Joseph Benlolo tem 29 anos, nasceu na Venezuela e foi criado em Miami. É lá que vive, mas encontramo-lo agora em Lisboa, na Rua Poiais de São Bento, à porta da Kayas Boutique, uma galeria com o nome do seu cão que irá funcionar também como clube de artistas e loja (lá dentro tudo se vende). Não conseguimos arrancar-lhe uma data de abertura ao público, mas sabemos que a festa de inauguração – de arromba – já foi. “Estamos a selecionar artistas de todo o mundo para criarmos uma comunidade”, explica, entre o inglês e o castelhano, acrescentando que haverá uma série de atividades para solidificar esse coletivo. No entanto, a seleção não obedece a um guião, basta que Joseph e o seu sócio Alexander Mignot se identifiquem com o trabalho e com a história de quem se candidata, se conectem com eles. Não é por acaso que a concept store vai abrir nesta rua. “Sentimo-nos muito identificados com a zona, que está em crescimento. Além disso, temos imenso apoio da comunidade local”, nota Joseph.
Em dois dias consecutivos, andámos a vaguear pelo triângulo que as ruas Poiais de São Bento, Poço dos Negros e um pedaço mais escondido da Rua de São Bento traçam. Para cima, temos o Bairro Alto, ao qual se chega pela Calçada do Combro. Em baixo, já é Santos – um enclave sem nome, entre dois bairros, que de ora em diante será tratado por triângulo. Não se trata de uma nomenclatura original. Já em 2016, Cláudia Cordeiro, 38 anos, se lembrara do mesmo para trazer algum cimento a esta zona que, no pico da crise, estava muito degradada, depois de o comércio mais tradicional ter fechado. Ela, arquiteta de formação, apostara na Poiais de São Bento – adivinhando-lhe potencial, na esperança de ver melhorias a curto prazo – abrindo a Apaixonarte. Quando já havia bastante massa crítica nas redondezas, decidiu falar com os seus vizinhos para se unirem, num dia a que chamou Triângulo Aberto – todas as 40 lojas envolvidas, independentemente da sua atividade ou dimensão, dinamizaram várias iniciativas para assinalar a data. Depois de dois anos a organizar isto, cansou-se e passou a prestar mais atenção ao seu projeto pessoal. “Sempre viajei muito e via como as lojas de recordações eram bem pensadas, lá fora. Cá, faltava amor-próprio. Com a minha loja, quis que os portugueses valorizassem o que é nosso”, explica. Hoje, a Apaixonarte tem objetos de decoração e de arte, a maioria de artistas emergentes que também expõem aqui.
A Mini Mall faz parte da novíssima leva. Reúne para cima de 25 marcas, tal e qual um pequeno centro comercial. Apesar de estar mais direcionada para roupa de mulher, o casal que está por detrás desta loja de rua pensou-a como uma galeria de arte – a iluminação é a prova mais visível disso. As montras debruadas a néon também ajudam a olhar para aqui de forma diferente. Márcio Duarte e Jenni McFarlane mantêm as suas vidas profissionais, mas deixaram que a paixão os dominasse a ponto de se lançarem neste projeto perfeitamente inserido no novo bairro lisboeta. “Sabia que esta zona estava para rebentar. E ainda há de ter um ADN muito peculiar”, vaticina Duarte, enquanto pega no omnipresente yorkshire ao colo, antes que ele se escape para a loja de lençóis e atoalhados que fica do outro lado da rua. Mesmo colada, espreitamos a D’Olival Casa, nascida de uma antiga peixaria. Embora tenha o mesmo nome que a loja de azeites, uns números mais adiante, aqui nada do que se vende tem que ver com esse produto. Trata-se de uma montra de artigos para a casa, saídos das mãos de pequenos artesãos de todo o País.
Os caracóis que ficam
Na Artes & Letras ainda não se sabe bem o que fazer a tanto espaço, por isso encontramos o casal Luís Gomes e Inez Caria em arrumações. “Era o nosso atelier de tipografia, mas, ao tirarmos daqui as máquinas, ficou um enorme vazio. Então, enchemos isto de tralhas, como se fosse um bazar”, explica a ilustradora. Por todo o lado, tropeçamos em livros antigos, vinis, cartazes, postais, bijuteria, loiça chinesa e outros artigos usados. Na zona por detrás da caixa, há ainda muita roupa vintage. Assim, distinguir-se-á das lojas multimarcas, que são mais do que muitas por aqui. Umas portas mais à frente fica o Estúdio 55, que reúne quatro projetos nacionais no mesmo rés do chão: sapatos feitos de lixo, as mochilas Airosa, canecas e cadernos de design, camisas vintage. Antes ainda passámos pelo Authoria, outro exemplo de artesanato de assinatura nacional. Será que os notívagos que vão dançar ao Incógnito, um clássico com mais de 30 anos, reparam nestas montras de autor?
