Quinta-feira à noite, há samba no RUA, o bar no número 24 da Travessa de Cedofeita, na Baixa do Porto. À medida que os ponteiros avançam, o público vai-se amontoando no exterior desta viela pedonal. Há quem chegue mais cedo para jantar neste bar, que é também restaurante, e por ali fique até depois da meia-noite, quando se solta a voz de Denise Machado, portuguesa, filha de pai brasileiro (o percussionista Jairo Machado), acompanhada pela sua banda, os Sincopados, numa típica roda de samba. No repertório, há clássicos que o público sabe de cor, como Tiro ao Álvaro, de Elis Regina, Trem das Onze, de Adoniran Barbosa, e Não Deixe o Samba Morrer, de Alcione. «Não deixe o samba morrer / Não deixe o samba acabar / O morro foi feito de samba / de samba, pra gente sambar», canta-se, a uma só voz, e o bar parece pequeno para tanta gente. Nuno Garcês, um dos responsáveis, acredita que “a facilidade da língua, a alegria e o espírito de festa” sejam os motivos para uma cada vez maior afluência. Tal como no RUA e, já antes, no extinto bar Baixaria, estes ritmos têm entrado na programação de vários lugares, um pouco por toda a cidade. O número crescente de brasileiros a morar no Porto, muitos dos quais músicos – entre eles, Angelo B, que faz parte da banda de Gabriel, O Pensador –, poderia ajudar a explicar esta adesão, mas a verdade é que o público é maioritariamente português.
Deste crescimento tem dado conta Lu Araújo, a produtora brasileira que, em 2016, aterrou no Porto para preparar a primeira edição do festival MIMO, em Amarante, e que se apaixonou pela geografia e pelo património da cidade, acabando por trocar o Rio de Janeiro pela Rua Miguel Bombarda, onde vive “encantada” com o ambiente das galerias de arte. “No primeiro ano, vinha em média de 15 em 15 dias. De lá para cá, comecei a passar temporadas mais longas e, hoje, vivo aqui durante a maior parte do tempo”, conta. “Tenho uma enorme sensação de pertença com este lugar. A minha casa tem vista para a cúpula do Palácio de Cristal, que eu adoro. Já sou amiga dos vizinhos, gosto muito de andar a pé, de passear e de comer em pequenos restaurantes de gastronomia local.” Do Quarteirão de Bombarda, gosta especialmente da mutação diária. “A rua vai-se transformando. Quando acordo de manhã, já existem outras frases e novas intervenções nas paredes.” De vez em quando, regressa ao Brasil, onde tem a família, mas é no Porto, diz, que sente “paz de espírito”.
Aquele balanço
Quando tem saudades de uma boa feijoada à brasileira, Lu Araújo bate à porta da food truck amarelo-torrado de Rodrigo Guimerà. Natural do Rio de Janeiro, o cozinheiro viveu durante três anos em Barcelona, mas há um que trocou a capital da Catalunha pelo Porto, fascinado com “a tranquilidade da cidade” que conheceu no festival Primavera Sound. Às quartas e quintas, a SambarILove, nome da sua cozinha ambulante, estaciona no interior da loja Garagem Central, na Rua da Alegria, onde, além do prato de feijoada à brasileira – com feijão-preto, carne seca e farofa –, prepara hambúrguer de picanha, com cebola caramelizada em vinho do Porto. Rodrigo garante ser “a única carrinha ambulante do mundo com feijoada à brasileira”. E não lhe faltam clientes. “Os portugueses têm uma boa relação com este prato. A história da feijoada tem muito que ver com o Brasil, já que a base da alimentação do brasileiro é o arroz com feijão”, lembra. Além do negócio da food truck, Rodrigo Guimerà “é um agitador cultural”, aponta Lu Araújo. Desde outubro que organiza o Porto de Samba, aos domingos à tarde, no MXM Art Center, na Rua do Ouro, e no Clube de Rugby, na cave do Ateneu Comercial do Porto: roda de samba e feijoada. “Agrada às famílias, os pais levam os filhos, há interatividade com a música e as pessoas cantam”, nota.
