
A descrição do número é uma delícia. Papuss, um nativo da América do Sul, dispunha-se a ficar fechado durante uma semana numa urna de vidro, selada pelo público. A “múmia-viva” era enfaixada da cabeça aos pés, bebia éter sulfúrico e entrava num estado de sono semi-cataléptico, do qual acordava umas horas depois. Embora não pudesse ingerir qualquer comida ou bebida, era capaz de manter uma conversa e fumar uns cigarros. Sete dias depois, o público regressava ao teatro para ver o faquir a sair ileso do caixão, submetendo-se logo de seguida a provas de força. A visita de Papuss, “o famigerado jejuador”, era anunciada nas páginas do jornal Echos do Minho, em outubro de 1915. Foi uma das estrelas a abrilhantar o primeiro ano do Theatro Circo (TC), em Braga. “O nome é corretíssimo. Durante os primeiros anos o circo, tal como o teatro, teve uma forte presença”, relata Paulo Brandão, o atual diretor artístico. Em pesquisas, muitos foram os episódios bizarros, mitos, curiosidades e espaços desaparecidos que foi descobrindo entre antigos folhetos, cartazes, fotografias e recortes de jornais. Histórias recordadas no Projeto Memória, um ciclo de exposições integrado nas comemorações do centenário do Theatro Circo, que se estenderam durante um ano.

Cartaz dos primeiros espetáculos do Theatro Circo, estrelados por Palmira Bastos
A inauguração deu-se a 21 de abril de 1915, com a peça A Rainha das Rosas, abrilhantada pela atriz Palmira Bastos. Os artigos surgidos na imprensa foram relativamente discretos e não acompanharam a imponência do edifício, desenhado pelo arquiteto João de Moura Coutinho. A sociedade anónima responsável pela sua construção não poupou nos estuques, dourados, veludos vermelhos e candelabros imponentes. E a sala de espetáculos acabou por ganhar fama e atrair todas as grandes companhias de teatro da época, descerrando as lápides que se podem ver no átrio. O efeito encantatório do TC perdura até hoje. Aquando da sua reabertura, em 2006 (após sete longos anos de obras de recuperação e de melhoramento, em que se gastaram 23 milhões de euros), Paulo Brandão contava como conseguia convencer alguns artistas internacionais a atuar em Braga, exibindo imagens do espaço. Entre eles, a banda norte-americana Antony and the Johnsons, que registou as imagens do concerto de apresentação do álbum The Crying Light, em 2009, no documentário Turning. “Embora a sala grande tenha 900 lugares, não deixa de criar um ambiente intimista e muito especial, o que é apelativo para quem atua e para quem vê”, explica o diretor.

Maria Esteves trabalha há 46 anos no Theatro Circo e por ele ficou imediatamente apaixonada
Rui Duarte Silva
Comícios e filmes séries B
Maria Esteves entrou no Theatro Circo pela primeira vez aos 17 anos. “Apaixonei-me logo”, recorda. Por essa altura, o cinema dominava a programação, com sessões repletas de público ao domingo. Após 46 anos, Maria Esteves continua à frente da bilheteira e absolutamente apaixonada pelo que faz. “Em Braga, conheço toda a gente e toda a gente me conhece.” Sempre que conseguia, escapava-se e espreitava, através da cortina, para o auditório. “Lembro-me do espetáculo de Amália, uma senhora. Mas o que mais me marcaram foram os comícios políticos, a seguir ao 25 de Abril. A sala parecia que ia ceder com o peso das multidões”, conta. Foi esse apego à sua “segunda casa” que também a fizeram recear as obras que esventraram o TC para construir um pequeno auditório, 16 metros abaixo da cota da rua, sustentando-se o edifício em estacas de betão. “Tive muito medo que ruísse e que não pudesse regressar ao meu trabalho. Ninguém viveu isto como eu. Mas, quando reabriu, foi uma coisa estrondosa. Hoje, dá-me muito gosto mostrar o teatro, especialmente o salão nobre”, diz Maria Esteves.
Rui Madeira, o diretor da Companhia de Teatro de Braga (CTB), assume-se como um dos “culpados” da ousada intervenção arquitetónica, já com a câmara municipal como proprietária do TC (a aquisição da quase totalidade do capital acionista deu-se em 1988). “Aquando das obras, convencemos a câmara da importância de fazer esta caixa negra, para criações mais experimentais», recorda, sentado no cenário da peça No Alvo, de Thomas Bernhard, a poucas horas da sua estreia, na semana passada. A presença da companhia na cidade é de 1982 e obedeceu a um plano «estruturado e refletido”. “Os estudos feitos a Norte apontavam Braga como a cidade com maior potencial de crescimento.” Em 1984, celebraram um protocolo com a autarquia e, no fim da década de 80, já instalados no Theatro Circo, acabam por assumir a sua direção artística. Destes anos, guarda sobretudo as memórias da criação.
“Por aqui passaram muitos criadores europeus e lusófonos, conseguimos fazer um trabalho sistemático de formação de públicos, numa cidade sem hábitos culturais.” O ator António Durães acompanhou a CTB nesses primeiros anos. “A relação da companhia com a população nem sempre foi fácil, embora houvesse um público generoso. Fui convidado para ficar três meses mas, 30 anos depois, ainda vivo em Braga”, afirma. Enquanto o salão nobre do Circo acolhia as produções teatrais, o grande auditório dependia cada vez mais do cinema. “Apesar de a sala estar decadente, recebia muitas pessoas ao fim de semana para assistir aos filmes mais comerciais. Nos restantes dias, passava produções série B, ainda vi alguns filmes menores de Werner Herzog, completamente desconhecidos. Imagino que fossem mais baratos”, conta. Teve ainda oportunidade de assistir a alguns espetáculos musicais marcantes como os de Juliette Greco, Serge Reggiani e Carlos Paredes. E um outro, dos Mão Morta, que ficará na história do TC.

