Ainda não são 9 e meia da manhã de um sábado de abril e já um grupo de cerca de três dezenas de madrugadores (muitos vieram de Lisboa) vai entrando na pequena queijaria de Maria dos Anjos, na Quinta da Gazé, em Vila Franca da Beira, Oliveira do Hospital. O leite que a queijeira há de usar para explicar como faz o queijo e o requeijão de forma artesanal, numa cozinha aquecida com lareira quando o frio aperta, veio da ordenha que o marido fez pelas seis da manhã às 70 ovelhas da raça bordaleira.
Estamos na quarta etapa do Residência, o restaurante itinerante do chefe de cozinha João Rodrigues (13 anos no restaurante Feitoria, em Lisboa, onde manteve uma Estrela Michelin durante mais de uma década), que desde janeiro anda a percorrer o País – o projeto de um ano terminará, em dezembro, na ilha da Madeira. Depois de Boticas, Melgaço e Tabuaço, abril foi dedicado à Beira Alta e aos produtores genuínos da região da serra da Estrela, como é o caso de Maria dos Anjos.
A queijeira, 55 anos, só faz dez queijos por dia, coalhados com flor de cardo e sal, como manda a receita do verdadeiro serra da Estrela que aprendeu com a sogra, há mais de três décadas. Depois de o leite coalhar, molda-os um a um com o carinho das mãos, retirando-lhes o soro para o requeijão. Será a filha Mariana, 18 anos, estudante de Arqueologia, que haverá de o pôr ao fogão, sempre a mexer até talhar. “Alguém quer provar? O requeijão é como o pão: se está quente, é sinal de que é fresco”, atira Maria dos Anjos, antes de nos levar à sala de cura, onde os queijos, enrolados com uma cinta branca, ficam durante 35 dias, em climatização natural.
Maria dos Anjos encaixa na perfeição no perfil de produtores que João Rodrigues tem encontrado pelo País fora desde que iniciou, em 2020, o projeto Matéria, indo ao encontro dos produtos e produtores portugueses, e que agora serve de base a este seu restaurante itinerante. “Dizemos muitas vezes que é um projeto sobre pessoas, porque tem que ver com essa capacidade de resiliência, reinvenção e luta por algo que os apaixona”, esclarece o chefe de cozinha. “Ainda agora vim de Nova Iorque e toda a gente me dizia que não fazemos ideia do tesouro que temos em mãos. Não damos o devido valor ao nosso país. É altura de tomarmos conta daquilo que temos, porque há muita coisa que está em risco de desaparecer”, tem notado João Rodrigues, através desta “ideia louca” de levar um restaurante a 12 regiões.
Rancho de infantaria
Seguimos para o atelier de chocolate artesanal Alma do Cacau, nascido vai para dois anos, num rés do chão em Oliveira do Hospital, que transforma os grãos de cacau biológicos oriundos do Brasil, Gana, Peru e São Tomé e Príncipe em tabletes sem glúten nem açúcar de cana.
A hora de almoço aproxima-se e o grupo – cresceu para seis dezenas – segue para a Quinta da Coitena, onde o chefe beirão Diogo Rocha (uma Estrela Michelin no Mesa de Lemos, em Silgueiros, Viseu) foi incumbido, por João Rodrigues, da preparação do almoço.
Antes do repasto, percorremos a quinta de agricultura regenerativa e holística, um projeto da família de Carlos Brito, ao qual se juntou o filho, Luís, e em que se criam perus, cabras e bovinos alimentados a trevos e leguminosas, numa economia circular. “As terras onde foram semeadas as batatas foram fertilizadas pelas vacas; os animais transformam a erva em carne e leite; a fruta feia do pomar é usada para alimentar os animais”, vai explicando Luís, 22 anos, que está a terminar o curso de Medicina Veterinária.
Às mesas, postas ao ar livre, chega o rancho à moda de Viseu, preparado por Diogo Rocha. “Há uma lenda que conta que foi pedido para dar energia às tropas do Regimento de Infantaria. Pegámos nessa receita, que leva vitela, frango, porco, grão, massa e batata, e, num cenário como este, transmite-se o que se comia: uma cozinha de família e de tacho. E há quem diga que, no dia seguinte, ainda sabe melhor.”
Neste almoço, não faltam o queijo de Maria dos Anjos nem o pão e os enchidos trazidos de Manteigas, vila central deste Residência pela Beira Alta. O primeiro dia termina com uma visita ao lagar Azeites do Cobral, que, no tempo da apanha, transforma 80 a 100 toneladas de azeitona por dia, durante 24 horas.
Cozinhar na fábrica
Acordamos em Manteigas, vila do distrito da Guarda considerada o “coração da serra da Estrela”. João Rodrigues tem andado de região em região com fogões, frigoríficos, tachos e panelas às costas, e, por vezes, a logística dos espaços não facilita a montagem de uma cozinha. “O almoço preparado pelo João é sempre em locais inesperados. Nem sempre é fácil conseguirmos sítios com água e gás…”, conta Vânia Rodrigues, a mulher e braço-direito do chefe na organização deste restaurante itinerante, que há de atravessar o continente e ilhas. É o caso deste segundo dia, em que o repasto – seis pratos preparados com produtos da região beirã – será servido no meio de máquinas de tear. Mas já lá vamos.