Na Rua da Boavista, numa sala improvisada da escola Dois Pra Cá, são as aulas de forró e de samba de gafieira (dançado a dois) a preencherem as terças e as quartas à noite. Joana Alves, advogada, veio de propósito de Vila Nova de Famalicão: “Gosto da sonoridade brasileira, o forró foi uma descoberta, depois veio o samba.” O carioca Michel Oliveira, a viver em Braga há dois anos, é o professor de gafieira, juntamente com a mulher, a portuguesa Catarina Oliveira. “Ter gosto pela música e vontade de abraçar alguém são os únicos requisitos”, aponta – e jeito, acrescentamos nós. Tiago Martins, que gere a escola com Joana Ilhão, tem notado maior procura tanto pelo forró (também há aulas no salão dos Bombeiros Voluntários do Porto) como pelo samba. “É uma forma de as pessoas descontraírem do dia a dia.”
O Porto revelou-se, também, terreno fértil para a criação musical. Quando Luca Argel chegou, em 2012, vindo do Rio de Janeiro, para fazer um mestrado em Literatura na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, não imaginava que a música o afastasse do rumo académico, mas acabou a formar a banda Samba sem Fronteiras, depois de uma roda improvisada com amigos, na Praça dos Poveiros. Hoje, além de andar em digressão com o álbum a solo, Conversa de Fila, o músico e poeta é vocalista na Orquestra Bamba Social e canta poemas de Fernando Pessoa com Ana Deus (no projeto Ruído Vário), que há de passar pelo bar Passos Manuel, a 12 de abril. Luca Argel acredita que o circuito do samba no Porto “tem espaço para crescer”, sobretudo “no que toca à diversidade”. “Historicamente, identifica-se com mensagens de resistência e de contestação. É natural que os músicos, que se sentem muito incomodados com a atual situação do Brasil, usem a música para se expressar.” Tal como fez no tema Gentrificasamba, em que canta o seu descontentamento pela explosão turística do Porto, cidade pela qual se apaixonou e por onde gosta de andar a pé, com a sua viola.
“O samba está a ganhar cada vez mais força no Porto”, afiança Denise Machado, a única mulher na Orquestra Bamba Social, projeto criado há 12 anos por Pedro Pinheiro e Tomás Marques, com uma mescla de 17 músicos portugueses e brasileiros a interpretar Chico Buarque, Zeca Pagodinho e Seu Jorge, entre outros. “O samba é contagiante, uma música alegre, as pessoas saem de sorriso na cara”, aponta a cantora, prestes a viajar para Londres para dois concertos com a orquestra. O mais antigo grupo de percussão na cidade, com influências do samba, é a Batucada Radical, do qual fazem parte 80 pessoas. Jorge Porto, o mestre brasileiro, conduz os ensaios que decorrem no Centro Comercial Stop, abertos a quem queira fazer parte do projeto fundado em 1997.
Caprichar na comida
No que à gastronomia diz respeito, também há novidades para contar. Nos próximos meses, inaugura a Cachaçaria Macaúva, na Rua Miguel Bombarda. Marcelo Moschetti, professor universitário, deixou o Brasil “por causa da situação política”, para vir abrir uma casa de cultura (com exposições de artistas brasileiros) e um bar de petiscos com mais de 40 variedades de cachaça. Em junho do ano passado, o Salve Simpatia abria, na Rua da Picaria, uma extensão do restaurante de Niterói, no estado do Rio de Janeiro. “É um botequim sofisticado”, diz Carlos Paranhos, um dos sócios a viver no Porto há dez anos. Com as paredes forradas por fotografias de músicos brasileiros – onde pode ler-se a frase «Na minha casa / todo mundo é bamba /todo mundo bebe, todo mundo samba», de Martinho da Vila –, ali serve-se comida típica para partilhar, acompanhada por uma caipirinha ou uma cerveja, ao som de bossa nova e de samba clássico. As bolinhas de feijão e de costela de vitela (a de porco com queijo da Serra é novidade) e a picanha fatiada na chapa, com batata frita e farofa crocante, são os pratos que mais saem. Além do bobó de camarão, feito com creme de mandioca, camarões e azeite de dendém, e da carne de sol com mandioca. O brigadeiro de colher com avelã e paçoca remata a refeição neste botequim, cujo lema é “servir boa comida e trazer alegria às pessoas”.
