Aí está, finalmente, o sucessor de Moura, o álbum que Ana Moura lançou em 2015. Parece que foi noutra vida, e esse efeito não acontece só por causa dos tempos em que a pandemia nos dividiu as vidas num “antes” e um “depois.” Este Casa Guilhermina tem o efeito de um novo começo para a cantora nascida há 43 anos em Santarém. E isso nota-se na forma entusiasmada como Ana Moura vai falando de todo o processo, da volta que quis dar à sua vida. Esta é uma fase feliz. Percebe-se quando vemos Ana chegar, de ar atarefado e sereno ao mesmo tempo, com a sua filha, Emília, de 6 meses: “Quero que esteja sempre comigo. Comecei logo a dar concertos e ela também vai, já tem para aí uns 20 voos!”
Em nome de ‘Mázia’
Mas esta nova Ana está muito assente em experiências de perdas recentes. Podemos começar logo pelo título do disco. Guilhermina era a avó materna de Ana Moura e morreu durante todo este processo de criação do álbum. Casa Guilhermina é, agora, literalmente, o nome, escrito em azulejos, que Ana Moura deu à sua casa em Cascais. E surgiu rapidamente como o título mais óbvio e certeiro para o disco. Afinal, muito do que este disco é, na sua mistura de referências, está diretamente relacionado com o percurso de vida da avó de Ana, com aprendizagens que vêm daí. Guilhermina era uma angolana, nascida em Vila Arriaga, que se casou com um português, alentejano. Já a sua mãe, bisavó de Ana Moura, pertencente à etnia mucubal, teve vários filhos com um português (bisavô de Ana). Guilhermina cresceu, no Lubango, com a família do pai (os irmãos ficaram com a mãe), fluente tanto em português como em umbundo. No período da revolução portuguesa e independência das ex-colónias veio para Portugal, com os pais e tios de Ana Moura, onde se instalou no Algarve, em Quarteira. E foi uma figura marcante na vida de Ana Moura, que nasceu em 1979. “Ia passar todos os verões com ela, a Quarteira, porque a minha família ficou toda ali”, conta Ana. “Os meus pais foram parar a Coruche só porque a minha mãe era professora e não estava efetiva em lado nenhum, andavam por aí a saltitar, o meu irmão nasceu em Paredes, no Norte. Fixarmo-nos em Coruche foi um acaso.” Da sua avó recorda, sobretudo, a mistura de “doçura com força, era uma guerreira, filha de dois mundos”: “Vejo agora em mim muitas coisas que vieram da minha avó, que era muito determinada e sensível ao mesmo tempo.” Na verdade, na discografia de Ana Moura já havia uma homenagem direta a esta figura familiar. São da avó Guilhermina – que gostava de cantar fado – as vozes que se ouvem, em fundo, na interpretação de Lavava no Rio, Lavava (do primeiro álbum de Ana Moura, Guarda-me a Vida na Mão, de 2003). Agora, quase 20 anos volvidos desde essa estreia discográfica, Ana diz: “Fez-me sentido esta homenagem, percebi que este novo álbum trazia as heranças que a avó Guilhermina me deu.”
De facto, nunca houve tanta presença africana num disco de Ana Moura, que sempre teve uma espécie de África mítica na cabeça, na vida: “Cresci a ouvir falar de todas aquelas coisas que se dizem sobre Angola: o sabor da manga, o sabor do peixe, o pôr do Sol, a terra vermelha… De tal forma que me apropriei dessas histórias, quase como se fossem minhas. Lembro-me de que quando fui a Cuba, saí do avião, senti aquele bafo húmido, e disse: ‘Parece que estou a chegar a Angola!’ Só depois me apercebi: ‘Ah, que estupidez, eu nunca estive em Angola…’” Depois desse episódio já foi a Angola mais do que uma vez, e até já teve oportunidade de subir a palcos angolanos (“uma experiência incrível!”).
Mas essa influência das músicas africanas em Casa Guilhermina remete, ainda, para outra perda. “A minha prima, filha duma irmã da minha mãe, que era a minha melhor amiga ficou doente e acabou por morrer; crescemos juntas, andávamos sempre as duas.” Foi alguém importante não só na vida como na carreira de Ana Moura: “Eu era muito tímida quando era pequena e ela foi muito responsável por que eu cantasse em público, foi uma grande impulsionadora; tínhamos seis anos de diferença, e quando íamos a um bar de karaoke, perto de nossa casa, era sempre ela que me inscrevia. Puxava por mim.” Tratavam-se uma à outra por “mázia”, diminutivo de “primázia”, e tinham em comum o gosto pelas músicas africanas, tão presentes na família. “Quando éramos pequenas dançávamos e rebolávamos para a nossa avó, era uma festa… Aquelas músicas faziam-nos vibrar e, uns anos depois, entrava no carro dela e estava sempre a ouvir música africana, kizomba, semba… Era uma mulher muito alegre, sempre com um grande sorrisão na cara.” A segunda faixa do novo disco de Ana Moura chama-se Mázia, não podia ser mais africana na sua essência de semba (ouvem-se os músicos Manecas Costa e Paulo Flores nas guitarras), e é, claro, uma homenagem de Ana à sua prima. A letra, neste caso, só podia mesmo ter sido escrita pela própria Ana Moura (também autora da música, “que só podia ser super alegre, como ela era”): “Diz-me o que é que eu faço / sem o teu abraço / falta mais uma dança / para nos dar esperança / vira Mázia, volta aqui / volta Mázia, vira aqui / gira Mázia, volta para mim / roda Mázia até ao fim…” E no booklet do disco, lá vemos a reprodução de um bilhetinho de karaoke, símbolo dessa forte relação.
