar. Em junho do ano passado, quando cá estive, conheci a Associação Moinho da Juventude, que funciona há quase 35 anos. E ainda lá estão, a lutar, a tentar. Reconheço-me nisso. É importante que, paralelamente aos teatros prestigiados, o trabalho também exista ali. A arte não pode nunca ser um luxo. Tem que existir em todo o lado, é uma necessidade.
O que encontrou na Cova da Moura, quando lá foi em junho?
Passei algum tempo com os jovens da associação e agora voltei a fazê-lo. Quando fui lá no verão, estava calor e as pessoas estavam na rua e, se fechasse os olhos, podia pensar estar algures em Kinshasa, por exemplo. Vir a Lisboa e ir à Cova da Moura foi como encontrar um pedaço de África aqui, mas não no coração da cidade – na periferia. Existem as metrópoles, o império, e depois as colónias, as periferias. Tenta-se ter as periferias o mais possível longe da vista, mas precisamos do seu input para ter o centro a funcionar. A taxa de desemprego é muito alta ali, veem-se muitos homens jovens sentados pelos cafés, a beber logo de manhã, e as mulheres estão a trabalhar em Lisboa. Consigo ligar-me a isso, a um nível íntimo. Jean Genet dizia qualquer coisa como “as ações mais políticas só fazem sentido se forem íntimas”. Se não, são apenas slogans.
Le Cargo na Cova da Moura será diferente do original que dançou no Teatro São Luiz há dois anos?
Atuar às quatro da tarde num espaço semi-aberto, com a luz do dia, será diferente, e o meu texto será dito em português, não haverá legendas. Cada pessoa virá com a sua própria história, as suas próprias referências e questões, e isso fará a peça muito diferente. Mas é exatamente a mesma peça. Não é por ir para a Cova da Moura que o meu nome muda. Se a minha dança é uma tentativa de lembrar o meu nome e de o dizer, então quer vá à Cova da Moura ou a um teatro como o São Luiz, é exatamente o mesmo nome. As condições à volta disso mudam, mas o ato de dizer o nome mantém-se o mesmo.
Acredita que serão os habitantes da Cova da Moura a vê-lo dançar no domingo ou sobretudo pessoas vindas do centro da cidade?
Penso que haverá pessoas de Lisboa, mas temos estado na Cova da Moura a estabelecer ligações com as pessoas de lá. E se estas forem não será simplesmente para irem ver uma coreografia, mas sim porque me conheceram e querem continuar esta conversa que começámos.
Estão à procura de outros bairros para dançar Le Cargo?
A ideia, com o Teatro Maria Matos e com estudantes de produção da escola de teatro e cinema, é encontrarmos outros bairros onde o possa fazer. Por exemplo, no ano passado fui ao Barreiro, porque o Miguel [Ramalho, bailarino da Companhia Nacional de Bailado, com quem criou o solo I Miguel], vive lá e gostava de dançar ali no bairro dele, com o qual também me identifiquei. O que gosto nesta iniciativa de levar Le Cargo por Lisboa é que não precisa de ser programado como outros projetos.
Le Cargo
Agathe Poupeney
O que o veremos, então, dançar em Le Cargo?
Conto uma história muito simples: a de uma viagem que fiz em 2011, a uma cidade a sul de Kisangani, Obilo. Vivi lá e, quando saí, tinha oito anos. Quase 29 anos depois voltei para ver o que sobrava das minhas memórias de infância. Eram dali as minhas memórias mais antigas de dança. Pensei: “será que as pessoas ainda dançam aquelas danças? E o que posso aprender com isso?” Isto também estava relacionado com os dez anos dos Studios Kabako e com as dúvidas de como continuar, como grupo, a dançar. Nunca tinha feito nenhum solo antes. Até aí, para mim, trabalhar era estar com os outros e não sozinho. Mas depois de dez anos, pensei: “Como me encontro a mim, de novo, para conseguir estar com outros?” De Obilo trouxe este solo. Por isso, lhe chamei Le Cargo. É como a minha bagagem de uma viagem. Vim com cantigas, uma história e, claro, uma dança.
E encontrou-se nas suas memórias?
Com o tempo, os lugares mudam, as pessoas mudam. Aprendi a lição de que temos que construir e imaginar um futuro com o que temos hoje.
Como escolheu as coreografias que vai apresentar em Lisboa, no programa Artista na Cidade?
Quis apresentar o que tem feito a minha companhia nestes 15 anos. Olhei para trás e escolhi as peças que foram degraus importantes para nós e para mim como ser humano, cidadão, artista. Não são necessariamente as mais bem sucedidas, mas são os nossos marcos. Com cada uma delas, houve sempre uma pequena janela que se abriu. É isso que vamos revisitar e partilhar com as pessoas.
Paralelamente, está a trabalhar nalguma coreografia nova em Kisangani?
Não. Na verdade, sinto que não tenho que produzir os chamados “objetos artísticos” para ser um artista. Este ano, tenho um grande projeto, que espero que abra em dezembro, depois da minha última apresentação aqui em Lisboa: um centro de artes na margem sul do rio Congo, naquele bairro negligenciado pelas autoridades. A ideia é ter um centro de artes de bairro que também seja um projeto piloto em torno do tratamento de água. Podermos fornecer água a dez mil pessoas, todos os dias, e, ao mesmo tempo, termos um lugar onde se possa ir ver um filme ou uma performance – mas, acima de tudo, um lugar onde os jovens possam chegar e aprender como contar histórias com os seus corpos, as suas canetas e papeis, as suas máquinas fotográficas… Para mim, essa será a peça principal que produziremos este ano em Kisangani. Só não pode ir em digressão [risos].
Ser um artista é isso também?
Para mim, ser um artista é apenas uma outra forma de ser um cidadão.
Le Cargo > Polidesportivo Cova da Moura > Av. da República, Cova da Moura, Amadora > T. 21 843 8801 > 24 jan, dom 16h > grátis (entrada sujeita à lotação, sem reserva)