Quando nos fazemos à estrada, diferentes impulsos carregam no acelerador. Nesta viagem, cedemos a (quase) todos. O propósito era experimentar um dos roteiros lançados pelo Turismo Centro de Portugal, em jeito de road trip, neste caso pela região de Viseu-Dão-Lafões, com paragens em vilas, cidades e aldeias, restaurantes tradicionais e outros bafejados por Estrelas Michelin, monumentos, museus e uma ou outra surpresa pelo caminho. Indo eu, indo eu, que os três dias pelo asfalto são poucos para o tanto que há para conhecer.
Começámos por Vouzela, atraídos pela fama do pastel, um maravilhoso concentrado de massa fina e estaladiça, com doce de ovos. A receita, vinda do Convento de Santa Clara, é mantida por apenas três produtores que abastecem as pastelarias da vila: Vouzela Pastéis, Fernando Cardoso e Casa Castanheira, aqueles que provámos, numa sala do mercado municipal.
A gula é terrível e já nos fez precipitar na descrição da visita ao pequeno centro histórico, que incluiu passeio ao longo do rio Zela (afluente do Vouga), com a antiga e imponente ponte férrea para travessia do Vouguinha no horizonte, admiração das casas brasonadas daquela que foi a sede concelhia de Lafões, cruzamento da ponte romana, além de uma passagem pela capela de São Frei Gil e pelo fronteiro museu municipal.
Seguimos, então, para o Caramulo, ainda que o dia sombrio não nos permitisse vislumbrar as paisagens durante a subida à serra. A visita ao museu pensado pelos irmãos Abel e João Lacerda – filhos do fundador da antiga estância sanatorial – merece uma paragem. A sua construção, numa altura em que o tratamento tubercular estava em declínio (após o desenvolvimento da vacina), pretendia continuar a atrair turistas para a vila. “Abel era um apaixonado por artes plásticas e contactou artistas e colecionadores para oferecerem obras… morreu em 1957, antes de o edifício ficar concluído, em 1959, mas conseguiu reunir uma coleção significativa de obras, da arte antiga aos modernistas, como Picasso e Salvador Dalí”, conta Elisabete Rodrigues, a nossa guia. Exposta no primeiro piso do edifício, esteve durante décadas parada no tempo, mas o século XXI trouxe uma dinâmica assinalável, inclusive com convites a artistas contemporâneos para dialogarem com a exposição permanente. As mostras temporárias também têm sido recorrentes, renovando os motivos de visita.
Mas o Museu do Caramulo é conhecido, sobretudo, pela coleção de automóveis, com mais de 100 veículos, impulsionada pelo gosto por carros antigos de João Lacerda. Exposta, atualmente, num edifício adjacente, guarda preciosidades como o Mercedes-Benz 770K Grosse, comprado para proteger Salazar, após um atentado à bomba em 1937, o Ferrari 166 MM Barchetta Touring, de 1950, um Alba, de 1952, um dos poucos automóveis portugueses construídos para competição, ou o Bugatti Type 35B Grand Prix, de 1932. Todos continuam em condições de circulação e, nas visitas de grupo, é habitual o sorteio de uma viagem de carro, seguindo o traçado da mítica Rampa do Caramulo. Tratando-se de clássicos, não garantimos velocidades vertiginosas.
Na descida da serra, já com o relógio a apontar para o almoço, partimos em direção a Tonda, freguesia de Tondela, onde está o restaurante 3 Pipos, um dos melhores representantes da gastronomia regional da Beira Alta. O ambiente acolhedor da casa, com as paredes de granito, as vigas de madeira no teto ou as alfaias agrícolas a servirem de decoração, é ultrapassado pelas iguarias postas na mesa. Desde as inúmeras entradas (favinhas, moelas, pataniscas de bacalhau, enchidos, salada de polvo…) a pratos como o bacalhau com broa ou o arroz de costelas em vinho e alhos, tudo é cozinhado com alma.
Ainda mal refeitos da barrigada, seguimos para Cabanas de Viriato, para uma visita à Casa do Passal, onde viveu Aristides de Sousa Mendes. “Enquanto esteve no consulado de Bordéus, durante a II Guerra Mundial, passou vistos que salvaram cerca de 30 mil vidas… algumas dessas famílias foram acolhidas aqui e acarinhadas pelos populares, recordando esse período como um dos mais felizes das suas vidas”, conta Paula Telles, técnica de turismo da câmara de Carregal do Sal.