A inspiração de Rosalía
A aproximação aos ritmos africanos é uma pedra de toque nesta nova Ana Moura. E se é verdade que, como já ficou claro, eles sempre fizeram parte da sua vida, também é certo que a artista os via como algo relativamente separado da sua carreira musical: “Durante muito tempo, para mim, isso não fazia parte da minha identidade artística. Fazia-me vibrar, às vezes até cantava essas músicas, e sentia-as como minhas, mas… deixei-me levar, talvez, por aquela necessidade de ter de escolher ser uma coisa só, e eu era fadista. A verdade é que nada nos obriga a isso.”
Logo a seguir a Mázia, ouvimos o tema Calunga, que foi também cantado por Amália Rodrigues e não podia ser mais bem escolhido para simbolizar essa ponte entre o fado e África. Escrito pelo brasileiro Lourenço da Fonseca Barbosa nos anos 30, fala do transporte de escravos de Angola para o Brasil: “De São Paulo de Luanda / me trouxeram para cá…” Pode não ser, originalmente, um fado, mas basta ouvir essas palavras na voz de Amália e Ana Moura para reconhecermos que África, Brasil e fado podem rimar de forma natural…
Mas a ligação a África que despertou Ana Moura para muitos dos ritmos do seu disco foi muito mais contemporânea. Pode-se mesmo dizer que aconteceu na pista do Musicbox, no Cais do Sodré. Mas recuemos a 2018, quando Ana Moura trabalhava no sucessor do álbum saído em 2015, porque três anos sem um disco novo é algo que não encaixa bem nas regras da indústria musical, sobretudo para artistas, como Ana, que ainda vendem milhares de discos e atuam no mundo inteiro. As recordações que a cantora tem desses dias não são felizes. “Sentia um vazio enorme”, lembra. “Andava a fazer concertos há não sei quantos anos, percorrendo Portugal e o mundo, e, além dessa azáfama, não tinha vida absolutamente nenhuma… Senti mesmo que estava a precisar de tempo para poder descobrir coisas, inclusivamente sobre mim. Estava ali a gravar aquele disco, com os temas que alguns autores me tinham enviado com que mais me identificava, mas… sentia que faltava qualquer coisa.” Como se faz habitualmente nas relações que não estão a funcionar, Ana decidiu que precisava de “dar um tempo, ter tempo para parar”. Foi isso que fez, depois de conversar com o seu manager da altura (Vasco Sacramento, da Sons em Trânsito). E nesse “tempo” de autodescobertas, Ana foi parar às Noites Príncipe, no Musicbox, com atuações de músicos e DJ ligados a essa editora (Príncipe) que, a partir dos subúrbios de Lisboa, afirmam novas batidas, misturando raízes africanas e tendências da música eletrónica de dança global. Conheceu gente com percursos parecidos ao seu (quanto à ligação familiar a África), identificou-se, entusiasmou-se, dançou e… foi percebendo que tinha um caminho novo pela frente e que, provavelmente, o tal disco que estava esforçadamente a gravar nunca veria a luz do dia.
Cúmplices na revolução
No primeiro confinamento, Ana Moura, dois Pedros e Conan Osíris juntaram-se na casa da cantora, e desse encontro criativo nasceu uma boa parte da sonoridade do disco Casa Guilhermina
Pedro da Linha
É o produtor de Casa Guilhermina. Ou seja, coube-lhe a difícil tarefa de dar coerência musical a um disco com referências musicais muito diversas, do fado ao semba. Cresceu na Damaia, e é um legítimo herdeiro da revolução musical dos Buraka Som Sistema, tornando-se protagonista na cena lisboeta que trouxe ritmos da periferia para o centro. Colaborou com Branko, Dino D’Santiago e Carlão, entre outros.
Pedro Mafama
Afirmou-se em 2021 com a edição do álbum Por Este Rio Abaixo, no qual sonoridades do Norte de África se misturam com a Lisboa do século XXI. No novo disco de Ana Moura, a sua presença faz-se de várias formas: é um produtor “mais conceptual” (na expressão da cantora), coautor de várias letras e músico. É, ainda, o atual companheiro de Ana Moura e pai de Emília, que nasceu em abril deste ano.
