A tuberculose é de tal modo assustadora que deixou marcas profundas na minha vida. Derruba-nos quando aparece, apesar de sabemos que é uma doença que tem cura”, começa por contar Sofia, 78 anos, que teve a doença aos 5 anos, perdendo parte da infância. Obrigou-a, por exemplo, a trocar as correrias pelo repouso na cama, prostrada, vencida pelo cansaço extremo, febre e tosse compulsiva a braços com os escassos tratamentos da época. Ainda se lembra de o “pai mandar vir do estrangeiro o primeiro antibiótico eficaz para combater o bacilo da tuberculose, a estreptomicina”. E lhe salvar a vida.
Sofia acabou por vencer a doença na meninice e tentou apagar da memória aqueles tempos conturbados até que, aos 62 anos, teve uma recidiva que a atirou para uma cama e a impediu de continuar a dar aulas durante um ano. “Quando a médica disse que tinha tuberculose, fiquei sem reação. Foi como se um raio passasse pelo meu corpo, e deve ser essa sensação que muitos doentes têm”, desabafa a antiga professora.
O diagnóstico de tuberculose aos 36 anos foi como um murro no estômago para Maria Adelaide, agora com 61. Um turbilhão de emoções. “Foi assustador. Pensava que ia morrer, porque estava muito mal”, diz, recordando que correu vários médicos até acertarem com o diagnóstico. Estava longe de imaginar que já tinha contraído a doença anos antes, durante as visitas que fazia ao pai, internado justamente com tuberculose, num sanatório.
Existem diversas referências, na História, aos sanatórios de montanha e marítimos pelas suas vantagens para a saúde. O primeiro foi construído em 1854, na Silésia, por indicação do médico alemão Hermann Brehmer (1826-1889), que se tinha curado após uma estada nos Himalaias, de acordo com o artigo Tuberculose: A História e o Património, de José Luís Doria, João Miguel Couto Duarte e Paula C. Sousa Saraiva, nos Anais do Instituto de Higiene e Medicina Tropical (IHMT).
Já na época os entendidos defendiam que “o clima influenciava as doenças consumptivas”, lê-se no artigo, aliando depois “a vantagem do iodo da atmosfera” e das tomas de óleo de fígado de bacalhau.
Um dos sanatórios portugueses foi erguido na ilha da Madeira, onde a princesa D. Maria Amélia, filha de D. Amélia de Beauharnais e de D. Pedro IV, morreu. “Em memória da princesa, foi construído no Funchal um hospício para tuberculose, que recebeu os primeiros doentes em 1862”, segundo o estudo.
A construção de sanatórios e dispensários para a vigilância e o tratamento da tuberculose tornou-se prática comum em todo o País, como foi o caso da famosa Estância Sanatorial do Caramulo, fundada em 1920 pelo médico Jaime de Lacerda e, dois anos antes, em Lisboa, o Hospital Rainha D. Amélia. Mais cedo ainda, em 1886, tinha sido aberta, no Porto, a primeira enfermaria para isolamento de tuberculose.
Tem cura, mas já matou muito
Agora, a tuberculose tem cura, mas já marcou a História pelas piores razões. Na Europa do século XVIII morriam 400 pessoas ao ano por cada 100 mil habitantes. Personalidades conhecidas, como os escritores Júlio Dinis e Cesário Verde ou o compositor Frédéric Chopin, morreram com a doença antes conhecida como “tísica”. Só em 1839 o patologista Johann Lukas Schönlein a batiza de tuberculose e, em 1860, Pasteur começa a defender o seu carácter contagioso.
O bacilo que causa a tuberculose foi descrito em 1882 por Robert Koch, patologista e bacteriologista alemão, que viria a receber o Nobel da Medicina, em 1905, pela descoberta do Mycobacterium tuberculosis.
No século XIX, as “terapêuticas mantinham-se arcaicas, com as ventosas, as dietas abundantes, as inalações e pulverizações com o creosoto e o guaiacol, que se acreditava terem propriedades antissépticas e sedativas, as pomadas e os solutos de iodetos, os comprimidos e os fortificantes de farmácia”, lê-se no artigo publicado pelo IHMT.