Forçado pelo antigo regime a deixar a carreira diplomática, Aristides morreu neste solar, em 1954, na mais profunda miséria. Apesar de reerguidos as paredes e o telhado, entre 2014 e 2015, o projeto de ali construir um centro de memória sobre o cônsul ainda não avançou. O interior do edifício está em ruínas e não honra o passado de Aristides. “Continuamos a receber muitos excursionistas, que fazem questão de passar pelo cemitério onde está o seu jazigo, mas é redutor falar só em turismo judaico”, sublinha a guia. Em março, o executivo municipal de Carregal do Sal anunciou a aprovação do projeto de requalificação e de musealização da Casa do Passal. Esperemos o desenvolvimento do processo.
Entretanto, não saia de Cabanas de Viriato sem procurar pela D. Palmira Pina. Siga o delicioso aroma a canela dos bolos tortos confecionados pela septuagenária, uma receita feita “de olhos fechados; a balança são as minhas mãos”. Há sempre fornadas a lenha às quintas à tarde e aos domingos de manhã, vendidas à porta de sua casa ou na feira semanal, à sexta-feira. Além dos bolos originais, criou ainda uns recheados com bacalhau, queijo e enchidos ou alheira.
De outros apetites, tomamos conta na Casa de Santar, já no concelho de Nelas, a última paragem desta etapa. Começamos por visitar a adega histórica, desde 2006 nas mãos da Global Wines. “A Casa de Santar começou a produzir vinhos em 1790, e esta herança é uma mais-valia”, diz Ana Paula Teixeira, a responsável pelo enoturismo do grupo. As visitas guiadas incluem ainda informações sobre a vila de Santar, com uma história que remonta ao século XII, e uma passagem pelas vinhas, onde nos falam das diferentes castas da região. O jantar, no restaurante Paço dos Cunhas, num edifício seiscentista cuja recuperação conjuga a arquitetura moderna com o estilo clássico, revelou outras surpresas. À frente da cozinha, está o chefe Henrique Sampaio Ferreira, defensor dos produtos autóctones, ali transformados com mestria. Entre os pratos provados, as vieiras coradas, com puré de cenoura e baunilha e creme de bergamota, a cevada de carabineiro, robalo e espuma de limão, a vitelinha de leite de Lafões, com puré de batata trufado, míscaros e molho de vinho tinto… uma refeição faustosa, para terminar bem o dia.
À DESCOBERTA DE “VISSAIUM”
A segunda etapa começou por uma caminhada pelo centro histórico de Viseu, onde dormimos, no central Hotel Avenida, ao lado do Rossio, uma das praças principais, embelezada pelo painel de azulejos com vivências e tradições da cidade. Bem perto, estão a Igreja da Ordem Terceira de São Francisco, do século XVIII, e o Parque Aquilino Ribeiro, onde encontramos os primeiros exemplares do roteiro de street art, de Glam. “Existe desde 2015 e pretende cativar um público mais jovem… muitas obras foram feitas durante o festival Tons da Primavera”, explica Pedro Ferreira, o técnico de turismo. Draw, Hazul, Lula Goce, Kruella d’Enfer, Mariana, a Miserável, Contra ou Daniel Eime estão entre os artistas que já deixaram 44 obras espalhadas pela cidade e pelo concelho.
Para perceber melhor os 2500 anos de Vissaium (nome de Viseu na época pré-romana e romana), há que rumar ao centro museológico, criado em 2018, junto da antiga judiaria, antecipando aquele que será o futuro Museu de História da Cidade de Viseu. Ainda houve tempo para uma passagem rápida pelo Adro da Sé, à volta do qual estão, além da catedral do século XII (sujeita a várias remodelações), o Museu Nacional Grão Vasco, a Igreja de N. Sra da Misericórdia e o Museu-Tesouro da Sé. Para almoçar, estava reservada mesa no Cortiço, casa antiga e afamada, com pratos mantidos há mais de 50 anos, como as feijocas com todos à maneira da criada do sr. Abade ou a vitelinha na púcara à lavrador de Cavernães.
Estava na hora de voltar à estrada e de fazer meia dúzia de quilómetros para conhecer a Quinta de Lemos, em Silgueiros, um projeto que, em poucos anos, conseguiu impor-se pelos vinhos e pela alta gastronomia do restaurante Mesa de Lemos – em 2019, conquistou uma Estrela Michelin, com o chefe de cozinha Diogo Rocha aos comandos. Desta vez, ficámos pela visita guiada à adega, cujos primeiros vinhos, feitos a partir de castas autóctones do Dão, foram lançados em 2010, com o nome das mulheres (Georgina, Santana, Geraldine, Louise…) da família de Celso Lemos, o empresário do ramo têxtil que quis diversificar os investimentos na região onde nasceu.
