É à entrada do prédio que se cruzam os vizinhos. Mas, desta vez, não se ficam pelo “bom-dia” ou “boa tarde” da praxe. “Tem um minuto?”, pergunta um deles logo no início da peça. “Com certeza”, há de responder o outro. “Você é judeu?”, interroga-o, sem aviso. É deste encontro e desta pergunta que nasce O Meu Vizinho É Judeu, comédia do dramaturgo francês Jean-Claude Grumberg, que Beatriz Batarda estreia no Casino Estoril, juntando no palco Bruno Nogueira e Miguel Guilherme. “Eu vi na internet”, dirá o vizinho de cima. “Ah, se foi na internet, então sim, sim”, responde-lhe o vizinho de baixo. “Eu gostava de saber o que é. O que é isso ao certo. Judeu.” O diálogo continua, com desencontros, perplexidades, conflitos, equívocos e alguns entendimentos. Puxando o riso, há de falar-se a sério naquele palco.
Foi a Beatriz Batarda que sugeriu este texto a Bruno Nogueira e Miguel Guilherme. Porque pensou ser o texto certo para os dois atores voltarem a trabalhar juntos?
É um humor muito ao gosto deles. Um humor de situação, que sai da linha do clown e do vaudeville, um humor pelo conflito, mais na tradição inglesa, shakespeariana. A maneira como nasce este humor não é tão assente na figura pública do ator mas no trabalho de ator, que é o que eles gostam. Também gosto muito disso, de textos exigentes do ponto de vista da representação, que estimulem os atores e que eu possa ajudá-los a tirar o melhor deles, essa é a minha pretensão.
Encenar comédia é diferente?
Não é a primeira vez que enceno comédia. A Bizarra Salada era comédia, o Azul Longe nas Colinas, embora fosse um dramalhão, também tinha muitas coisas de comédia. E o Como Queiram é uma comédia… Não me sinto a trabalhar numa coisa que não me seja confortável. Não sou atriz de comédia, mas tenho compreensão da comédia. Para mim, a comédia não está longe da tragédia, está muito perto. Tenho a teoria de que rir é uma maneira diferente de chorar. Gosto do teatro que é feito a pensar num diálogo com público.
Esta é uma comédia que, pelo riso, nos põe a pensar em coisas sérias?
Este espetáculo é muito incisivo e levanta muitas questões que, embora nos estejamos a rir, nos fazem pensar no que está a acontecer no mundo, sobre a aceitação da diferença. É o pretexto para falar sobre um instinto muito primário do ser humano: o de dividir o mundo e as relações entre nós e os outros. O que faz o “nós”? A partir de que momento deixas de ser o outro e passas a fazer parte da minha bolha “nós”? Isso oscila muito, a circunstância pode alterar essa relação com os outros. Na maioria dos casos, o medo condiciona a escolha de onde te queres colocar e o que queres aceitar. Preconceito é medo. Quando temos preconceitos devemos pensar porque os estamos a ter. O espetáculo tem a ver com a eterna questão do que é ser judeu, se ser judeu é uma religião, uma etnia, um povo, uma cultura, se têm país, se têm território… No original, a peça chama-se Pour en finir avec la question juiv: Para acabar definitivamente com a questão judaica. Não é sobre judeus nem sobre religião, mas mais sobre o medo e a maneira como todos nós nos comportamos. Todos caímos na armadilha de agirmos de forma bastante mesquinha e imbecil sem nos apercebermos que o estamos a fazer porque não estamos na sensibilidade do outro. Quando li a peça ainda não estávamos a viver esta situação na Síria e ainda não havia estas fugas em massa, mas comecei a perceber que a peça funciona a muitos níveis. O texto não defende lado nenhum, defende que há conflitos que são mais complicados do que isso, que as coisas não são preto no branco e que há muitas coisas em questão, muitos países envolvidos. Não podemos ter a leviandade de acusar um povo qualquer quando há grandes questões políticas e de interesses económicos por trás. Esta situação que estamos a viver acaba por tornar a peça ainda mais pertinente.
Sai-se da sala mais tolerante?
Acabo todos os dias o ensaio com um sorriso interior, a pensar como somos tão duros connosco próprios. Somos só pessoas, com os mesmos medos, as mesmas necessidades. Somos duros connosco e com os outros. Temos uma obsessão com a perfeição: no trabalho, na imagem, na alimentação, na família… Perdemos muitas vezes a sabedoria de nos aceitarmos. Somos só mais um neste grande universo. Isto deveria ser tudo tão mais simples.
Qual é a melhor piada da peça?
O personagem do Miguel, quando estão a discutir anti-semitismo, diz: “Eu não tenho nada contra os anti-semitas, a única coisa que eu poderia talvez eventualmente cair na tentação de fazer algum reparo seria precisamente o facto de… não gostarem de judeus”.
O Meu Vizinho É Judeu > De Jean-Claude Grumberg > Enc: Beatriz Batarda > Casino Estoril > Av. Dr. Stanley Ho, Estoril > T. 21 466 7700 > 25 nov-28 fev, qui-sáb 21h30, dom 17h > €16