Não muito longe, na Rua de Cedofeita, o Capim Dourado abriu em dezembro passado. O nome do mais recente restaurante de cozinha brasileira de autor vem de uma palha (capim) que se colhe no Jalapão, no estado de Tocantins, no Brasil. O negócio é do chefe português João Winck, e da mulher, a brasileira nordestina Ângela Moraes. “Tinha vontade de abrir um restaurante com a verdadeira comida da avó. O Brasil é muito grande, tem uma cozinha de várias influências”, conta Ângela, nutricionista, que elaborou a ementa com olhos de lince. Com uma decoração a fazer lembrar a Amazónia e uma esplanada que promete ser muito convidativa nos dias quentes, o Capim Dourado tem dadinhos de tapioca com geleia picante de maracujá, galinhada caipira com arroz e quiabos crocantes, bobó vegano com shitake, caju e arroz de coco, moqueca de maracujá, com arroz de castanha-do-pará, e vaca atolada – costela bovina coberta com creme de mandioca e farofa de banana e bacon. A refeição, que se acompanha com caipirinhas, cachaças e cocktails com polpas de fruta naturais, pode terminar com creme de cupuaçu (fruto tropical) com crocante de caju ou um pudim de tapioca com caramelo de coco queimado.
Na Rotunda da Boavista, é o pastel de Vera Costa, 60 anos, que anda a consolar brasileiros e portugueses. “Quando cheguei em 2017, diziam-me que não havia o nosso pastel de feira [vende-se nas ruas no Brasil]”, conta-nos, na sua Longametragem Pastel, no Shopping Brasília. Mandou vir uma fritadeira à medida, e à massa, feita à base de farinha de trigo, cachaça e água, acrescenta diferentes recheios, como o queijo catupiry. “A diferença é o nosso jeitinho brasileiro”, atira Vera Costa, de sorriso largo. É isso aí!
MORADAS
RUA
Bar/restaurante com música ao vivo e noites de samba.
Tv. de Cedofeita, 24, Porto > T. 91 735 6644 > dom, ter, qua 7h30–24h, qui-sáb 7h30-4h > noites de roda de samba €3
SambarILove
Sem lugar fixo, a carrinha ambulante do brasileiro Rodrigo Guimerà vai estar no Mercado de Páscoa, na Praça da Batalha, de 6 a 22 abril, e no Jardim do Morro, em Vila Nova de Gaia, de 18 a 21 abril > www.facebook.com/ftsambarilove > T. 91 945 4313
Salve Simpatia
R. da Picaria, 89, Porto > T. 22 208 0892 > seg-qui 12h-15h, 19h-24h, sex 12h-15h, 19h-1h, sáb 19h-1h, dom 18h-24h
Capim Dourado
R. de Cedofeita, 322, Porto > T. 91 550 0081 > qua-qui 12h30-15h, 19h30-23h, sex 12h30-15h, 19h30–24h, sáb 13h-16h, 19h30-24h, dom 13h-16h, 19h30-23h
Longametragem Pastel
Shopping Brasília, Loja 76, Piso 1 > Pç. Mouzinho Albuquerque, 113, Porto > T. 93 992 0835 > seg-sex 10h-19h
Batucada Radical
Aulas de percussão.
C. C. Stop > R. do Heroísmo, 333, Sala 26 > T. 91 830 7773 > ter-qua 19h-20h30 > grátis
Dois Pra Cá – Escola de Dança
R. Rodrigues Sampaio, 153, Porto > T. 91 790 9549 > aulas de forró €25/mês (1x/ semana), €35/mês (2 x semana), forró e samba €40/mês (1 x semana)
Forró Douro Festival
Workshops e festas de forró.
Porto e Vila Nova de Gaia > 25-28 abr, 17h-20h, 22h30-4h > €6 (tarde), €16 a €18 (noite)
Porto do Samba
Roda de samba e feijoada. Casa da Música (Café) > Av. da Boavista, 604, Porto > 14 abr, 20h
Orquestra Bamba Social com Tiago Nacarato
Av. dos Aliados, Porto > 27 abr, 22h > grátis