Solitário, Jorge Rosa, 54 anos, não passa uma manhã sem ligar a coluna portátil para, enquanto se arranja e toma o pequeno-almoço, ouvir os seus podcasts preferidos. Desde que descarregou, no telemóvel, a aplicação Podcast Addict – sem subscrição, com acesso gratuito aos áudios, e sem precisar de ligação à internet para os ouvir –, que a sua companhia matinal passou a ser a ironia de Bruno Nogueira no Tubo de Ensaio, o olhar acutilante de Joana Marques em Extremamente Desagradável, os insólitos de Nuno Markl n’O Homem que Mordeu o Cão ou o disparate inteligente de Bruno Aleixo. Tudo em português. “São diários e curtinhos. Melhora o nosso humor e ficamos com piadas para dizer ao longo do dia”, explica Jorge, que através dos podcasts semanais de análise política como Governo Sombra ou Eixo do Mal, complementa o que ouviu nas notícias.
Já os horários rotativos de Marco Marques, 35 anos, a trabalhar em artes gráficas, permitem-lhe ouvir a sua seleção de podcasts, na sua maioria estrangeiros, ao longo do dia. Com conta no Spotify, serviço de streaming de som e vídeo lançado em 2008, Marco paga para ouvir The Joe Rogan Experience, comediante norte-americano a falar da atualidade com um convidado mediático; WTF, com stand–up ou convidados que Marc Maron recebe na garagem; o australiano Jim Jefferies, numa espécie de best of dos seus espetáculos humorísticos; Monday Morning, crítica social semanal de Bill Burr. “Além de fazerem companhia, são uma maneira de estar informado e ter uma perspetiva diferente da que é dada pelos média tradicionais”, justifica.
Estudante universitário, é nos transportes públicos que Tiago Serra Cunha, 21 anos, mais recorre a esta companhia digital de auriculares postos. Prefere a entrevista ou a conversa entre duas ou mais pessoas, mas ultimamente tem dado alguma atenção ao género informativo (Fumaça, P24 do Público, Today, Explained da Vox Media, The Daily do New York Times), às rubricas de comédia saídas de estações de rádio (Extremamente Desagradável, Tubo de Ensaio), às análises musicais e culturais (Switched on Pop e o português Brandos Costumes), à tecnologia (Wired Podcast) e à cultura geral (Making Sense, 99% Invisible). Dois simples fatores justificam a atratividade deste formato: a portabilidade e a variedade. “O facto de ter muito conteúdo de nicho – algo que não vemos nos meios de comunicação tradicionais de forma tão expansiva – permite que nos possamos identificar muito mais e ter uma grande margem de escolha do que queremos e podemos ouvir.”
Produções caseiras
Há três anos, quando o podcast de investigação norte-americano Serial se popularizou internacionalmente, “começámos a ir atrás do que se fazia lá fora e os podcasts tornaram-se algo fácil de fazer. Não é preciso grandes equipamentos ou dinheiro e existe um ‘à vontade’ no que toca ao tema e ao formato”, explica Rúben Martins, 24 anos, investigador na área dos podcasts, com uma tese de mestrado dedicada a este formato áudio, e jornalista do Público. Depois do boom de podcasts nacionais, o panorama agora estabilizou e há quase tantos programas a desaparecer como a surgir. “A motivação inicial perde-se. As pessoas reparam que a produção afinal dá trabalho ou como a monetização é pouca ou praticamente inexistente, o autor não se sente recompensado e acaba por desistir”, analisa o investigador.
Rodrigo Nogueira, autor de Até Tenho Amigos Que São conhece todas essas dificuldades: “Às vezes tenho um amigo que me ajuda no som, mas de resto faço tudo sozinho: convites, marcações, edição, gravação, render, upload… É muito trabalho.” Mas Rodrigo não o trocaria por nada, agrada-lhe que não exista a administração de uma rádio a pôr limites.
Atualmente, existem cerca de 300 podcasts independentes (sem estarem associados a estações de rádio) ativos em Portugal e é neste meio que existe mais volatilidade. “É praticamente impossível viver apenas do podcast. As marcas já estão a apostar neste formato, mas optam sempre pelas personalidades mediáticas”, nota Rúben Martins.
