Oito horas da noite e está um frio de rachar lá fora, ainda que iluminado pelas decorações natalícias. Cá dentro, há oitenta dedos frenéticos na cozinha e quatro cabeças pensantes, que ainda por cima criam tudo menos o que se espera, e tanto faz que estejamos no mês do Natal. Apesar disso, a noite flui com uma estonteante naturalidade, sem sequer se desconfiar que há um mês, a vida destes chefes, dois portugueses, uma brasileira e um basco, nunca se tinha cruzado.
Assim que a porta se fecha, sentimo-nos imediatamente acolhidos, perdemos o frio e apreciamos as o pé direito alto e as paredes brancas que transmitem tranquilidade. Terá ajudado o facto de já termos um copo de espumante na mão, claro.
Há que fazer uma paragem na The Art Gate, para reparar nos trabalhos, em diferentes materiais e suportes, de cinco artistas. Nem de propósito, é neste lounge que a equipa do ONA (onda, em catalão) pensa em servir os snacks que antecedem a refeição – se é que podemos resumir o que se passa aqui a esta palavra tão corriqueira.
Esta interrogação surge-nos enquanto provamos o shot que Constança Cordeiro nos dá, em jeito de boas-vindas. Dentro do pequeno copo branco, acreditem, há rum, funcho do mar e cedro e deve beber-se de um trago para melhor absorver a irreverência da bartender, de 29 anos, que trouxe de Londres estas ideias terra-a-terra, expressão que aqui assume literalidade. Ao mesmo tempo, trazem-nos um chupa-chupa, e anunciam-no como uma pequena surpresa. Só depois nos dizem que se trata de um troço de maçã, envolvido em esporo fermentado durante 35 horas.
A seguir a estes dois momentos inesperados, vamos para dentro. É quando reparamos que todos aqui se vestem de igual: calças pretas, camisa branca, avental da mesma cor, o que torna difícil, num primeiro e num segundo momento, distinguir quem é quem.
Aos poucos vamos percebendo que o rapaz de cabelo agitado, que nos serviu o espumante à entrada, falando em inglês, é afinal o sommelier francês Luca Pronzato, 28 anos, um dos criadores do ONA, que dá corpo a vários restaurantes efémeros pela Europa. Antes de se atirar a estes projetos, que se mantêm no máximo por seis meses, esteve três anos no NOMA, em Copenhaga, considerado um dos melhores restaurantes do mundo.
Patrícia Pombo, de quase 30, é a sua parceira no crime. Antes de conversar com este amigo e perceber que estavam alinhadíssimos, trabalhava, também com vinhos, no restaurante Prado, em Lisboa. Deixou a estabilidade para trás com a fisgada de criar estas experiências, recorrendo ao talento de jovens chefes. O primeiro aconteceu este verão (até outubro) na Costa da Caparica. “Trata-se de uma espécie de curadoria, porque também pensamos os espaços e a forma como são decorados. Gostamos de desenvolver a criatividade de equipas diferentes, em locais diferentes. É isso que nos inspira”, sintetiza.
A IMPORTÂNCIA DOS FORNECEDORES
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A equipa que criaram para este pop up lisboeta é multicultural: Micael Duarte, que também saiu do Prado; Iñaki Bolumburu, que deixou Bilbao e o Nerua, no Museu Guggenhein; a brasileira Mariana Schmidt, que passou pelas cozinhas do Laisai, no Rio de Janeiro, e do Mugaritz, em San Sebastian; e o português Edgar Bettencourt, que estava no Feitoria. Como se chega ao consenso de um menu, quando há tanta massa cinzenta a carborar? “Existem mais pormenores a serem debatidos, mas é muito bonito esta construção de ideias. Aprendemos muito e podemos aproveitar o melhor, que é cozinhar”, diz-nos Edgar, com o entusiasmo que se espera num dia de antestreia.
Porque a questão dos pequenos produtores é tão importante como as mãos que trabalham na cozinha, o menu há de mudar com a sazonabilidade e, sobretudo, com a disponibilidade de quem lhes dá os alimentos, como as macroalgas da Algaplus, em Aveiro, os legumes biológicos da Quinta do Poial, em Palmela, ou os citrinos do Lugar do Olhar Feliz, no Alentejo. No fundo, será sempre “uma carta de amor à cultura portuguesa”, garante Patrícia, com visível encanto pelos nosso produtos.
Já estamos na mesa do chefe, que é um privilégio. Trata-se de um balcão, colado à cozinha, e não há nada que nos escape desde o nosso lugar. É aqui que nos dão o segundo snack, que pode não agradar a todos, por causa do seu sabor e textura, bastante fora do baralho – uma batata que parece estar enterrada em terra, sensação provocada pela mistura de pimenta sichuan e alga kombu em pó. Ainda bem que a Constança aparece com mais um shot e nos adoça a boca com um licor de marmelo fermentado.
