As armas de Alfredo Cunha para a sua participação no 25 de Abril de 1974 foram duas Nikon F. As munições: cerca de 40 rolos fotográficos Ilford HP4 e Kodak Tri-X Pan, de 100 e 400 ASA.
À distância de meio século, o fotojornalista sabe que naquela quinta-feira que começou muito cedo, depois de apanhar um comboio da Amadora para o centro de Lisboa de madrugada, tomou duas boas decisões: uma foi arrebanhar o máximo de rolos fotográficos na redação d’O Século, jornal onde trabalhava; a outra, aproximar-se de Salgueiro Maia e segui-lo. Mas também tem arrependimentos – “Até já sonhei várias vezes com isso”, conta à VISÃO. Sente que devia ter fotografado (ainda) mais e que podia ter-se focado mais no ambiente popular, nas “coisas ao lado” e nem sempre nos “protagonistas” – “há muitas fotos que não fiz”, lamenta. Afinal, tinha apenas 20 anos, mas já trabalhava desde os 18 no histórico diário lisboeta.
No prefácio de 25 de Abril de 1974, Quinta-feira, Luís Pedro Nunes (nascido em 1967, e que faria muitas reportagens com Alfredo Cunha depois de o conhecer na redação do Público), conta que ouviu muitas vezes o fotojornalista dizer: “Fotografei mal o 25 de Abril, perdi muitas coisas.”
Uma razão prática para essa sensação prende-se com o facto de, durante o dia em que tudo estava a acontecer, ter tido a obrigação de ir periodicamente à redação d’O Século entregar e revelar as fotografias que ia fazendo para integrarem as várias edições especiais que o diário lançou nessa quinta-feira. “Foi um dia como se fosse um mês.” Alfredo Cunha pacificou-se e combateu essa angústia com uma reflexão simples e, talvez, óbvia, que hoje repete com convicção: “Fiz o que tinha de ser feito.”
O seu trabalho de pesquisa nos últimos dois anos ajudou-o nesse processo. Nos arquivos da Torre do Tombo encontrou os seus negativos daquela época (“muito bem catalogados”) e percorreu-os meticulosamente. Viu lá coisas de que não se lembrava, mas que imediatamente reconhecia. Algumas dessas redescobertas, viveu-as com surpresa. “Quando encontrei aquela foto com o avião no ar, em Moçambique, pensei: ‘Mas como é que eu não vi isto?!’ Nunca tinha sido impressa…”
O livro agora publicado, pela editora Tinta da China, não se centra só no dia 25 de Abril de 1974. De formato quadrado e dividido em três capítulos, dá-nos o antes e o depois.
Da Guerra à Liberdade, que conta com texto de Carlos de Matos Gomes (militar com vasta experiência na Guerra Colonial que também ficaria conhecido pelo pseudónimo literário Carlos Vale Ferraz, com que assinou, em 1982, o romance Nó Cego, sobre esses tempos), leva-nos para os últimos tempos das guerras de libertação das ex-colónias e para os dias da independência conquistada, com fotografias na Guiné-Bissau (onde Alfredo Cunha regressou em reportagem várias vezes), em Moçambique e em São Tomé e Príncipe.
O segundo capítulo, que dá título ao livro, 25 de Abril de 1974, Quinta-feira, tem o extraordinário efeito de nos transportar para esse “dia inicial inteiro e limpo” (nas célebres palavras de Sophia de Mello Breyner). Às fotografias de Alfredo Cunha juntam-se as palavras do jornalista Adelino Gomes, que também viveu intensamente cada minuto dessa quinta-feira irrepetível. Para o livro, elaborou uma “espécie de fita do tempo radiofónico”, a partir de gravações desse dia, com “excertos de narrações, declarações, proclamações, reflexões, palavras de ordem proibidas havia 48 anos em Portugal”.
E conta como conseguiu cobrir profissionalmente a Revolução, ele que nessa altura estava desempregado (foi suspenso, em 1972, na Rádio Renascença): “Dois repórteres – um que mal conhecia, o outro que nunca tinha visto – acolheram-me na equipa, permitindo-me com eles partilhar, ao microfone da estação de rádio onde estava proibido de trabalhar, a reportagem de uma vida. Comovido e ainda hoje estupefacto (será que, no lugar deles, eu teria praticado acto de tamanha camaradagem?), dedico esta Certidão e a respectiva Fita do Tempo a Paulo Coelho e Pedro Laranjeira (falecido há meses).” O resultado, nas páginas deste novo livro, das imagens de Alfredo Cunha lado a lado com o texto de Adelino Gomes é o de uma verdadeira e imersiva viagem no tempo.
Finalmente, o último capítulo, Depois de Abril, tem texto de Fernando Rosas e as suas imagens transportam-nos para plenários, manifestações, novas rotinas nas ruas e novos protagonistas na política portuguesa. Sobre um tema muito discutido neste novembro de 2023, escreve o historiador Fernando Rosas: “A revolução era o centro de tudo e rompia ousadamente, conflitualmente, sobre os escombros do antigo regime. Através de um processo complexo e por vezes tumultuoso, mas sempre amplamente participado, discutido e até sufragado, dele brotou a democracia. É certo que o revisionismo historiográfico e político conservador não desistiu do propósito ideológico de a separar do processo revolucionário, como se ela fosse filha do novembrismo e existisse apesar da revolução. Não a reconhecendo como o que historicamente foi: fruto que a revolução impôs, apesar do novembrismo.”
Como sinal de contemporaneidade e futuro, o livro é pontuado por intervenções gráficas de Vhils, artista nascido 13 anos depois do 25 de Abril, na capa e no arranque de cada capítulo. Para Alfredo Cunha, é mesmo hora de olhar em frente: “Agora acabou, vou fechar o arquivo e fazer coisas novas.” Mas estas imagens serão, para sempre, uma memória coletiva de Abril.