Afinal há “fair-play” no futebol
O crescimento dos podcasts tem sido exponencial e o aparecimento do Festival Podes, em novembro passado, veio ajudar a trajetória ascendente deste novo meio de comunicação. A culpa é de Márcio Barcelos, 37 anos, que, há dois anos, curioso por perceber o panorama nacional dos áudios criou a Portcast, um agregador engendrado pelos próprios autores de podcasts. Na conta do Twitter todos partilhavam os outros podcasts que seguiam e assim gerou uma comunidade. Designer de formação e a trabalhar numa instituição europeia, costuma “partir pedra” no seu podcast intitulado Sobretudo. Classificado na categoria Educação, trata de curiosidades, com temas pouco exploradas e pouco conhecidos, com pessoas entendidas na matéria.
No fim de 2018, Márcio selecionou uma dezena de bons episódios representativos do que se andava a fazer, como Ask.tm do Pedro Teixeira da Mota, o podcast independente mais ouvido de Portugal. Na plataforma SoundCloud cada episódio tem entre 20 a 40 mil plays e a conta é seguida por 20,6 mil pessoas. O passado do jovem humorista, ligado também à stand-up comedy, foi determinante para alavancar o projeto que se alimenta das perguntas dos ouvintes. Já o Matraquilhos sobre futebol, transversal a todos os clubes, tem uma abordagem diferente da análise que é feita nos programas televisivos. Grandes clubes como o Benfica, o Porto e o Sporting também já têm um podcast próprio, embora não sejam oficiais, feitos por comunidades de adeptos e não pelas claques. Na gala de entrega dos prémios do Festival Podes, primeiro juntaram-se para um painel de debate e depois organizaram um jantar conjunto – fairplay maior não existe. Mas, nessa noite, o grande vencedor foi o Fumaça. Com 300 mil ouvintes, em 2019, depois de terem quintuplicado os contribuidores, foi eleito o podcast do ano, e também recebeu o troféu na categoria Entrevista.
A importância de um som
É enquanto está a cozinhar que Pedro Miguel Santos costuma ouvir podcasts. Prefere os britânicos e os norte-americanos de teor jornalístico, informativo e sobre a atualidade, como Democracy Now!, de Amy Goodman; The Daily do jornal The New York Times, bem como Caliphate, uma série de Rukmini Callimachi sobre o Daesh e a queda de Mosul; Today In Focus do jornal britânico The Guardian; This American Life, programa semanal de rádio.
Foi depois de ter sido entrevistado, em 2017, para o Fumaça que Pedro Miguel Santos ficou cheio de vontade de fazer parte do “projeto de informação online”. “Ainda ninguém tinha feito uma investigação tão bem feita sobre o meu trabalho no grupo ambientalista Geota. Com trabalho de casa estudado e contraponto. Foi importante e chamou-me à atenção”, lembra o atual diretor do podcast. O É Apenas Fumaça, assim começou por se chamar o “projeto de jornalismo independente, progressista e dissidente”, arrancou, há quatro anos, com entrevistas longas a Daniel Oliveira, Rui Tavares e Pacheco Pereira. Às entrevistas acrescentaram a realização de séries, porque “há assuntos que precisam de profundidade”. Começaram com uma primeira reportagem sobre a greve de imigrantes no SEF no Algarve, mas seguiram-se muitas mais centradas em questões fundamentais dos Direitos Humanos. Com a série Palestina, Histórias de Um País Ocupado, os fundadores Ricardo Esteves Ribeiro e Maria Almeida receberam o prémio Gazeta Revelação 2018, atribuído pelo Clube de Jornalistas. Todas as reportagens áudio têm uma versão transcrita e a banda sonora dos episódios é música original, composta e gravada por Bernardo Afonso, membro da equipa. “Fazemos várias edições da mesma reportagem”, explica Pedro Miguel Santos. “No áudio, a história conta-se tentando criar vários picos de intensidade, por isso é importante construir a banda sonora, acrescenta tensão.”
As entrevistas não são editadas, os ouvintes escutam desde o momento em que se liga o microfone até quando o desligam – tudo vai para o ar. Desse realismo resultam sons enriquecedores, como o entrevistado a fumar, as hesitações, uma campainha a tocar ou um simples esgar. Para Pedro Miguel Santos, “o podcast é só uma maneira mais fácil e mais democrática de chegar às pessoas. Temos o melhor de dois mundos: sem limites de tempo, nem de espaço. Era interessante que existissem outros parecidos connosco para podermos partilhar dúvidas.”
