Tire uma senha e aguarde a sua vez: é o principio que nos norteia quando chegamos a um hospital, a um centro de saúde, a uma clínica de exames. A primeira pessoa a ser vista por um médico não é necessariamente a que mais precisa; assim como o relatório de uma ressonância magnética que evidencie um cancro pode ser redigido dias depois de um outro que não comunique nenhuma anomalia.
Mas, daqui a dez anos, este cenário pode ser muito diferente graças à evolução da Inteligência Artificial (IA) aplicada aos cuidados de saúde. “Podermos atender pela ordem que beneficia o doente e não pela ordem de chegada é um alívio, porque o nosso maior medo é não chegar à pessoa certa, no momento certo”, diz Sofia Couto da Rocha, médica especialista em tecnologias no grupo Lusíadas Saúde e membro do Conselho Nacional para as Tecnologias de Informática na Saúde da Ordem dos Médicos.
À medida que os humanos vão alimentando as máquinas com registos clínicos, exames de imagens, análises laboratoriais e outros dados (a que chamamos big data), aumenta a capacidade de os equipamentos tecnológicos detetarem desvios, ou seja, padrões não saudáveis.
Segundo a diretora clínica da CUF Digital e ex-diretora do Centro Nacional de TeleSaúde e da Linha SNS24, Micaela Seemann Monteiro, “são recolhidos, todos os anos, de forma crescente, milhares de exabytes (1 exabyte = 1 bilião de gigabytes)” e, “através da utilização cada vez mais sofisticada da IA, é possível analisar estes dados, reconhecer padrões complexos – muitos até à data desconhecidos – e estimar probabilidades de eventos futuros. Dito de outra forma: vamos conhecer cada vez melhor a nossa biologia, entender as doenças, conseguir predizer o seu aparecimento em cada indivíduo, saber a melhor forma de as gerir ou mesmo prevenir”.
Os efeitos da IA aplicada à saúde já se fazem sentir na prática clínica, também em Portugal, por exemplo na deteção de cancro do pulmão, da mama, de pele, no diagnóstico da retinopatia diabética ou no desenvolvimento de novos fármacos. Mesmo assim, os especialistas na área são unânimes a defenderem que o potencial da IA vai muito além do uso atual. “A Inteligência Artificial vai mudar de forma muito significativa a prestação de cuidados de saúde já nos próximos anos. Tem o potencial de verdadeiramente revolucioná-los”, acredita Micaela Seemann Monteiro.
A maioria das bases de dados ligadas à saúde ainda estão em fases embrionárias, há biliões de algoritmos ausentes; falta financiamento, engenheiros dedicados a esta área, literacia e afinar a questão da proteção de dados. No entanto, ultrapassados estes constrangimentos, podemos estar a olhar para uma alteração de paradigma na saúde, em que um médico consegue vigiar mais do que um doente em simultâneo e esses doentes até podem estar cada um em sua casa. Ou será possível detetar, através dos genes, doenças que ainda não se desenvolveram e chegar mais rápido a casos graves.
A IA pode também ser a chave para lidar com a crescente dificuldade de contratação de profissionais de saúde, libertando os que existem para as tarefas essenciais, enquanto as populações se tornam cada vez mais envelhecidas e aumenta o volume de comorbidades.
O jogo da memória
Atualmente, o diagnóstico de demência é feito através de testes neurológicos ou neuropsiquiátricos num consultório médico, explica Sofia Couto da Rocha. Estes exames “são muito bons para detetar doença média ou grave”, avalia, “mas a doença leve é mais complicada, porque não está presente naquelas duas horas dos exames. Está presente no dia à dia, na altura em que me esqueço das chaves sistematicamente. Por isso, é preciso sair das paredes do hospital e ir ter com as pessoas”. E foi isso que a equipa dos Lusíadas fez.

A médica montou um projeto de telemonitorização dedicado às suspeitas de demência. Para casa, o doente leva uns óculos, que darão ao próprio indicações sobre o que fazer duas vezes por semana, durante três a seis meses, “para ter uma cobertura absoluta do que é a realidade do doente”. Lá dentro, estão jogos desenvolvidos por neuropsicólogos, que vão testar a memória, a capacidade, a rapidez de resposta. E os resultados são transmitidos em tempo real para uma base de dados a que o médico tem acesso.
