Chegados à receção, as boas-vindas são dadas pelo Nemo, um passarinho amarelo, com ar tropical, com nome de peixe. “Tudo aqui é peixe”, brinca Petra Sauer, a alemã que dirige, há 12 anos, o hotel Fortaleza do Guincho, da cadeia Relais Chateaux. Um ano depois de nos ter sido apresentada a ementa do restaurante com uma Estrela Michelin, criada pelo chefe Miguel Rocha Vieira, na altura recém-chegado da Hungria, há que experimentar as novidades. Muitos dos pratos, dos ingredientes e das ideias já lá estavam há um ano, mas agora, graças a toda uma cenografia e encenação à mesa, os sabores nacionais ganham de novo protagonismo. A aposta é clara: combinar produtos da terra com produtos do mar, desde que sejam do momento, e tudo tem “sabor a Guincho”. “Quanto mais perto do Guincho forem os produtos melhor”, dirá Miguel Rocha Vieira, já durante o café.
É à paisagem envolvente, como as rochas e o Atlântico, que Miguel Rocha Vieira e o seu sub-chefe Gil Fernandes vão buscar alguns ingredientes como o funcho, as algas marinhas (codium, bodelha e cabelo da velha) e até os adereços, como as pedras e as conchas. Começamos a refeição, enquanto lá fora o mar se enche de surfistas e, por enquanto, ainda não desceu o nevoeiro. A mesa está mais limpa, sem obstáculos como uma catrefada de talheres e copos. Ao centro, uma peça minimalista do Estúdio Caldas da Rainha, feita por Marta Lucas, leva o mar à mesa com um conjunto de mexilhões, feitos um por um. Enquanto no copo, vertem Kompassus, espumante da Bairrada de 2013, que vai acompanhar uma mão cheia de amuse-bouches, lê-se: “Esta carta é um salpico de memórias, tradições e das raízes deste País”.
Uma trilogia para abrir. O estendal com o carapau seco ao sol (atenção, que não é para comer), uma homenagem às regiões do Oeste, traz também a telha de arroz com tinta de choco, brandade de peixe e puré de grão de bico. Em cima de cracas, pedras e algas, como se de um arranjo floral se tratasse, vem o pastel de massa tenra, que em vez de carne, vem recheado com uma cataplana de safio – de comer e chorar por mais. A primeira junção de terra e mar acontece com o crocante de batata assada com salada de ovas de peixe, apresentado num vaso de madeira. O remate deste trio inicial faz-se com um shot de cerveja artesanal Rapada, uma Belgian Pale Ale fabricada na Serra da Estrela.
O segundo round de entradas não baixa a fasquia. O “Habitat dos Percebes” apresenta-se numa pedra negra, daquelas escolhidas ali na costa, que depois são cortadas à medida e polidas para irem à mesa. Aos crustáceos, de formato pequeno e delicado, juntam-se algas cabelo de velha, cogumelos shimeji braseados e tártaro de laranja – dentro da carapaça dos percebes guarda-se um pó feito de algas desidratadas para polvilhar esta instalação gastronómica. Apesar de já estarmos no fim da época dos pimentos, Miguel Rocha Vieira ainda apostou num vermelho biológico da Quinta do Poial. É preciso destapá-lo para dar de caras com um recheio de cabeças de peixe, creme de limão e molho dos próprios pimentos grelhados. Os mesmos que fazem disparar os alarmes de incêndio da cozinha.
Há um ano, as quatro manteigas chegaram em forma de simples quenelles. Agora, foram transformadas em delicadas peças de arte, pintadas à mão com uma emulsão de óleo e corante. Têm a forma de uma amêijoa (sabor noisette, ligeiramente caramelizada), da canilha (normal), do percebe (pimento vermelho) e do mexilhão (algas), a fazer pendant com o pão caseiro de algas, saído diretamente do forno. A manteiga francesa é o único ingrediente que Miguel Rocha Vieira não conseguiu ainda arranjar com carimbo nacional, apesar de já ter contactado diversos produtores dos Açores.
Mudam-se os copos para o primeiro vinho, um verde Quinta do Regueiro Primitivo, um branco Alvarinho de 2014, cujo toque cítrico e a cremosidade ligam bem com o molho forte que se segue. As explicações são do junior sommelier, Ivo Peralta. Metade do prato branco está vazio, para do outro concentrar-se uma explosão de cor e de sabor com o carabineiro do Algarve ligeiramente salteado, cenouras em miniatura de várias cores (amarela, branca, roxa, laranja), pó de curcuma, kumquat confitado, puré de laranja e o tal molho feito das cabeças do carabineiro.
Este ano, os pratos de peixe são uma dose dupla, acompanhada de um espumante rosé, Borga Campo Largo de 2008, feito com casta Pinot Noir. Primeiro vem o choco frito com maionese de bergamota e menta, servido em cima de um choco já seco, redes, pedras e conchas – um universo marinho que é preciso explicar a muitos dos clientes estrangeiros que nunca viram um choco. Depois é a vez do filete de salmonete a baixa temperatura, couve pak choi recheada com maionese de bergamota e molho negro feito com tinta de choco. Mas o desfile piscícola não se fica por aqui. Ainda falta provar o filete de pargo legítimo acompanhado pela cevadinha, confecionada quase como um risotto, e funcho em todo o seu potencial: funcho do mar à esquerda, funcho da terra à direita, vinagrete de funcho da terra, puré de funcho e uma redução de peixe com um vinho abafado e funcho da terra.
Por esta altura, já a tarde vai larga e o nevoeiro desceu ao Guincho. É preciso refrescar a boca com um mexilhão marinado em escabeche com sorbet de pepino, porque ainda falta o prato de carne e as sobremesas. Diversas partes do porco são aproveitadas para o prato “Da cabeça aos pés”: lombo de porco preto assado com terrina de cachaço, servido com puré de milho, milho grelhado, vinagrete de milho, cebolas em pickle e jus do assado. A doçura do milho vai ser balançada pela acidez do tinto Quinta São Sebastião Reserva, um vinho de Lisboa de 2013, feito com as castas Syrah, Merlot e Touriga Nacional. A homenagem ao Algarve faz-se com o xerém servido numa taça à parte.
Nas sobremesas, assinadas por Filipe Manita, o chefe Miguel Rocha Vieira continua a repescar as suas “memórias de infância”, lembrando as tigelada da avó, da zona de Abrantes e Tomar, a marmelada e o marmelo. Não nos levantamos sem depenicar no bombom de açafrão de Castelo Branco, mel e laranja, nos morgados do Algarve e no marshmallow de poejo e gel de romã. Mais calmo do que quando chegou no verão passado, Miguel Rocha Vieira reconhece que a Fortaleza do Guincho “é uma casa com passado, história e tradição e por mais ideias que tenha não se pode mudar tudo de um dia para o outro”. O que ele fez, em vez de mudar, foi melhorar e muito. E nós agradecemos.
Fortaleza do Guincho > Estr. do Guincho, Cascais > T. 21 487 0491 > seg-dom 12h30-15h, 19h30-22h30 > €95 menu 4 pratos, €115 menu 5 pratos, €135 menu 6 pratos, sem bebidas