Conversas intimistas
Noventa e cinco por cento da audiência de N’A Caravana são mulheres, com a maior faixa entre os 25 e os 34 anos (41%). Um pouco na senda do que tem sido o percurso de Rita Ferro Alvim, antiga jornalista que primeiro publicou o livro Socorro! Sou Mãe, que há oito anos resultou no blogue com o mesmo nome e assim agarrou uma legião de seguidoras. Há quatro meses arrancou o podcast N’A Caravana, algo que tinha em mente, muito por culpa do marido, um fervoroso ouvinte deste género de áudios. Rita começou também a ouvir e a interessar-se por projetos como o de Mikaela Övén sobre parentalidade positiva, mindfulness, famílias inspiradores, mães inspiradores. Como não queria falar sozinha, decidiu convidar pessoas, na sua maioria mulheres, mais mediáticas ou completamente anónimas, desde que tenham histórias inspiradoras. Hoje, ocupa os lugares cimeiros na lista de popularidade da Apple na categoria Crianças & Família. Para isso, contam os 97 800 downloads de áudios. “Sem qualquer tipo de sexismo tenho entrevistado mais mulheres para me manter na minha zona de conforto. É uma conversa de café entre amigas e as mulheres são mais tagarelas”, explica Rita Ferro Alvim. São diálogos intimistas, publicados sempre aos domingos à tarde, com mais visualizações no canal do YouTube (cerca de 15 mil views por episódio), do que nas aplicações de podcast, a comprovar ainda o poder da imagem.
Conjugar a escrita de textos e os programas de rádio e de televisão com a gravação dos episódios de Perguntar Não Ofende não é fácil, mas Daniel Oliveira corre por gosto. Quase há dois anos que o comentador político abriu os microfones para o podcast semanal que “é mais do que uma entrevista, menos do que um debate, é uma conversa com contraditório em que, no fim, é mesmo a opinião do convidado que interessa”.
O podcast conta, atualmente, com cerca de 300 patreons (ouvintes que apoiam financeiramente através da plataforma Patreon), “mas está muito longe de ser rentável”. “É uma motivação para mim saber que, através wdo podcast, estou a levar a política a um público mais jovem e bastante diferente daquele que me acompanha nas outras plataformas.”
Ouvir para rir
Cada vez mais, ao longo dia, Joana Marques vai recebendo comentários sobre Extremamente Desagradável, rubrica diária do programa da manhã da Rádio Renascença. “Programas de rádio há muitos, mas um como o nosso, com os sons das notícias ou de outros programas editados previamente, acho que ainda não existia nada assim. Por isso, decidimos apostar e está a correr bem”, enaltece. Para a humorista e guionista, os programas de rádio só têm a ganhar com a distribuição no online. Há quem ouça, religiosamente, no carro, quem prefira o Facebook (até pela componente de vídeo) e quem descarregue para ouvir mais tarde. Joana Marques é consumidora do formato, desde conversa entre amigos, entrevista, até uma pessoa a falar sozinha. “É um bocado a lógica do YouTube, só que com áudio. Há um atendimento às preferências de quem quer que seja.”
Inconfundível, a voz de João Moreira é, para muitos, motivo suficiente para soltar boas gargalhadas. Há 11 anos que o cocriador da personagem Bruno Aleixo assina Aleixo FM, programa da Antena 3 transmitido semanalmente pela rádio e publicado logo nas plataformas digitais. Para o humorista, esta transição entre meios só trouxe vantagens. “Sei de muita gente que não consegue ouvir na rádio e vai depois ao Spotify ou ao iTunes.” Quanto a pegar nas personagens e criar um podcast independente, João Moreira diz: “Por enquanto, a rádio é um porto seguro, que em nada invalida o nosso trabalho. A verdade é que ter o Aleixo FM associado à Antena 3 dá-nos outra seriedade e desempenha um grande papel na validação e divulgação do podcast.”