Agora, os tempos são outros, graças aos antibióticos, claro. Maria Adelaide e Sofia lembram-se bem do quanto lhes custava tomar seguidos os nove comprimidos diários, no Centro de Diagnóstico Pneumológico. É nestes locais de saúde, espalhados por todo o País, que é feito o diagnóstico e o tratamento dos doentes com suspeita de tuberculose, e depois o acompanhamento dos que estão em tratamento.
“É uma questão de saúde pública”, começa por sublinhar a pneumologista Maria da Conceição Gomes, coordenadora da Comissão de Tuberculose da Sociedade Portuguesa de Pneumologia (SPP). A também membro da direção da Associação Nacional de Tuberculose e Doenças Respiratórias (ANTDR) alerta, contudo, para o facto de “os números mundiais mostrarem que esta é a doença infeciosa que mais mata e é contagiosa”. Mais ainda, reitera, quando “em Portugal temos tido um número cada vez mais crescendo não relativo à tuberculose doença, mas sim à tuberculose latente, que estamos a tratar, cada vez mais, para evitar a doença”, revela.
Por tuberculose latente, explica a pneumologista, entenda-se quando “a pessoa teve contacto, através da via aérea, com o bacilo da tuberculose, que entrou no seu organismo pela via aérea superior, ou seja, pelo nariz ou pela boca. E ele vai ficar lá adormecido até que um dia, por qualquer motivo, acorda”. A pneumologista explica que a pessoa “não tem a doença, nem sintomas, e não contagia ninguém”.
Maria Adelaide estava longe de imaginar que aquelas visitas ao pai no sanatório, “um hospital no meio do campo, para os lados de Torres Vedras, onde os doentes respiravam ar puro”, lhe custariam, anos mais tarde, a saúde e o bem-estar.
“Na altura, fiquei com o bacilo adormecido e, anos depois, como trabalhava imenso e com todo o stresse em que vivia, ele atacou-me”, conta Maria Adelaide. A pneumologista Maria da Conceição Gomes confirma que “os sintomas podem começar ao fim de muitos anos”.
1,6 milhões de mortes em 2021
A Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou, em 1993, a tuberculose como uma “emergência global”. Ainda de acordo com a OMS, houve “10,6 milhões de novos casos em todo o mundo, em 2021”, o que representou um aumento de 4,5% face a 2020, “revertendo o declínio gradual que se verificava ao longo de muitos anos”, avança, por sua vez, o pneumologista Helder Novais e Bastos, do Centro Hospitalar Universitário São João (CHUSJ).
A juntar a tudo isto, aponta o pneumologista e investigador, “a mortalidade por tuberculose também apresentou uma viragem, pois após uma descida sustentada entre 2005 e 2019, registaram-se 1,6 milhões de mortes em 2021, mais um milhão do que em 2020, e mais dois milhões do que em 2019”.
Entre as causas para este cenário, Helder Novais e Bastos aponta as “disrupções nos serviços de tuberculose, nomeadamente no acesso ao diagnóstico devido à pandemia de Covid-19, assim como o agravamento da situação socioeconómica em vários países”.
Já em Portugal, o médico destaca uma maior incidência da doença nos distritos do Porto e de Lisboa, ainda que “com taxas de notificação decrescentes e próximas dos 20 casos por cem mil habitantes”. Para Helder Novais e Bastos é, por isso, “expectável um aumento do número de casos em 2021 em comparação com 2020”.
A urgência do diagnóstico precoce
Maria Adelaide ainda se recorda dos primeiros sinais da doença. “Ficava muito cansada a dar aulas; comecei a ter tosse com expetoração, até que fico febril e a médica de família manda fazer um exame TAC ao pulmão. Só pensei que poderia ser cancro”, lembra.
A pneumologista Maria da Conceição Gomes confirma a sintomatologia e acrescenta ao rol de queixas “alguma dor no peito, emagrecimento, os chamados suores noturnos, irritabilidade e dores de cabeça”. E apela à necessidade de a doença ser diagnosticada cada vez mais precocemente.