O restaurante Distinto já tem um ano – sim, porque a oferta gastronómica também tem vindo a mudar (com imensa pena nossa, o Solo, um minirrestaurante macrobiótico, estava fechado para férias). É dos mesmos donos do Sessenta e tem trazido muita gente, com desejos de partilhar petiscos tradicionais portugueses, apresentados na lista que se agarra a uma tábua de queijo. Se a porta estiver fechada, será por causa do frio e do barulho do elétrico 28 – há que insistir, porque no Distinto podem comer-se uns snacks até às sete da tarde. No verão, voltará a haver caracóis, da receita do senhor Carlos, que durante 35 anos os servia neste mesmo número de porta.
Acreditamos que Tomás Miranda, 62 anos, terá lá ido ao petisco, depois de um dia inteiro fechado na sua cave a consertar instrumentos de sopro, pois instalou-se quase em frente, em 1994. Mal se descem as escadas que vão dar à sua oficina, o músico, de longos cabelos brancos e encaracolados, começa a filosofar sobre a sua minuciosa arte. “Trabalhamos sobretudo a liberdade, tentando libertar o instrumento de tensões. Não nos limitamos a reparar, temos também um enorme respeito pelos músicos.”
Antes de chegarmos ao final da rua, para um momento francês no Chipie la Galette, com esplanada para o Largo Dr. António de Sousa Macedo, provando uma galette (crepes à base de trigo sarraceno), não resistimos à Afro. O dono, o moçambicano Adnan, anda sempre em viagem e quem toma conta da loja é a sua tia. Todos os produtos que aqui se vendem têm as cores contagiantes de África. Mas torna-se impossível não fixar o olhar na parede de capulanas, que se vendem a 20 euros cada.
Virando para a Rua Poço dos Negros, e depois de bebermos um café no superconcorrido The Mill, reparamos na Quiksilver e espantamo-nos. João Azevo, 32 anos, diz-nos depois que esta é a única loja de rua com uma filosofia mais urbana. “Não vendemos logótipos, só coisas mais fashion, que neste momento estão esgotadas”, conta. De resto, é tudo igual. Ao contrário da 27, que o casal Kelly e Julien Dassault encheu com objetos trazidos das suas múltiplas viagens. No entanto, têm de obedecer a uma série de preceitos, como serem produzidos de forma ética e com materiais reutilizáveis. Antes de os exporem na loja, Kelly e Julien experimentam tudo em sua casa. Nem vale a pena falar muito do que aqui vimos, porque a decoração muda frequentemente.
Na Oficina Coletiva vende-se, desde sempre, o trabalho dos arquitetos e designers que têm nesta antiga padaria o seu atelier. Também se podem juntar peças de convidados, e então a oferta aumenta. Quando aqui chegaram, há 9 anos, a zona estava degradada, ao contrário do que verificam hoje. No entanto, ainda se veem alguns prédios presos por andaimes e muito entulho de obras. E há os resistentes. A Fotografia Triunfo, que ostenta o selo Loja com História, atribuído pela Câmara de Lisboa, existe desde 1952 e o senhor Américo veio para aqui trabalhar 10 anos depois, era um menino. Como ainda não sabe bem quais os benefícios do galardão da autarquia, se a renda aumentar muito (por esta zona ronda os 1500 euros), terá de pensar se vale a pena continuar com esta preocupação, aos 69 anos. Não será o caso do restaurante Zapata, outro clássico que está nas mãos da família de Nuno Sousa, há mais de três décadas. A ementa não mostra sinais de se ter adaptado aos vizinhos mais modernos ou ao advento dos turistas. Continuam a servir boa comida tradicional portuguesa, com destaque para os filetes de polvo com açorda, bife de atum ou arroz de cabidela, com doses a variar entre os 12 e os 19 euros.
Do outro lado da rua, fica o Tambarina, um restaurante cabo-verdiano, que ali se instalou há 5 anos (o Anastácia é a concorrência mais recente). O dono, Domingos de Brito, 58 anos, sabe de cor os petiscos que serve: cachupas variadas, mandioca com carne de vaca, feijão congo, pastéis de atum… Já estamos com água na boca, quando ele acrescenta que aqui se ouve música ao vivo enquanto se janta. “É um ambiente familiar, quem quer dançar, dança, quem quer estar sentado, está”, resume enquanto nos enche um shot com um potente grogue caseiro.