Logo a seguir – o ritmo é acelerado – trazem-nos um ramo, onde arrumam um espécie de mini sandes de crocante de tapioca, com maionese de codium, caldo de Bulhão Pato e berbigão. Uma delícia que sabe mesmo a mar, pedimos desculpa pelo lugar comum, mas é que é esse salgado bom que nos fica na boca. No copo, há kombucha de laranja, curcuma e mel, um fermentado ideal para quem quer fugir ao álcool.
RECEITA PARA O AMOR
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A cozinha tem imensa pinta e está num reboliço. Ninguém repara, sequer, na receita do amor que está escrita na parede, em inglês: 30 gramas de paixão, duas colheres de paciência, 50 gramas de respeito e 100 de amizade. Ainda bem que avisam que “o resto é consigo” ou largaríamos já esta experiência para ir testar a coisa para casa. Bebamos o vinho branco francês que Luca nos serve, para esquecermos que isto não vai lá com gramas nem colheradas.
Enquanto apreciamos o magnífico Chardonnay, vemos a forma delicada como tratam os ovos e tentamos perceber os nomes das cinco variedades de cogumelos que estão a entrar agora mesmo na frigideira. Há quatro chefes de volta deste momento, que há de levar os ditos fungos e uma gema a que foi injetada caldo de miso (sim, com seringa). A mistura, pelas nossas mãos, é fenomenal e ainda se remata com uma água de frango com especiarias.
Há uma altura em que sentimos tudo a borbulhar à nossa frente e contamos oito tachos ao lume e mais uns quantos acessórios de cozinha pelas redondezas. Mas entretanto, a bartender traz mais uma das suas excentricidades e retira-nos desta contabilidade: um gin, quente, com manjerona, cebolinho, louro e hortelã. “Adoro caldos e para este cocktail lembrei-me daquelas canjas, que na realidade são sopas de letras com caldo knorr”, conta Constança Cordeiro, divertida com a desconstrução conseguida. A bebida é super aromática, mas quando tentamos arrefecê-la como fazemos com a sopa, o álcool entra-nos pelos olhos, torna a tarefa difícil e lembramo-nos de que aquilo não é uma sopa nem nada que se pareça.
Antes de passarmos para a sala, ainda comemos um prato que é um mix de legumes da Quinta do Poial, que seria apropriado para vegans, caso o molho não fosse um demi-glace, que leva manteiga… E ainda outro à base de kale, cozida em modo q.b., e puré de couve-flor, de que gostámos muito.
NA SALA, CABEMOS DOZE
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A enorme mesa de madeira escura domina a sala de jantar. Aqui cabem 12 pessoas, em harmonia, conheçam-se ou nem por isso. Espera-se que a conversa comece a fluir facilmente, até porque a motivação em experimentar algo novo deve ser comum a todos os que aqui vêm. Mas caso isso não aconteça, há muito para onde vaguear – é neste espaço que se sente melhor o quão orgânico é este projeto, desde logo no candeeiro feito com espinheiro branco apanhado pela equipa, em Monsanto. O centro de mesa não é um centro de mesa, mas antes uma montra daquilo que entra nesta refeição: morangos (hão de estar, discretos, numa salada), castanhas (acompanhamento da carne), cogumelos (já falámos deles), ovos (lembram-se da gema injetada?), batata-doce (comemos em pickle), cebolo (serviu para dar crocância ao prato de bacalhau fresco). Quando Iñaki traz para a mesa o prato à pil pil, onde se nota maior influência do seu País Basco, fala, em tom otimista, da “biodiversidade de ideias” entre todos.
Sabemos que vamos comer a carne de caça, porque antes de sairmos da cozinha vimo-la na frigideira, logo depois de levar apenas sal e pimenta moídos como tempero. O resto, termina-se na sala, em cima de um carrinho. E os quatro acompanhamentos (o mais intrigante é uma beterraba amarela) são distribuídos pela mesa, para estimular a partilha. “Aproveitem este momento familiar”, aconselha o cozinheiro basco. Assim o fazemos, cheios de obediência. Pelo menos até chegar a sobremesa, um suflé cítrico, queimado ao momento, com avelã e geleia de pólen.
À saída, outra vez no lounge espaçoso, Constança traz-nos o último apontamento da noite, em jeito de digestivo. E pensamos que este texto pode, facilmente, ficar desatualizado, não só pela sazonabilidade de que já falámos, mas também porque nada garante que estes quatro chefes aqui se mantenham até 12 de fevereiro, a data para as portas deste pop up se fecharem. É por isso que aconselhamos a cá vir depressa, mas com a mente suficientemente aberta para absorver toda a experiência orgânica, que é um apelo constante à terra e ao que ela nos dá, em modo sustentável. E à saída, já nem houve frio que nos incomodasse.
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The Museum > Largo da Trindade, 16, 1º esq, Lisboa > Até 12 de fevereiro > qui-dom 19h ou 21h30, mesa do chefe 21h30 > menu 75€ (sem bebidas) > reserva obrigatória em weareona.co