Nascido há 45 anos em Tondela, Samuel Úria ocupa um lugar só seu na música popular portuguesa deste século. A sua ligação à Igreja Evangélica Baptista empresta-lhe um certo exotismo num meio pouco dado a religiões. “É uma vantagem”, diz.
2000 AD é nome de canção e do álbum. Quer elaborar um bocadinho sobre esse título?
Lembro-me de um sketch do Conan O’Brien, dos anos 90, em que ele apresentava previsões absurdas para o ano 2000, que apesar de estar próximo parecia longínquo e sempre um símbolo de futuro. E eu só descobri isso depois do ano 2000… Há esse lado irónico, como se as promessas esperançosas do ano 2000, com um grande entendimento entre as nações de todo o mundo, tivessem sido um bluff que nos venderam…
Logo em 2001, a 11 de setembro, percebeu-se que nada seria assim…
Houve logo um banho de realidade, sim, mostrando que o futuro, afinal, não traria nada de bom. Há uma certa sensação de fraude, e é disso que falo no disco… Houve uma grande revolução tecnológica, é verdade, mas não correspondeu necessariamente a uma melhoria nas nossas vidas. No fundo, a democratização da tecnologia também levou à democratização do mau uso das tecnologias. Hoje, a deturpação da verdade, e do próprio conceito de “verdade”, é muito fácil. Julgo que essa é uma das decepções maiores destes tempos.
No Brasil fala-se muito agora de artistas “midstream”. Não estão já no circuito underground mas também não são mainstream. Costumam ocupar salas médias, como aquelas em que tocou em outubro deste ano. Reconhece-se nesse lugar?
Acho que esse conceito me assenta bem. Tem vantagens e desvantagens… Uma vantagem: nunca me está vedada a ambição de dar um salto para uma sala maior. Mas tem a desvantagem de ser mais difícil voltar para salas mesmo mais pequenas. Antes da pandemia tinha a ideia de voltar precisamente aos clubes e ao espólio mais punk rock das minhas primeiras bandas. Em termos de airplay e impacto mediático, acho que há coisas que me estão vedadas por questões mesmo estéticas e artísticas. Percebo isso. E prezo a minha independência.
Dos concertos de Nick Cave, artista com muito público fiel em Portugal, diz-se, cada vez mais, que têm um caráter litúrgico, são quase como uma grande missa… Isso faz-lhe sentido, pensar assim nos concertos?
Absolutamente. Quando posso, faço questão de ter muitos músicos e muitas vozes em palco e isso também vem desse lado quase litúrgico com que abordo as canções. Tem que ver com a questão estética, às vezes num jeito um bocadinho mais gospel, mas também há o lado de querer reunir pessoas que fazem parte do meu círculo de amizades. Há aquele lugar-comum de dizer que juntos, em palco, fazemos a celebração de qualquer coisa. Quem está a cantar e a tocar comigo percebe bem a identidade das canções e essa celebração acontece mesmo – e isso vê-se nem que seja pelos sorrisos. Há uma rede, uma nuvem, que me envolve e me dá confiança para apresentar estas canções.
Continua a ser ligeiramente exótico, no meio musical português, a sua ligação a uma Igreja Evangélica Baptista…
[Risos] Sim, mas só é exótica em países de pouca tradição protestante. Às vezes, fala-se disso como se fosse um problema, como se eu estivesse fechado num hermético nicho civilizacional e sociológico, mas eu sinto exatamente o contrário. Cresci nesse ambiente, com as mesmas referências dos meus músicos preferidos… Há uma matriz em muita música anglo-saxónica que tem precisamente que ver com esse lado religioso – sobretudo protestante, que tem uma maior ligação à palavra. Nick Cave, Dylan, Cohen e, claro, Johnny Cash… O que podia ser visto como um handicap, vejo-o como uma vantagem.
Há muito que associamos o pop rock a hedonismo, prazer. Vive esse prazer sem culpa?
Na matriz judaico-cristã, a ideia de culpa é muito forte, sobretudo em países de forte tradição católica. Tenho ideia de que nos países protestantes, onde os músicos, por exemplo de blues, nos EUA, tocavam nas igrejas durante o dia e à noite iam para os speakeasys, para os clubes, a música tornava-se quase um escape permitido. O prazer era não só possível como até recomendável. Acho que a música fez, e faz, essa ponte.
Associamos também muito as “igrejas evangélicas”, nos últimos anos, a movimentos mais conservadores e populistas, como o bolsonarismo no Brasil ou Trump nos EUA… Como se sente em relação a isso?
Há muitas correntes evangélicas. E eu venho de uma igreja independente, mesmo em termos estatutários: as igrejas baptistas não são organizadas em torno de nenhuma organização geral que dita os preceitos. Em Portugal, há, muitas vezes, ideias deturpadas… Pode parecer muito tentador para o jornalismo dar esse salto do movimento evangélico no Brasil ou nos EUA para a realidade portuguesa. Mas, por exemplo, as igrejas que no Brasil tradicionalmente apoiam Bolsonaro estão aqui arredadas da Aliança Evangélica. Perguntam-me, muitas vezes, sobre Trump e Bolsonaro, e eu respondo que os evangélicos também são do Elvis e do Martin Luther King! Tenho insígnias muito melhores para mostrar. Admito que a palavra “evangélico” está, hoje, muito contaminada. Deixa-me desconsolado que igrejas com essa denominação, que também me inclui, se tenham juntado a movimentos de extrema-direita. Por outro lado, isso faz-me escrever canções sobre o assunto. O novo disco tem algumas referências a esses temas. Não tenho contas a prestar ao mundo, mas sinto a responsabilidade, pelo menos dentro das minhas igrejas, de impedir que se disseminem essas ideias de ultraconservadorismo.