A manhã tem início com uma visita ao rebanho da Ecolã, a mais antiga unidade fabril portuguesa (1925) ainda em funcionamento, guiada pelo pastor Zé. Dentro de dias, a meia centena de ovelhas de raça bordaleira será tosquiada, para as aliviar do calor do verão. A lã será depois lavada, fiada, urdida e tecida nos teares da fábrica, para se transformar em mantas, casacos, chapéus ou mesmo em mochilas de burel, como observamos durante a visita à fábrica, conduzida pelo dono, João Clara, terceira geração da família.
Fiéis seguidores
Nesta viagem pelos produtos da Beira Alta, conhecemos ainda Jaime Leitão, 73 anos, produtor de feijoca. Nas traseiras de casa, já fresou a terra para semear esta variedade de feijão-branco graúdo, que, em Manteigas, tem outro sabor “por causa do clima e da água do rio Zêzere”. Só lá para outubro estará pronto a colher.
De colheita em colheita, Jaime guarda sempre alguns litros (assim se mede a leguminosa) de feijoca. E ainda bem! Porque foi com ela que João Rodrigues acompanhou os samos de bacalhau, um dos pratos servidos no tal almoço que surpreendeu cerca de 70 pessoas em mesas colocadas no meio das máquinas da Ecolã. “É caso único. Nunca tivemos nada assim, aqui, na fábrica”, diz-nos João Clara, sem esconder o orgulho por ver a sua menina engalanada com este restaurante itinerante.
Atrás do fogão, João Rodrigues e a equipa sorriem: “Ficou bonito, não ficou?” Ficou, sim, senhor. E delicioso, acrescentamos agora nós, depois de termos provado o alho-francês assado com nozes e peras de São Bartolomeu (variedade da região); a beterraba com enguia fumada, laranja (da Quinta da Coitena) e requeijão (de Maria dos Anjos); o bacalhau com ervilhas, favas e morcela (de Manteigas); o arroz de cordeiro e carqueja, e, por fim, uma saborosa sobremesa de queijo da serra com abóbora. Tudo harmonizado com vinhos do Dão, escolhidos pelo sommelier Daniel Rocha e Silva.
Os comensais – muitos seguem o Residência desde o primeiro mês – aplaudem o repasto. “Esta foi uma das melhores edições”, confessa-nos João Rodrigues, já mais descontraído depois da tensão dos dois dias. “A ideia foi sempre fazer um evento que gastasse o mínimo de recursos possível, que fizéssemos com que as pessoas viajassem pelo País. É um grande desafio, e é gratificante ver que tem esgotado.”
Agora, arrumados tachos e fogões, já só pensa nas próximas paragens: Idanha-a-Velha e Monsanto, nos dias 27 e 28 de maio, onde servirá um almoço volante com António Galapito (Prado), André Lança Cordeiro e a dupla David Jesus e Sandra Freitas (The Millstone Sourdough); Beira Litoral (Figueira da Foz, 17 e 18 de junho) e Ribatejo (Santarém, 8 e 9 de julho). As regiões e os produtores agradecem – e os comensais também.
Projeto Residência > Até dezembro, uma vez por mês > Reservas T. 96 428 9250 > €95 a €135 (inclui bebidas) > residenciajr.pt
João Rodrigues: “Estava na hora de ir atrás de um projeto de vida”
1. Há um ano (fez a 22 de abril), anunciou a saída do restaurante Feitoria, em Lisboa. Porque decidiu sair?
Percebi que, muitas vezes, o sucesso e o que fazemos têm muito que ver com o momento. E quando esse momento não existe, não passamos de números. Senti que já tinha feito o meu papel e que estava na hora de ir atrás de um projeto de vida, com que sempre sonhei. Só temos esta vida, vamos vivê-la. Tive a sorte de encontrar pessoas que acreditaram nele.
2. Esse projeto passa por abrir dois restaurantes: um em Lisboa, outro no Oeste.
O de Lisboa, na Rua da Junqueira, deverá inaugurar neste ano, em setembro, se tudo correr bem… Para o ano, no último trimestre, queremos abrir o Monda, na zona Oeste, que vai conciliar os projetos Residência e Matéria numa experiência só. É um desafio enorme e algo que muitas vezes me deixa a sonhar acordado, muito entusiasmado com o potencial que pode ter.
3. O que nos pode contar sobre o Monda?
É um projeto feito do zero. Pegámos numa ruína antiga na zona da Lourinhã, muito perto do mar e dentro de uma reserva agrícola. Vamos ter o melhor dos dois mundos, num cenário um bocadinho austero e duro mas, ao mesmo tempo, contemplativo, sério e bonito, que representa muito bem a costa portuguesa. É uma zona onde temos tudo, uma riqueza extraordinária, tanto de mar como agrícola, frutícola, de caça, de recoleção de cogumelos… É um sonho.
4. Vai da produção dos ingredientes até ao prato…
A ideia é ter tudo e conectarmo-nos um bocadinho com a História. Não nos extinguimos nessa ideia de que o que temos é o que produzimos; queremos acrescentar camadas de História, com tudo o que ela nos conta ao longo dos anos sobre o nosso país.