Para já, este projeto tem como objetivo chegar essencialmente às pessoas que poderão ter sintomas leves de doença, mas, uma vez generalizado, ganharemos tempo. “Passa a ser um profissional para muitos mais doentes e tenho sempre os doentes observados e monitorizados”, continua a médica dos Lusíadas, enquanto passa os dedos pela aplicação a que tem acesso a partir do seu smartphone.
Outra aplicabilidade da IA na área das demências é a possibilidade de diagnósticos menos dolorosos e tratamentos mais personalizados.
É comum chamar-se Alzheimer a uma demência sem certezas de que é esta que está em causa, pois os únicos meios de diagnóstico são uma punção lombar (que envolve espetar uma agulha nas costas do doente para recolher líquido cefalorraquidiano) ou uma PET scan (exame imagiológico pouco usual).
Uma startup nascida na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, em 2019, dedicou-se a estudar uma forma “de providenciar aos neurologistas uma ferramenta que lhes permita distinguir entre os vários tipos de demência com base numa análise sanguínea”, indica Luís Valente, cofundador da iLoF e considerado um dos 30 melhores talentos europeus com menos de 30 anos, pela revista Forbes.
O grupo de antigos alunos da Universidade do Porto fez parcerias com mais de uma dezena de instituições a nível mundial para recolherem amostras anónimas de doentes com Alzheimer, desde os Estados Unidos da América à Austrália, passando por Grécia, Espanha e Portugal, onde contam com a colaboração do Hospital de São João, no Porto, e da Luz Saúde, estando prestes a alargar a rede com outros dois centros hospitalares do Serviço Nacional de Saúde (SNS), “para ensinar o modelo a distinguir entre um doente de Alzheimer e um doente com outra demência”.
“Nos últimos 20 anos, foram feitos mais de 400 estudos clínicos falhados para encontrar um medicamento para a Alzheimer. Isto acontece porque estamos à procura de um medicamento que funcione para todas as pessoas e isso, infelizmente, não existe. O que funciona para o paciente A não faz nada ao B e, no limite, até pode ser bastante prejudicial para o C. No fundo, o que a iLoF faz é capturar quantidades massivas de dados e usar a IA – através de algoritmia avançada, de machine learning [quando as máquinas aprendem continuamente, tornando-se capazes de enquadrar novos cenários, desde que estes lhe sejam dados a conhecer] e de deep learning [computadores programados para reconhecerem padrões de forma intuitiva] – para permitir diagnósticos precoces e mais humanos, traçando perfis biológicos usados pelas farmacêuticas para desenvolver medicamentos que possam ser usados na área clínica e adaptados a cada pessoa”, acrescenta o fundador da startup portuense.
Dados: águas turvas
Tudo se resume, portanto, ao acesso aos dados que estão na base de modelos como os citados anteriormente. “A IA só funciona se tiver bons dados. No mundo real, isto ainda não acontece, por isso acabamos a ter de recorrer a dados artificiais, algoritmos de adaptação de dados”, nota a médica dos Lusíadas, referindo que, embora já existam data lakes (lagos de dados, na tradução literal) bastante desenvolvidos na Europa, não há em volume suficiente, assim como não há engenheiros de dados em quantidade a trabalharem em projetos de saúde e até o financiamento é escasso.
Sofia Couto da Rocha relaciona ainda a falta de dados com o desconhecimento dos seus efeitos práticos e sugere uma aposta na literacia – “Ainda não é claro para o cidadão, e até para os profissionais de saúde, o valor destes dados para o cidadão que os gerou.” “Mesmo dentro da área da Medicina, não há muita gente a mergulhar no tema. Temos de dar informação aos médicos para que sejam utilizadores críticos da tecnologia e não vejam isto como ficção científica.”
O próprio Ministério da Saúde pede cautela a curto prazo na utilização da IA. Embora apoie uma série de projetos nesta área e admita que “todas as ferramentas que possam acelerar e simplificar o processo de decisão, dispensando tarefas redundantes e repetitivas, serão bem-vindas”, em resposta à VISÃO, os Serviços Partilhados do Ministério da Saúde consideram um risco pensar que a IA “poderá resolver a maior parte das carências digitais do SNS, quando a maior parte das situações pode ser respondida com soluções já disponíveis e com melhores resultados no curto prazo”.

