Novas vacinas capazes de combater cancros desenvolvidos na sequência da síndrome de Linch já existem e estão agora a ser alvo de testes clínicos. O objetivo da vacina é preparar o corpo para combater células cancerígenas para que, mais tarde, o sistema imunológico consiga independentemente produzir anticorpos capazes de atacar um tumor que eventualmente se possa estar a formar, evitando, assim, o aparecimento de um cancro.
A vacina tem sido desenvolvida pelo oncologista e geneticista Eduardo Vilar-Sanchez, do Centro de Cancro MD Anderson, que se tem concentrado no estudo da síndrome de Linch, capaz de aumentar o risco do desenvolvimento de cancros. Esta síndrome é, por definição, segundo o Instituto Português de Oncologia (IPO), “uma doença hereditária, responsável por cerca de 3% de todos cancros do cólon e reto (CCR). Os indivíduos com esta síndrome têm uma probabilidade muito elevada de desenvolver CCR ao longo da vida”.
O aumento do risco de desenvolver CCR, mas também cancros do ovário, endométrio e do estômago ao longo da vida tem como base um defeito genético conhecido como deficiência de reparo de incompatibilidade de ADN (ou dMMR), que afeta o processo capaz de reparar os “erros do nosso material genético, o ADN, que surgem durante a divisão celular”, como explica o IPO.
Os doentes afetados por esta condição têm, de acordo com a revista Science, um risco acrescido de até 70% de desenvolver cancro pelo que são geralmente obrigados a fazer colonoscopias, endoscopias ou exames de imagem anuais preventivos para garantir que estão livres de cancro. “Há muita ansiedade nessa população de pacientes”, disse ao mesmo órgão de comunicação Vilar-Sanchez, acrescentando: “É um grande fardo psicológico”. Com isto em mente, foi desenvolvida a vacina que hoje está já em fase de testes clínicos e que procura reduzir o “fardo” dos doentes através da redução do risco de cancro.
O combate às células cancerígenas
Embora as vacinas contra o cancro, em si, não sejam novidade, o seu uso é apenas eficaz em alguns tipos de cancro, nomeadamente aqueles desencadeados pelo vírus da hepatite B como, por exemplo, o cancro do fígado. A maioria das doenças oncológicas não são, no entanto, originárias de um vírus, pelo que a vacina de Vilar-Sanchez será uma das primeiras a ser testada clinicamente no combate contra cancros não virais.
A vacina será responsável por libertar no corpo neoantígenos, substâncias criadas por mutações genéticas nas células tumorais, com o objetivo de estimular o sistema imunológico, levando-o a reconhecer estes elementos e a desenvolver uma resposta imune. Esta técnica insere-se na imunoterapia, “um tipo de tratamento relativamente recente, cujo princípio de ação se baseia no uso do nosso sistema imunitário para combater o tumor”, ou seja, “consiste na utilização de substâncias que estimulam os mecanismos de defesa do próprio organismo (sistema imunitário) a combater o cancro”, como explica o site oficial do Sistema Nacional de Saúde.
O teste de Vilar-Sanchez, que começará dentro de alguns meses, dará a vacina a 45 voluntários com síndrome de Linch, alguns saudáveis, ou seja, sem indícios de cancro, e outros a recuperar do seu tratamento. Os investigadores vão avaliar, depois, se a vacina estimula uma resposta imune e se tem algum efeito aparente nos tumores e na sua formação.
Se os resultados forem positivos, o próximo passo será um estudo com uma duração de 5 a 10 anos que contará com a colaboração de centenas de doentes. “Há muito a ganhar” se a vacina funcionar, admite Vilar-Sanchez. “Uma vacina contra o cancro não reduzirá o risco a zero, mas pode afetar a frequência com que realizamos a triagem”, acrescenta o médico.
Um futuro promissor
Estudos passados focados na síndrome de Linch são indicadores positivos para a vacina de Vilar-Sanchez. Algumas experiências descritas pela Science e realizadas tanto em ratos com síndrome de Linch como em humanos com doença avançada concluíram que vacinas desenvolvidas a partir de neoantígenos têm o potencial de serem altamente eficazes a restringir o crescimento de um tumor e no prolongamento da sobrevida.