Conan Osíris
Tornou-se conhecido do grande público praticamente de um dia para o outro, mas desde a sua participação no Festival da Eurovisão, em 2019, com a canção Telemóveis, a sua presença tem sido discreta. Um dos trabalhos recentes de Conan foi a presença na produção deste Casa Guilhermina. Há três letras suas (nos temas Trigo, Colheita e Classe) e vários contributos musicais.
Foi no Musicbox que conheceu o músico Pedro da Linha, produtor desta Casa Guilhermina que chega às lojas e plataformas de streaming nesta sexta-feira, 11, sete anos depois do último disco de originais. Ana Moura acabaria por cortar amarras com a sua editora de sempre (a Universal) e também com o agenciamento da Sons em Trânsito, e decidiu assumir-se como capitã do seu navio. “A indústria musical está muito viciada em certas rotinas e comportamentos e não alimenta a individualidade dos artistas”, diz Ana. “Passa tudo pelo ‘mercado’, por aquilo que acreditam que em determinado contexto vai dar mais dinheiro… e, muitas vezes, não deixam os artistas crescer de forma natural, não lhe perguntam ‘o que tens para dar?’. Fala-se muito mais do que está a dar no ‘mercado’…” Mas a decisão de se ter afastado duma editora multinacional e dessas regras da indústria musical e de se ter afirmado como música independente com uma empresa própria não significa optar por um caminho menos ambicioso, antes pelo contrário. Ana sabe o que quer. “Sei em que mercados quero apostar, e da minha equipa fazem parte pessoas que não são portuguesas, e que trabalham com artistas já com algum nome a nível internacional… Estou a montar o meu puzzlezinho.” O nome de Rosalía, a espanhola que a partir da sua reinvenção do flamenco, misturado com várias tendências da pop atual, se tornou uma estrela global, vem à baila… e isso faz todo o sentido para Ana Moura. “O que a Rosalía fez com o flamenco não foi uma surpresa para mim, sempre disse que esse caminho era possível, pegar nas raízes, acrescentar-lhes elementos musicais contemporâneos do universo da pop, e fazer sucesso no mundo inteiro.” Rosalía foi uma inspiração, sobretudo, “pelo lado libertador, olho para ela e vejo uma miúda completamente livre”. E é assim que Ana Moura se quer ver nesta fase. Livre e sem fronteiras ou limites preestabelecidos. “Há a ideia de que um músico português nunca conseguirá ser uma estrela global, um fenómeno pop, até pela nossa língua, mas não me parece que esse seja um objetivo inatingível; quero acreditar que sim, que é possível, e sem vergonha nenhuma se não o conseguir fazer…”, diz a cantora que tem no currículo, a partir do seu fado, colaborações com Prince e os Rolling Stones.
Há ainda outra morte recente que marcou a vida de Ana Moura. Em 2021, perdeu o seu irmão, de um dia para o outro, num acidente de mota. Passado (ou não) o choque, isso só a fez ver como é importante viver ao máximo a vida de acordo com as suas regras. “Quero fazer aquilo que me deixa completamente realizada, seguir os meus sonhos e aquilo que vem mesmo de dentro, quero procurar estímulos que me deixem apaixonada, com os olhos brilhantes… E esse caminho foi dar a este disco.” Podemos confirmar os “olhos brilhantes” enquanto diz estas palavras. Ana vive este período com uma urgência e um entusiasmo quase adolescentes. Mas, com a pequena Emília e o seu companheiro, Pedro Mafama, por perto, diz: “Não quero nada que o tempo passe rápido. Quero usufruir de tudo isto ao máximo.” A doçura e a força da avó Guilhermina, lado a lado.
O disco
Ana Moura gosta de olhar para o seu novo álbum como uma “casa com várias divisões”. O título – Casa Guilhermina – já convida a esse efeito; a mistura de estilos e referências, com passagem pelos ritmos africanos, tendências da música de dança atual e o fado, dá ainda mais sentido à metáfora. Depois de uma anunciada revolução e da saída da sua editora, há uma grande expectativa em relação à sonoridade deste álbum por parte de velhos e novos admiradores de Ana Moura. E se é certo que a ouvimos como nunca (sobretudo em temas que foram sendo divulgados ao longo dos últimos meses, como Andorinhas, Agarra em Mim e Jacarandás, dançáveis, com batidas eletrónicas e autotune q.b.), também é verdade que o fado continua presente: logo a abrir, com Janela Escancarada, e a fechar, com Nossa Senhora das Dores, sem esquecer uma leitura muito pessoal desse clássico chamando Estranha Forma de Vida. Na verdade, Ana Moura já tinha misturado fado e música pop antes, mas nunca como nas várias divisões desta sua Casa Guilhermina.