A questão da proteção de dados também não é menor e Micaela Seemann Monteiro admite que, tratando-se a IA de um instrumento, esta pode ser usada “para o bem, mas também pode ser utilizada para práticas que violam os nossos princípios éticos”. “Podemos imaginar que um algoritmo deteta um risco elevado de adição de uma pessoa e essa informação seja abusivamente utilizada para negar um emprego a um indivíduo.”
De qualquer forma, este tipo de abuso não é exclusivo da IA, tem sim que ver com a utilização abusiva de dados pessoais. “Daí ser importante uma boa regulamentação nesta área. O Regulamento Geral de Proteção de Dados é uma ferramenta muito importante neste âmbito”, continua.
E o que diz este regulamento? O documento da Comissão Europeia refere que os investigadores, a indústria e as instituições só podem ter acesso a dados anónimos, com um objetivo claro de contribuir para a evolução da investigação na área da saúde e que estes dados só podem ser processados em ambientes controlados (que reúnam medidas de prevenção contra ataques informáticos).
Os médicos que não utilizam a IA brevemente serão substituídos por aqueles que a utilizam
Micaela Seemann Monteiro, Especialista em Medicina Interna, diretora clínica da CUF Digital
Além disto, em maio de 2022, foi criado um Espaço Europeu de Dados de Saúde para partilhar entre os Estados-membros da União Europeia algoritmos fundamentais para a investigação e que cumpram os requisitos acima mencionados.
O Homem vs. a máquina
Algum dia será possível deixar um doente “nas mãos” de uma máquina? Para já, ambas as especialistas afastam a hipótese. Micaela Seemann Monteiro lembra até que há ainda na tecnologia erros tão aleatórios que são difíceis de entender: “A opacidade das redes neuronais utilizadas nos processos de aprendizagem, no âmbito da IA, tornam difícil, ou mesmo impossível, explicar como foi gerado um certo resultado. Mesmo quando sabemos que o algoritmo gera 99% de resultados corretos, no diagnóstico de uma certa condição, por vezes, não conseguimos explicar o que falhou no 1% em que gerou um resultado errado. Já existe um grande esforço por parte dos cientistas de dados em criar técnicas para tornar os resultados dos algoritmos cada vez mais explicáveis ou de construir algoritmos cada vez mais interpretáveis logo à partida”, mas a validação humana tem de ser sempre colocada na equação.
Pelo menos, por enquanto, sugere Sofia Couto da Rocha. Se é verdade “que ainda não temos algoritmos que cubram todos os tipos de variáveis”, também o é “que, daqui a dez anos, será arrogância humana pensar que um processador não é capaz de suplantar um médico na avaliação, por exemplo, de um cancro cutâneo”. “É óbvio que vai ultrapassar”, sublinha, fazendo referência ao número de horas por dia que um especialista teria de dedicar à leitura de documentos sobre a sua área para estar sempre atualizado – “Tinha de ler 29 horas. Ora, não dá”, conclui.
“Não devemos ter medo”. As palavras são agora de Seemann Monteiro: “A IA pode dar-nos mesmo a esperança de que seremos capazes de atenuar ou mesmo superar grandes dificuldades que já se fazem sentir hoje.”
O envelhecimento progressivo da nossa população e as doenças crónicas associadas a este envelhecimento estão a mudar radicalmente o equilíbrio entre o número de recursos humanos disponíveis para cuidar e a população que necessita de cuidados. Os Censos 2021 revelaram que, por cada 100 jovens, existem 182 idosos em Portugal.
“É mesmo necessário começar a redesenhar a prestação de cuidados de saúde com um enfoque grande no empoderamento dos cidadãos na autogestão da saúde, tal como na automatização de atos rotineiros, para libertarmos os profissionais de saúde para as tarefas mais complexas e aquelas em que a empatia é essencial”, diz a médica.
E se não aceitarmos estes termos? “Veremos a nossa esperança de vida diminuir, assistiremos a mais mortes por doenças evitáveis e a uma deterioração da qualidade dos anos de vida mais avançados. Veremos também um aumento crescente das desigualdades sociais no acesso à saúde”, conclui Micaela Seemann Monteiro.