São quase dez horas de conversa inédita entre duas figuras que se admiravam. Manuel da Fonseca, escritor, militante do PCP na clandestinidade e apaixonado pela boémia do fado das vielas, foi incumbido pela editora Arcádia de ensaiar o primeiro retrato biográfico de Amália Rodrigues. Ela, renitente, aceitou ver no que dava, sem nunca deixar de jogar em casa. O ano é 1973. O projeto, esse, foi abandonado por vicissitudes várias e nunca viu a luz do dia – até agora.
Em ano de centenário, a revelação das páginas de Amália nas Suas Palavras – Entrevista Inédita a Manuel da Fonseca em 1973 (Porto Editora, 396 págs., €18,80) é mais um contributo para melhor conhecermos a grande figura do fado
Em Lisboa e no Brejão, as palavras entrelaçaram-se em névoas de fumo de cigarro e noites, por vezes, demolhadas em travessas de bacalhau, uísques e conhaques. A ditadura estava moribunda e, embora ambos o soubessem, poucos adivinhavam que a queda já se semeava. Também por isso, os diálogos são, por vezes, de “toca-e-foge”: Manuel da Fonseca a tentar enredá-la numa consciência político-social, e ela a escapar-se pelas frinchas dos rótulos e carimbos, recorrendo à encenada ignorância, sem nunca se comprometer. No entanto, é isso mesmo que torna esta gravação esquecida – enriquecida pela minuciosa transcrição e pesquisa de Pedro Castanheira – indispensável a um retrato aprofundado e atualizado de Amália, até pela riqueza dos subentendidos e das entrelinhas.
Naquilo que diz, na forma como se entrega ou escapa aos alçapões e matreirices do entrevistador, Amália acaba por revelar-se entre confissões, silêncios e meias-palavras. Há nesta conversa “arquivada”, durante quase meio século, uma mulher ainda por conhecer em plenitude, das origens ao estrelato, sem esquecer as suas relações com o Estado Novo.
Com as achegas do agente artístico e fiel escudeiro Belchior Viegas, sempre à coca da conversa, são imperdíveis os relatos do dia em que a PIDE obrigou Amália a cantar na festa do Sporting e a conversa a propósito dos polémicos versos que a cantora escreveu a um Salazar acamado.
Se dúvidas houvesse, este documento histórico prova que Amália continua a ser uma obra aberta. Isso não só desafia a academia a olhar, com renovado interesse, para as suas diversas facetas como obriga, em ano de centenário, a revisitar esta mulher superlativa nas suas costuras humanas. Sem preconceitos nem incenso.