A partir daí, os passos a seguir são a radiografia ao tórax e um exame de expetoração. E o doente passa a ser seguido nos Centros de Diagnóstico Pneumológico.
“Há uma lei que diz que a tuberculose é uma doença de declaração obrigatória com tratamento também obrigatório e pago pelo Estado. Não há doentes a serem tratados nos hospitais privados, a não ser que estejam internados”, reforça a coordenadora da Comissão de Tuberculose da SPP.
A pneumologista Isabel Gomes explica, por sua vez, que “um doente pode ser internado sempre que a tuberculose condicione complicações que não possam ser geridas em ambulatório ou pelo risco que apresente”. Como acontece, por exemplo, com doentes com HIV. A grande preocupação é, também, a de “evitar que surjam resistências aos fármacos que são usados”.
Segundo a médica do Hospital de São João, o tratamento pode durar nove meses ou mais tempo, “dependendo se é uma pessoa imunodeprimida, com mais suscetibilidade à infeção”.
Sofia lembra-se bem do mês de isolamento em casa com as tomas diárias dos nove comprimidos e, mais tarde, a redução para cinco. “O tratamento é terrível. Ao fim de um mês comecei a ficar melhor, mas necessitava de muito repouso.”
A doença deixa sequelas. “A tuberculose deixa marcas profundas e tive várias pneumonias depois”, acrescenta Sofia, que começou com sintomas de extremo cansaço, tosse e febre. Agora livre da doença, deixa-nos aqui o seu testemunho para ajudar outras pessoas a suportar toda a avalanche de emoções que a palavra “tuberculose” ainda transporta.
À procurade vacinas
Com a eficácia da BCG posta em causa, procuram-se novas formas de prevenção e tratamento
A vacina da BCG deixou de ser dada aos recém-nascidos (à exceção dos prematuros), uma vez que Portugal é considerado um país com baixa incidência. A sua eficácia é alta, nas crianças mais pequenas, contra as formas graves de tuberculose pulmonar, mas vai-se perdendo rapidamente.
A investigação para encontrar vacinas mais adequadas também para adultos prossegue igualmente em Portugal. O pneumologista Helder Novais e Bastos, do Hospital de São João, procura identificar “marcadores fiáveis de infeção latente” juntamente com uma equipa do Instituto de Investigação e Inovação em Saúde da Universidade do Porto (i3S), liderados pela investigadora Margarida Saraiva. O objetivo é “distinguir indivíduos que têm memória imunológica de contacto com Mycobacterium tuberculosis (bactéria que causa a tuberculose), mas que eliminaram a infeção, daqueles que têm verdadeiramente infeção latente e apresentam risco de ter a tuberculose propriamente dita”.
Estão ainda em estudo “os fundamentos biológicos para a diversidade de apresentação da tuberculose que possam contribuir para as necessidades de inovação na descoberta de novas vacinas mais eficazes”. Assim como novas terapêuticas eficazes, menos tóxicas e com esquemas de tratamento mais simples e curtos.
“No nosso grupo investigamos mecanismos associados ao desenvolvimento da tuberculose, partindo do estudo da interação da bactéria que causa a doença com as células do sistema imune do hospedeiro”, acrescenta, por sua vez, a bioquímica Margarida Saraiva, adiantando que a equipa quer “compreender os mecanismos que levam a que alguns doentes desenvolvam formas graves da doença, enquanto outros apresentam formas ligeiras ou moderadas”.
Desse conhecimento espera-se que surjam novas imunoterapias. “É uma forma de contribuir com mecanismos que possam ser explorados para o desenvolvimento de uma vacina”, resume.
Robert Koch (1843-1910)
Médico, patologista e bacteriologista alemão, descobriu o bacilo que causa a tuberculose e a bactéria do antraz, entre outros feitos. Ganhou o Nobel da Medicina em 1905
Estes são os seus quatro postulados:
Para que um microrganismo possa ser considerado responsá-vel por uma doença deve:
1 Ser encontrado em todos os casos da doença;
2 Ser cultivado em cultura pura;
3 Provocar a doença quando inoculado num animal de experiência;
4 Poder ser isolado desses animais e cultivado em cultura pura.