Paulo Brandão, diretor artístico do Theatro Circo
Rui Duarte Silva
Cadeiras pelo ar
O episódio é contado pelo próprio Adolfo Luxúria Canibal, vocalista da banda bracarense, nascida em 1984. “Tínhamos uma relação complicada com Braga. Não éramos levados a sério, diziam que não éramos músicos. Não tocávamos bem, mas dentro das nossas incompetências, tínhamos o nosso estilo”, diz. Em 1993, a cidade fez as pazes com a banda e esgotou (ou ultrapassou?) a lotação da sala no concerto de apresentação do álbum Mutantes S.21 (um êxito nacional, onde se incluía a canção Budapeste). Os espetáculos ao vivo dos Mão Morta, cheios de garra, não se coadunavam com lugares sentados, muito menos com as cadeiras em ferro fundido do Theatro Circo.
Não resistiram, bem se vê, à euforia do público. Luxúria Canibal também não saiu ileso. “Dei dois saltos de cabeça absurdos, do palco para a plateia e um deles teve uma aterragem mais brusca”, lembra. A verdade é que a destruição da sala que dali resultou acabou por antecipar a necessidade do TC avançar com obras de vulto.
Em 2006, por altura da reabertura da sala de espetáculos, o vocalista dos Mão Morta viu desenhar-se “uma cidade extraordinariamente cosmopolita e consumidora de cultura. Tudo o que era relevante, sobretudo em termos musicais, vinha a Braga”. A euforia durou cerca de um ano. “As interferências camarárias na gestão, as lutas internas de poder e as dificuldades orçamentais fizeram com que o TC deixasse de funcionar”, considera Adolfo.
Em 2010, Paulo Brandão abandonou o cargo de diretor artístico. Regressou no final de 2013, a convite de um novo executivo camarário (que passou do PS para o PSD). O que mudou na programação? “Tivemos nos adaptar aos sinais do tempo. Na primeira etapa, os orçamentos e a situação do país permitiam outra força e causar um impacto a nível nacional”, conta Brandão. “Desta vez, optei por primeiro conquistar Braga e os bracarenses e depois as pessoas de fora. Estamos em franca recuperação.”
Para comemorar o 101.º Aniversário, esta quinta, 21, será inaugurado o quarto momento expositivo do Projeto Memória. Uma síntese do ciclo de exposições que deu a conhecer, durante este último ano, o espólio narrativo da história centenária do Theatro Circo, reunido em parceria com a Biblioteca Pública de Braga. A mostra é de entrada livre e pode ser visitada até 21 de maio (ter-sáb 14h30-18h30). A sala principal acolherá, às 22h, o espetáculo de novo circo Abril, com o acrobata de mastro chinês João Paulo Santos e a acrobata Elsa Caillat. A partir das 23h30, a festa passará para o Theatro Circo Café, com um concerto dos bracarenses Bed Legs, e terminará pela noite dentro, ao som das misturas do Dj Terzi.