RESGATAR TRADIÇÕES
No último dia, um vislumbre de ruralidade. Primeiro, na Queijaria Vale da Estrela, em Mangualde, criada por Jorge Coelho, em 2015, homenageando as suas origens (o pai tinha sido afinador de queijos). “Não havia prestígio nem dignidade na função do pastor e da queijeira”, aponta Luís Ferreira, o gerente. Conseguiram reforçar a cadeia de valor e, em pouco tempo, a fábrica tornou-se a maior produtora de queijos serra da Estrela. Das janelas da sala de visitas, enquanto fazemos uma prova de queijos, acompanhamos todo o processo artesanal.
Atravessamos, de seguida, a belíssima serra de Montemuro para alcançar Campo Benfeito, a aldeia de Castro Daire, onde se refugia a Cooperativa Capuchinhas. Um projeto com 33 anos, que permitiu fixar um grupo de mulheres jovens naquele território, recuperar técnicas artesanais e valorizar matérias-primas, como o burel, a lã e o linho. “No início, fazíamos coisas muito tradicionais, mas, com a ajuda de estilistas [Helena Cardoso e, atualmente, Paula Caria], evoluímos e criamos peças modernas e atuais de vestuário”, contam, enquanto trabalham nos teares centenários. Todos os anos, lançam duas (belíssimas) coleções e, além de venderem na antiga escola onde estão sediadas, têm uma loja online.
A poucos quilómetros, a Associação Etnográfica e Social do Montemuro procurou outras formas de valorizar a região. Criou uma cooperativa de artesãos (com loja), museu etnográfico, mas tornou-se conhecida pela Cozinha Típica do Mezio, onde se servem especialidades, como o arroz de feijão com salpicão ou o cabrito assado no forno de lenha. “Fizemos um levantamento das tradições, e estes eram pratos que os antigos cozinhavam em dias festivos”, conta António Magalhães, o presidente. Um consolo para o estômago, como tivemos oportunidade de comprovar. Terminada a viagem, pequena para as inúmeras paragens, não há dúvida de que… soube a tanto.
MORADAS E CONTACTOS:
Museu do Caramulo
R. Jean Lurçat, 42, Caramulo > T. 232 861 270 > ter-dom 10h-13h e 14h-18h >
Casa do Passal
Av. do Cristo-Rei, 23, Cabanas de Viriato, Carregal do Sal > visitas guiadas gratuitas, marcação no Posto de Turismo de Carregal do Sal > T. 232 960 404 ou no museu@carregal-digital.pt
Casa de Santar
Av. Viscondessa de Taveiro (EN 231-2), Santar, Nelas > T. 232 945 452 > visitas seg-sáb 10h-12h30 e 14h-18h > visitas €5 (marcação prévia) > restaurante Paço dos Cunhas ter-qui 12h-15h, sex-sáb 12h-15h, 19h-22h, dom 12h-16h
Quinta de Lemos
Passos de Silgueiros, Silgueiros > T. 232 951 748 > seg-sex 9h-17h, sáb 13h30-19h > visitas gratuitas à adega > restaurante Mesa de Lemos > T. 96 115 8503 > qua-qui 20h-23h, sex-sáb 12h-15h, 20h-23h, dom 12h-15h > menus €80 a €105
Casa da Ínsua
Nesta quinta, além da produção vinícola e de queijo da serra, está o único Parador em Portugal (pertence à rede espanhola desde 2010), no palacete barroco do século XVIII, rodeado por belos jardins. São feitas visitas guiadas e experiências, como jantares vínicos. Ínsua, Penalva do Castelo > T. 232 640 110 > hotel encerrado até final de maio
Restaurante 3 Pipos
R. de Santo Amaro, 966, Tonda, Tondela > T. 232 816 851 > ter-sáb 12h-15h, 19h-22h, dom 12h-15h
Restaurante Cortiço
R. Augusto Hilário, 45, Viseu > T. 232 416 127 > ter-sáb 12h-15h, 19h-22h, dom 12h-15h
Queijaria Vale da Estrela
EN 16, 43, São Cosmado, Mangualde > T. 232 247 644 > visitas de grupo (mínimo 10 pessoas) €12, queijos €22 (1 kg)
Capuchinhas
Campo Benfeito, Gosende, Castro Daire > T. 254 689 160 > seg-sex 9h-12h30, 13h30-18h, sáb-dom por marcação
Associação Etnográfica e Social do Montemuro
Além da loja e do museu, tem também um restaurante com pratos típicos do Mezio.
Lg. Dolores de Jesus, Eido, Mezio > T. 254 689 265 > Cozinha Típica do Mezio > seg-dom 12h-15h, 18h30-22h
Avenida Boutique Hotel
Av. Alberto Sampaio, 1, Viseu > T. 232 423 432 > a partir de €67