Um outro estudo publicado na Gastroenterology explorou o efeito preventivo de uma vacina contra o cancro que inclui quatro tipos de neoantígenos. A experiência, também realizada em ratos, descobriu que não só o número de tumores intestinais observados foi significativamente mais reduzido como as taxas de sobrevida global melhoraram depois da toma de uma vacina. Os investigadores observaram que havia uma forte resposta imune nos ratos que receberam a vacina comparativamente àqueles que não receberam. Um ensaio clínico realizado em humanos com síndrome de Linch também obteve resultados positivos, verificando que os participantes toleraram a vacina com neoantígenos e desenvolveram uma forte resposta imune.
Ainda assim, e sendo que os testes clínicos estão apenas numa fase inicial, continuam a existir muitas questões por responder e riscos que estão inevitavelmente associados à vacina. Um deles, por exemplo, está relacionado com a possibilidade de o tumor desenvolver, com o tempo, estratégias para evitar a resposta imune do doente, fortalecida pela vacina. Outros obstáculos incluem o custo elevado que lhe pode estar associado e um ciclo de desenvolvimento longo.
Por outro lado, uma série de benefícios fazem deste tipo de vacinas possíveis repostas viáveis à prevenção do cancro não apenas pelos resultados obtidos nas experiências feitas até então, mas pela possibilidade de utilizar este método em conjunto com outras terapias contra o cancro.
Um universo vasto de experiências
A vacina de Vilar-Sanchez contra cancros não virais não é a única a ser, neste momento, estudada e desenvolvida. Segundo a Science, em abril e outubro de 2021 deu-se início a dois testes clínicos diferentes dedicados a perceber a eficácia de vacinas preventivas à base de antígenos contra os cancros da mama, ovário e próstata e contra o cancro da mama tripla, respetivamente. Este ano está previsto o começo de um teste clínico para uma vacina contra o cancro pancreático em maio e os testes da vacina desenvolvida para pessoas com síndrome de Linch terão início em junho.
Por agora, têm sido estudadas vacinas diferentes para cada tipo de cancro, mas o objetivo, por exemplo, do governo dos EUA, inclui ir desenvolvendo as pesquisas na área oncológica de modo a, num futuro relativamente próximo, “usar vacinas de mRNA para ensinar o sistema imunológico a reconhecer 50 mutações genéticas comuns que causam cancro, para que o corpo elimine as células cancerígenas quando elas surgirem”, como explica um documento da Agência de Projetos de Pesquisa Avançada para a Saúde.
A meta está estabelecida, mas há quem considere que possa ser demasiado ambiciosa. “Isso seria heróico”, comenta em resposta à Science Olivera Finn, imunologista de cancro da Universidade de Pittsburgh e responsável pela equipa que, em 1989, descobriu o primeiro antígeno associado ao tumor. Isto porque os antígenos da vacina teriam de cobrir não apenas um grande número de mutações de cancro, mas também “a incrível diversidade genética” presente nas respostas imunes dos indivíduos. “Não é impossível, mas não é simples”, acrescenta.
O geneticista da Universidade Johns Hopkins, Bert Vogelstein, admite, também, ao mesmo órgão de comunicação que uma vacina capaz de prevenir vários cancros “parece ficção científica”, mas assegura que isso não a torna menos possível. Vogelstein observou que “um número relativamente pequeno de genes está envolvido na maioria dos cancros”, o que sugere que um número também reduzido de antígenos poderia ser o suficiente para atingir uma proteção mais ampla. “Isto não é loucura. Isto é possível, admite o geneticista, acrescentando que tem sido feito “um esforço conjunto de muitos laboratórios” para chegar a uma resposta.
A comunidade científica já tem procurado perceber até que ponto uma vacina preventiva contra vários tipos de cancro seria viável. Segundo a Science, uma equipa de investigadores já se ocupou de testar uma possível vacina de prevenção de vários cancros ainda não em humanos, mas em cães. O teste tem uma duração de 5 anos e conta com 400 cães de meia-idade que têm recebido uma vacina com 31 antígenos comuns em oito tipos de cancros diferentes habituais em cães.