E se, há 40 anos, a canção Vídeo Killed the Radio Star vaticinava o pior dos cenários para as transmissões em frequência modulada, nos tempos que correm os podcasts são o aliado perfeito. “Não é um meio de massas, não estamos todos ao mesmo tempo a ouvir o mesmo. Isso permite a cada podcast criar uma identidade própria, feito para nichos de milhares de pessoas, não pensando como os média tradicionais, que são reféns de audiências”, explica Márcio Barcelos. O organizador do Festival Podes não tem dúvida de que a rádio foi o meio de comunicação que se adaptou melhor à era da internet graças a uma estrutura mais fácil de incutir adaptações e mudanças, mais do que na televisão, em que o investimento seria muito maior. Estamos na fase ascendente, mas ainda faltam formatos como a ficção (mesmo existindo Hotel, a podsérie do humorista Luís Franco-Bastos, que conta as peripécias que acontecem no Grande Hotel da Marateca), a reportagem temática, a investigação serializada. “No dia em que alguém fizer um podcast sobre o caso do desaparecimento da Maddie, será um sucesso”, prevê Márcio. Na opinião de Pedro Miguel Santos, “as pessoas redescobriram o prazer do áudio, no meio das suas vidas aceleradas, de auscultadores na cabeça, ouvindo de uma forma mais personalizada aquilo de que mais gostam”. E Rúben Martins não tem dúvidas: “A rádio e o podcast não são concorrentes, mas sim complementares.” O texto teve a colaboração de Adriana Pinto
Como tudo começou
É preciso recuar 16 anos para encontrar a origem do podcasting
Adam Curry
Há 16 anos, o radialista Adam Curry (sim, o mesmo que apresentava o programa Countdown, na MTV) criou o primeiro agregador de áudios e disponibilizou o seu código na internet para ser melhorado por especialistas. A isso, o jornal britânico The Guardian chamou-lhe podcasting.
Apple
A seguir, a Apple forneceu a base da plataforma, consolidou-a e sistematizou-a de maneira a ser consumida no iPod. Daí, a palavra podcast derivar da junção de iPod com broadcasting (radiodifusão).
Por cá
Em Portugal, os primeiros podcasts, Blitzkrieg Bop, de Duarte Velez Grilo, e Sons da Escrita, de José-António Moreira, surgiram em 2005. Atualmente, existem cerca de 300 podcasts independentes (sem estarem associados a estações de rádio) ativos em Portugal.
E ainda… Sons de fora
Podcasts de referência internacional
The Daily
Trinta minutos por dia, cinco dias por semana, uma crónica noticiosa apresentada por Michael Barbaro, com a chancela do The New York Times.
Conan O’Brien Needs a Friend
Depois de 25 anos à frente do programa de televisão Late Night, Conan O’Brien conversa com quem se foi cruzando ao longo da sua carreira.
This American Life
Programa semanal de rádio, transmitido em várias estações públicas norte-americanas. Escolhido um tema, Ira Glass reúne diferentes tipos de histórias, “como pequenos filmes para o rádio”.
Serial
Dos mesmos criadores de This American Life, em Serial, Sarah Koenig pega em casos de polícia e faz a investigação jornalística necessária para uma série com vários episódios.
In The Dark
“Discípulo” do podcast Serial, segue também o tema do jornalismo de investigação.
Modern Love
Belos textos e ainda melhores vozes contam histórias de amor universais e intemporais, numa parceria entre o The New York Times e a estação pública de rádio de Boston WBUR.
99% Invisible
Programa de rádio, numa produção independente de Roman Mars, centrado na arquitetura e no design que passam despercebidos no nosso mundo.
The Joe Rogan Experience
O ator e comediante norte-americano Joe Rogan, também comentador desportivo e apresentador de televisão, conversa com um convidado mediático sobre a atualidade.
Talk Is Jericho
Entrevistas feitas por Chris Jericho, campeão mundial de wrestling, a alguns dos maiores nomes de luta livre, entretenimento, comédia e paranormal.
The Vergecast
A visão irreverente e informativa de Nilay Patel e de Dieter Bohn sobre as melhores novidades do mundo da tecnologia e dos gadgets.
The Food Programme
Investigar a comida: é isto que um dos programas mais icónicos da BBC Radio 4 propõe todos os domingos, às 12h30, antes de almoço à inglesa.
Stuff You Should Know
Duas vezes por semana, Josh Clark e Charles W. “Chuck” Bryant levam para o estúdio de gravações uma pesquisa exaustiva sobre temas ideais para uma conversa no elevador.
How I Built This
A história de uma grande marca contada pelo seu fundador, na primeira pessoa, em episódios semanais, conduzidos por Guy Raz, para a norte-americana National Public Radio.