Ainda há memória por aqui
Ninguém bate Luís Duarte, dono da pastelaria tradicional Nita. Aos 81 anos, reconhece que a sua casa de pães e bolos, aberta em 1964, é a mais antiga da rua. Na Poiais de São Bento tem a Alva, onde confeciona tudo o que vende na Nita. “Felizmente, sempre sobrevivi a todas as mudanças, com êxito. Sei que é por servimos bem.” A maior parte dos dias, chega aqui às seis da manhã para receber os queques e os pastéis de nata que se vendem ainda quentinhos. Apesar de se manter tradicional, não é avesso a coisas novas e está a gostar da vida deste triângulo. Porém, ainda se lembra do que havia por aqui: “Onde é o chá [Companhia Portugueza do Chá, que acaba de aumentar outra vez as instalações] era uma sapataria, aqui ao lado funcionava uma mercearia que tinha de tudo”, lamenta. Como tem a Nita para se ocupar, Luís não frequenta a loja-atelier A Avó Veio Trabalhar, um projeto que nasceu para entreter os mais velhos. Rosa Lobo, 69 anos, vive no prédio por cima, e hoje desceu para assistir ao workshop de tear, dado por uma artesã australiana. Ela e Gracinda Rebelo, um ano mais velha, quase falam em uníssono quando decidem maldizer o progresso e o ambiente da zona. “É tudo novo, mas não pensam nas pessoas do bairro que não podem pagar mais de €1 pelo café”, reclama Gracinda. Recordam, com saudade, os lugares de mercearia, a peixaria, a escola, as tascas, a drogaria, a sapataria que fazia modelos por medida, a retrosaria. “Enfim, o que é bom acaba.” Depois, voltam a entrar no bom ambiente da sala, com espaço para rirem, conversarem, cantarem e contarem anedotas – enquanto aprendem e ensinam manualidades.
Antes de ser o Café Boavida, era uma antiga mercearia e, quando esta fechou, passou a funcionar aqui o Rés do Chão, uma plataforma que recupera e ocupa pisos térreos desta zona, fazendo a ponte entre senhorios e quem quiser alugar. Nesta sexta, 1 de fevereiro, faz um ano que Carlos Boavida e a namorada, Paula (a designer que tem também o atelier Frown&Folks, mesmo na porta ao lado), abriram as portas deste sítio, que só serve comida de pequenos produtores, fresca e preferencialmente biológica. Até ver, estão contentes porque conseguem atrair pessoas do bairro, como a dona da ourivesaria que vem aqui beber o seu café de especialidade. Ao mesmo tempo, faz por ser um lugar cultural, com exposições na mezzanine, que mudam todos os meses.
O Break é vizinhança nova. Vanda Martins, 50 anos, largou a medicina dentária para servir pequenos-almoços e almoços tardios, baseados em sumos naturais, tostas e chás. Agora, para a encontrar, é espreitar para dentro da cozinha, enquanto prepara o brunch que se serve todos os dias, por 15 euros. “Cresci aqui e estou a gostar de ver o bairro de cara lavada.” A loja El Otro Tigre faz parte dessa mudança e é perfeita para se encontrar um presente original, pois aqui há pequenos objetos de todas as partes do mundo. O nome, curioso, vem da loja que a dona tinha em Buenos Aires e também alude a um poema de Jorge Luis Borges.
Chegados àquele pedacinho da Rua São Bento que se esconde, passamos a falar francês. Para comunicar, por exemplo, com Arthur Merando, o dono do recente French Arth (onde antes havia comida de Nice). Foi ele que, chegando a Portugal há seis meses, inventou o conceito de cozinhar “à la francesa”, usando alguns produtos nacionais – o foie gras que aqui faz não leva apenas conhaque, mas também vinho do Porto. Ter-se-á inspirado em alguma obra à venda na livraria Palavra de Viajante? Ou terá pedido conselhos a Patrick Hemond, da Baguettes & Cornets, a primeira loja francesa da rua, de onde apetece sair com sacos cheios de produtos vindos daquele país, como queijos, enchidos, gelados artesanais e pastelaria típica.
Apesar de estarem em Lisboa há um ano e meio, Alice, 27 anos, e Pierre, 29, foram os últimos franceses a instalarem-se na rua, com o Boutik. Ele sempre trabalhou em cozinha, ela em lojas digitais e, agora, apostaram em juntar experiências. O ângulo principal é o restaurante de comida saudável, com substrato. Servem-se panquecas, tostas, smoothies para comer, bowls de granola e bolos caseiros, além da sopa e do prato do dia. Seja a que horas for, as mesas estão sempre cheias e há muita gente de computador à frente. “Sessenta por cento das pessoas aproveitam e compram alguma coisa”, nota Alice, que trouxe os objetos de países por onde já viajou, como a Colômbia, Indonésia ou EUA.
Podia pensar-se que a Out to Lunch, a loja do japonês Yoske Nishiumi que fica duas portas ao lado (há a Loja das Maquetas pelo meio), significava alguma concorrência para o Boutik, mas o tipo de produto é bem diferente. Nas prateleiras, deciframos mais de 60 marcas, normalmente com uma história associada. Vale a pena conhecê-las e demorar-nos por aqui.
Não será preciso dormir nas Galerias de São Bento, um mix de guest house de 26 quartos, cowork e loja, que passam despercebidas a quem ande por ali mais distraído. Como ainda não abriram o restaurante, podemos sempre parar mais à frente para uma sopa oriental, ao balcão do Sun Tan.
Entramos na Mercearia Saloia, à procura das flores frescas e dos ramos originais da Saudade, mas percebemos que há dois meses se mudaram para um canto da Bowls&Bar. A bicicleta anda a entregar flores por Lisboa, mas nós trazemos uma mão-cheia de lavanda, em ramo (€4,5), para aromatizar o final deste texto.